Edição 284
A Revolução dos Cravos e o Estado de Direito Democrático português
9 de abril de 2024
Julio Aurelio Vianna Lopes Pesquisador da Casa de Rui Barbosa

Do Estado de Direito material
Trajetória e noção de Estado de Direito antecederam as da democracia política, em geral. A democratização do Estado somente vigorou, onde quer que fosse, quando previamente ou concomitantemente sintonizada à cidadania adotada pelos poderes públicos. Tornar o Estado de Direito formal (no qual são previstas garantias de direitos e tripartição do seu Poder) democrático nunca o extinguiu, mas fortaleceu a cidadania por ele propiciada.
Um Estado de Direito material é aquele no qual formalidades jurídicas para o exercício de direitos são instrumentais (e não meramente formais) à efetivação ininterrupta aos cidadãos independentemente de suas condições sociais eventualmente distintas, enquanto um Estado de Direito meramente formal é aquele cujas formas jurídicas não garantem efetivamente a universalização da cidadania em algum ou nenhum de seus aspectos civis, políticos ou sociais nele previstos.
A tradição constitucional do Estado de Direito material adveio pela influência política das Revoluções europeias de 1848 (francesa, austríaca, húngara e pelas unificações democráticas italiana e alemã, embora todas derrotadas), à medida que postularam um Estado de Direito não apenas formal e sob formas de governo republicanas ou monárquicas propícias à cidadania em geral, diferentemente da formação dos Estados Unidos ou demais mobilizações revolucionárias anteriores na Europa.
Neste sentido, se destacou a Revolução pela unificação democrática alemã (em território então dividido em 38 principados ou ducados germânicos), porque única delas cuja força motriz fora da juventude educada universitária e ocasionou a primeira Constituição (em Frankfurt, por Assembleia Constituinte em 1849, apesar de não entrar em vigor devido à derrota revolucionária) que adotou a noção de direitos fundamentais à coletividade nacional distinta da de direitos naturais aos indivíduos, legada pelas ainda raras Constituições anteriores.
Proclamando certos direitos como fundamentais à unidade germânica, tal movimento tornava a própria coletividade resultante, porque dependente deles, imbuída de sua garantia ininterrupta, inclusive por órgãos públicos externos aos próprios indivíduos. Também circulou a noção de dignidade humana como princípio intrínseco a qualquer Estado de Direito material, conforme ele ressurgia nas Constituições alemãs de Weimar (1919) e Bonn (1949), há muito consolidado pela jurisprudência do Tribunal Constitucional alemão. A qual se tornou mais influente que a Corte Suprema estadunidense, devido à profusão democrática de Estados de Direito material, transcorrida ao longo do século XX e após a Segunda Guerra mundial, através do Planeta.
República portuguesa: de reacionária à democrática – Repúblicas são formas de governo que a Antiguidade greco-romana caracterizou pela adoção de valores oficiais ou comuns aos quais a população inteira adere, voluntariamente ou não; e que os modernos complementaram pela adoção de deveres gerais pelos membros de uma nação. Assim, tanto são republicanos os EUA quanto o atual Irã, por adotarem tradições nacionais específicas de participação política (de individualidade natural e comunitária xiita, respectivamente).
A Revolução de 25 de abril de 1974, atualmente conhecida como o “dia da Liberdade” em Portugal ou dos Cravos (flores espontaneamente entregues pela população aos jovens oficiais militares que a iniciaram pela deposição do governo autoritário), foi a adesão populacional à juventude educada militar contrária ao seu envio para manutenção violenta das colônias africanas. À medida que constitucionalizou a nação, foi convertendo a República autoritária vigente desde a década de 1920 (estabilizada em governos conduzidos por Salazar), de reacionária a quaisquer inovações sociais (inclusive técnicas e econômicas, baseada em interpretações restritivas da tradição católica), por uma democratização baseada na dignidade da pessoa humana e na vontade popular, cuja conjugação construiria uma sociedade livre, justa e solidária (artigo 1° da Constituição da República Portuguesa).
A fórmula política ou constitucional correspondente à nova forma republicana de governo assumida foi a do Estado de Direito Democrático. Trata-se de um tipo de Estado de Direito material porque visa a realização da democracia econômica, social e cultural, aprofundando a democracia participativa (artigo 2° da CRP): ou seja, submeteu os poderes públicos portugueses exclusivamente à ordem jurídica quando igualitária ou Direito Democrático, de modo que somente são válidas normas jurídicas aplicáveis para a igualdade de oportunidades em geral. Neste sentido, suas bases tão jurídicas quanto políticas são (artigo 2° CRP):
a soberania popular cuja manifestação é a única legitimidade de exercício de Poderes;
o pluralismo de expressão e organização política democráticas, que têm dificultado ou mesmo impedido registros eleitorais ou circulação social de grupos extremistas e opiniões ofensivas;
a efetivação dos direitos e liberdades fundamentais cuja constitucionalização os torna predominantes ou mesmo diretrizes para o exercício dos demais direitos e tornando crucial o Tribunal Constitucional, conforme a tradição europeia inaugurada pela trajetória alemã acima mencionada;
tanto a separação quanto a interdependência entre Poderes, configurando um sistema parlamentar de governo ou Parlamentarismo semi-presidencial no qual o Executivo é dual com um Primeiro-ministro governante, mas também um Presidente suprapartidário e interveniente ao ponto de poder dissolver o Legislativo nacional, convocando novas eleições parlamentares.
No sentido acima, a recente emergência do direito à eutanásia (2023) é expressão lapidar do Estado de Direito Democrático português. Elaborado pela Assembleia da República sob calibragem jurídica posterior por duas pronúncias do Tribunal Constitucional, ambos os órgãos contornaram os vetos e outros questionamentos presidenciais ao novo direito, à medida que a dignidade seja princípio maior no ordenamento português, inclusive do que a vida humana: daí não ter sido formulado como mero suicídio assistido, mas propiciado só por lesão ou doença tão incurável quanto incapacitante, conforme ela já fosse exercida, habitualmente, pela pessoa.
Contrastes com o Estado Democrático de Direito brasileiro – Embora ambos sejam Estados de Direito materiais, porque vinculados à universalização da cidadania, a Constituição brasileira de 1988 configurou uma democracia para a cidadania que deve funcionar pela expansão progressiva dos direitos apostos como fundamentais e tal lógica não é a mesma que a do Estado de Direito Democrático português.
O que aproxima ambas é a sociedade visada pelo Estado (artigo 1o CRP e 3o inciso IV da CRFB), mas com meios diferentes. Em Portugal, pela validação constante da ordem jurídica portuguesa, regularmente inquirida para acolhimento de valores igualitários através de inquéritos parlamentares, posteriores à sua elaboração legal e ocasionalmente condicionamentos legislativos pelo Tribunal Constitucional, sobre a geração ou não de iguais oportunidades econômicas, sociais e culturais; enquanto na República Federativa do Brasil, pela formulação normativa continuamente instigada pela participação de categorias organizadas (artigo 10 CRFB) em audiências públicas administrativas, legislativas ou judiciárias.
Enquanto o Estado de Direito Democrático português é um regime político de refinamento, tão legislativo quanto jurisdicional-constitucional, das leis produzidas e ao ponto de propiciar sua atualização ininterrupta em face de novas condições sociais desiguais a serem evitadas ou interrompidas por sua aplicação normativa, o Estado Democrático de Direito brasileiro é um regime político de expansão legislativa continuada para a universalização da cidadania aos vários segmentos regionais e sociais cuja pluralidade é tipicamente brasileira.