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A quem interessa uma justiça penal sobrecarregada?

31 de julho de 2010

Procurador da Justiça do Ministério Público do Estado de Minas Gerais

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Uma democracia deve preservar os direitos de liberdade dos cidadãos. Um regime ditatorial, ao contrário, edita leis com finalidade justamente oposta: limitar, segundo o arbítrio do detentor do poder, essa liberdade. No Brasil, ao que parece, vivemos uma democracia. No entanto, a política criminal vigente é a mesma adotada nos países em que prevalece o regime ditatorial. A todo instante surgem novas leis penais proibindo ou impondo determinados comportamentos, sob a ameaça de uma sanção de natureza penal. Vivemos hoje, infelizmente, uma doença crônica, chamada inflação legislativa. Se, com a graça de Deus, já não falamos mais em inflação econômico-financeira, esse modelo de inflação foi importado pelo Direito Penal.

Existem tantas leis penais que se cria, paradoxalmente, uma sensação de anomia, ou seja, de ausência de leis. A Justiça Penal já não consegue cumprir seu papel de julgar os fatos criminosos. Dessa forma, ficam parados processos sobre fatos graves, como aqueles que apuram outros cometidos por organizações criminosas, crimes contra a ordem econômica e financeira, crimes contra a Administração Pública (corrupção, concussão, etc.).

Recentemente, em 5 de maio de 2010, surgiu a Lei nº 12.234, com a finalidade de acabar com a chamada prescrição retroativa, ou seja, aquela que era contada da data do cometimento do fato até a data do efetivo recebimento da denúncia. Essa prescrição conduzia à extinção da punibilidade de fatos que, normalmente, não eram considerados tão graves, a exemplo das lesões corporais de natureza leve, crimes contra a honra, crimes contra o patrimônio, etc. Mais que isso, liberavam os recursos limitados do aparelho estatal para enfrentar os crimes mais graves.

A nova Lei conduzirá a um número enorme de condenações, gerando uma situação de calamidade no sistema prisional, se é que isso ainda seja possível, uma vez que esse sistema já se encontra em níveis insuportáveis. A grande pergunta é: a quem interessa uma Justiça Penal sobrecarregada? A quem interessa a multiplicação dos processos na fase da execução da pena?

Essa multiplicação de processos de pequena importância, que não mais prescreverão, sobrecarregará a Justiça Penal de tal maneira que os processos entendidos como mais importantes acabarão sendo deixados de lado ou, quando menos, dividirão os meios humanos e materiais do aparelho estatal, já escassos. Quanto mais processos, mais morosidade.

É hora (na verdade já passou da hora) de mudar a política criminal típica de um movimento de lei e ordem, de Direito Penal Máximo. É hora de adotar outra, de natureza minimalista, elegendo prioridades, punindo os fatos que impliquem graves lesões aos bens jurídicos e deixando que os outros ramos do ordenamento jurídico — a exemplo do civil, do administrativo, do tributário, etc. — cuidem daqueles que não possuam a importância exigida pelo Direito Penal.

O Direito Penal tem sido seletivo para atingir apenas a parcela miserável da população. É só visitar o sistema prisional a fim de saber o percentual de presos que pertencem à classe média ou à classe alta. O número será ridículo. No entanto, pergunta-se: haverá frequência de crimes de corrupção e de sonegação? Contudo, salvo raras exceções, somente o pobre é processado e preso.

É hora de mudar. Precisamos eleger prioridades, e uma delas deve ser o combate à corrupção. Os corruptos são, na verdade, genocidas. São exterminadores de crianças, de doentes, de idosos. A patologia deles (nunca se saciar com o que têm) leva ao caos social, enquanto o corrupto, sorrindo, simpático e com seu colarinho branco, continua a posar com ar hipocritamente austero de homem de bem, insensível ao mal que causa.

A meu ver, a nova Lei nº 12.234, de 5 de maio de 2010, longe de resolver problemas, sobrecarregará o sistema prisional com fatos de pouca importância. Além disso, aumentará  os processos que deverão ser julgados pelos Tribunais Estaduais e Superiores. Dessa forma, pergunta-se, mais uma vez: a quem interessa uma Justiça Penal sobrecarregada?