Edição 285
A promoção do acesso à Justiça: aspecto fundamental para o pleno exercício da cidadania ambiental
3 de maio de 2024
Benedito Gonçalves Membro do Conselho Editorial e Ministro do STJ
Camile Sabino Servidora do STJ

Justiça Ambiental
O acesso à justiça desempenha papel crucial na redução das desigualdades sociais. Seu conceito está em constante expansão. Além do mero acesso ao sistema judiciário para resolver disputas legais, ele também abrange o Estado Democrático de Direito e a proteção dos direitos ambientais.
A justiça ambiental tem como desafio analisar as causas estruturais e civilizacionais da crise ambiental e promover a conscientização sobre a importância de transformações políticas, econômicas, sociais e éticas.
Não obstante haja isenção de custas judiciais para ações populares e ações civis públicas relacionadas ao meio ambiente, apenas isso não é suficiente para garantir o acesso à justiça ambiental. É necessário considerar também os custos de tempo para resolver essas disputas legais.
A atuação do poder econômico tem um impacto significativo na capacidade de produzir informações e sustentar argumentos em disputas ambientais, pois geralmente envolvem perícias complexas e caras. A natureza legal dessas disputas requer advogados especializados. Isso afeta diretamente os economicamente mais vulneráveis, indubitavelmente os mais prejudicados, pois possuem menos recursos financeiros para proteger seus interesses ambientais. Além disso, as dificuldades de acesso à informação, à participação pública e à justiça em questões ambientais contribuem para a vulnerabilidade das pessoas na distribuição dos custos e benefícios ambientais.
Cidadania ambiental – A cidadania ambiental requer a conscientização e o pleno exercício dos direitos ambientais, e busca garantir a distribuição justa dos riscos, custos e benefícios ambientais, sem considerar fatores como raça, renda e poder. Para alcançar esse objetivo é necessário criar condições estruturais que capacitem todas as pessoas como participantes ativos do gerenciamento ambiental. Aqueles com dificuldades em exercer a cidadania ambiental, como falamos, são os mais afetados pelos ônus e perigos ambientais, e, portanto, precisam ter acesso à justiça com mais frequência e intensidade. No entanto, esses excluídos encontram os maiores obstáculos ao buscar justiça.
A cidadania ambiental é a base para a justiça ambiental, especialmente quando se trata da distribuição justa do poder nas resoluções de questões ligadas ao meio ambiente. Conhecer os direitos ambientais fundamentais e ter a capacidade de exercê-los e defendê-los no sistema jurídico é essencial.
A Constituição Federal de 1988 introduziu princípios ecológicos no sistema jurídico brasileiro, como o art. 225, que expressa uma forte preocupação com a sustentabilidade e o uso consciente dos recursos naturais e trata da proteção do meio ambiente para as atuais e futuras gerações como um fundamento da nova ordem jurídica. O art. 170 da Carta Magna incluiu a defesa do meio ambiente como um valor que deve orientar a atividade produtiva no país, integrando a proteção ambiental às bases econômicas e sociais. A CF/88 também exigiu estudos de impacto ambiental no licenciamento de obras ou atividades que possam causar danos ao meio ambiente, em consonância com o princípio da prevenção.
No sistema jurídico brasileiro, a questão da legitimidade está, de certo modo, bem resolvida, pois a Lei 7.347/85, que estabelece a Ação Civil Pública, inclui uma ampla lista de legitimados para propor a ação, incluindo associações civis, facilitando o acesso à justiça e estendendo o exercício da cidadania ambiental no âmbito judicial. Os cidadãos individuais que não possuem legitimidade para propor a Ação Civil Pública podem utilizar a Ação Popular, recurso processual que também pode ser usado para proteger um interesse ambiental difuso.
Todavia, é importante ressaltar a necessidade de uma atualização da Lei 7.347/85, a fim de adequá-la, especialmente no que diz respeito à legitimidade ativa, aos princípios republicanos da cidadania ambiental estabelecidos pelos artigos 1o e 225 da CF/88. Portanto, a natureza difusa do bem ambiental requer uma revisão do conceito de legitimidade, que, de acordo com a norma constitucional, deve ser ampla e irrestrita, garantindo a titularidade coletiva do bem ambiental e o dever da coletividade de defendê-lo e preservá-lo.
Não há como falar sobre desenvolvimento social sem discutir a evolução da humanidade e a sua busca constante por melhores condições de vida, tanto individual quanto coletivamente. Nessa incessante busca, muitas vezes o homem abusa dos recursos naturais, resultando em danos ambientais, escassez de recursos e extinção de espécies animais, além de exclusão de pessoas mais vulneráveis, o que é considerado racismo ambiental.
O papel do STJ na construção da cidadania ambiental – A partir da Constituição de 88, o meio ambiente ecologicamente equilibrado passou a ser considerado um direito fundamental. Como resultado disso, várias leis foram promulgadas para regulamentar questões relacionadas ao meio ambiente, tais como a Lei de Crimes Ambientais (Lei 9.605/1998), a Política Nacional de Recursos Hídricos (Lei 9.433/1997) e o Código Florestal Brasileiro (Lei 12.651/2012).
Apesar das garantias proporcionadas tanto pela Constituição quanto pelas leis dela derivadas, o meio ambiente continua ameaçado, devido ao aumento da poluição, às dificuldades no acesso à água, às mudanças climáticas e ao desmatamento que resulta na perda de biodiversidade. Nesse contexto, o Poder Judiciário surge como protetor do interesse público, buscando equilibrar o direito garantido pela Constituição com sua efetivação.
A construção de um futuro sustentável, portanto, também depende dos precedentes estabelecidos pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ). Embora a política ambiental brasileira exista desde a Lei 6.938/1981, que instituiu a Política Nacional do Meio Ambiente, a CF elevou o tema ao mais alto nível do sistema normativo. A responsabilização do poluidor por danos ambientais em diferentes esferas (civil, administrativa e criminal) passou a ser discutida de maneira ampla, o que fortalece a prevenção e a reparação dos danos ao meio ambiente, evitando a impunidade e incentivando comportamentos ambientalmente positivos.
Nesse ponto, o STJ merece destaque na elaboração de inúmeros precedentes em diversas áreas relacionadas ao meio ambiente, como mineração, oceanos, meio ambiente urbano e rural, meio ambiente cultural, fauna e manguezais. A jurisprudência do STJ desempenha um papel essencial na concretização de deveres e direitos ambientais, uma vez que o tribunal é responsável pela interpretação e harmonização da legislação federal. Em várias decisões, o tribunal consolidou o entendimento de que a responsabilidade civil pela reparação do dano acompanha a propriedade, permitindo exigir essa responsabilidade do atual proprietário mesmo quando o dano foi causado pelo proprietário anterior. Esse entendimento resultou na Súmula 623.
No julgamento do Tema 1.204 dos recursos repetitivos, o STJ confirmou que as obrigações ambientais possuem natureza propter rem, tornando essa tese um precedente qualificado aplicável a todos os processos semelhantes.
No Tema 1.159 dos recursos repetitivos, o STJ estabeleceu a tese de que a validade das multas administrativas por infração ambiental não depende da imposição prévia de uma penalidade de advertência. A Corte também emitiu várias súmulas relacionadas ao direito ambiental, como a Súmula 652, a Súmula 613 e a Súmula 618.
Insta destacar as ações efetivadas pela Assessoria de Gestão Sustentável do STJ, as quais têm logrado grande êxito na promoção da defesa do meio ambiente e da sustentabilidade em sua atuação institucional.
Litígio climático – O número total de casos judiciais relacionados às mudanças climáticas aumentou em mais de duas vezes desde 2017 e está crescendo globalmente. Essas descobertas, divulgadas pelo Programa da ONU para o Meio Ambiente (PNUMA) e pelo Centro Sabin para Leis de Mudanças Climáticas da Universidade Columbia , demonstram que o litígio climático vem se configurando como uma parte fundamental para garantir a ação e justiça climáticas.
O relatório “Litígio Climático Global: revisão do status de 2023” foi baseado na análise de casos centrados na legislação de mudanças climáticas, políticas e ciência, coletados até 31 de dezembro de 2022 por meio de bases de dados de litígios sobre mudanças climáticas nos EUA e em todo o mundo. O documento foi publicado um dia antes do primeiro aniversário da declaração da Assembleia Geral da ONU de acesso a um ambiente limpo e saudável como um direito humano universal.
O relatório fornece uma síntese de casos-chave de litígio climático, incluindo desenvolvimentos históricos. À medida que o litígio climático aumenta em frequência e volume, o corpo de precedentes jurídicos cresce, estabelecendo um regime jurídico cada vez mais claro.
O número total de casos de mudanças climáticas mais do que dobrou desde o primeiro relatório, de 884 em 2017 para 2.180 em 2022. Embora a maioria dos casos tenha ocorrido nos EUA, o litígio climático está se espalhando pelo mundo, com cerca de 17% dos casos agora sendo relatados em países em desenvolvimento. Essas ações legais foram levadas a 65 órgãos ao redor do mundo: tribunais internacionais, regionais e nacionais, tribunais, órgãos quase judiciais e outros órgãos jurisdicionais, incluindo procedimentos especiais da ONU e tribunais arbitrais.
Os casos notáveis têm questionado as decisões governamentais com base na falta de coerência de projetos com os objetivos do Acordo de Paris ou com os compromissos de um país em alcançar emissões líquidas zero. A crescente conscientização sobre as mudanças climáticas nos últimos anos também tem impulsionado ações contra empresas – incluindo casos que buscam responsabilizar empresas de combustíveis fósseis e outros emissores de gases de efeito estufa por danos climáticos.
O relatório demonstra, ainda, como os tribunais estão estabelecendo uma forte conexão entre os direitos humanos e as mudanças climáticas. Isso corrobora com uma maior proteção dos grupos mais vulneráveis da sociedade, bem como a uma maior responsabilidade, transparência e justiça, forçando governos e empresas a buscarem metas mais ambiciosas de mitigação e adaptação às mudanças climáticas.
Para o futuro, o relatório prevê um aumento do número de casos relacionados à migração climática, casos apresentados por povos indígenas, comunidades locais e outros grupos desproporcionalmente afetados pelas mudanças climáticas, e casos que tratam da responsabilidade após eventos climáticos extremos.
Racismo ambiental – O ativista afro-americano Ben Chavis, que inclusive chegou a trabalhar ao lado do líder Martin Luther King Jr. na luta contra a segregação racial nos Estados Unidos, utilizou a expressão “racismo ambiental” (Environmental Racism) em 1982, durante protestos por justiça ambiental no condado de Warren, Carolina do Norte, embora haja registro de possível uso do termo na década 70. Nas últimas quatro décadas, Chavis emergiu como o “Padrinho do Movimento pela Justiça Ambiental”. Alguns afirmaram que Benjamin Chavis gritou: “isto é racismo ambiental!” no momento de sua prisão durante os protestos contra aterros em 1982, na Carolina do Norte (EUA).
No prefácio de um depoimento sobre o movimento pela justiça ambiental, no ano de 1993, Bem Chavis assim afirmou: O racismo ambiental é a discriminação racial na formulação de políticas ambientais. É discriminação racial na aplicação de regulamentos e leis. É discriminação racial no direcionamento deliberado de comunidades de cor para eliminação de resíduos tóxicos e na localização de indústrias poluentes. É discriminação racial no sancionamento oficial da presença de venenos e poluentes com risco de vida em comunidades de cor. E é a discriminação racial na história da exclusão de pessoas de cor dos principais grupos ambientalistas, conselhos de tomada de decisão, comissões e órgãos reguladores.
Infelizmente, mesmo após tantos anos da constatação de Chavis, observamos a crescente quantidade de atitudes racistas que demonstram a exclusão de negros e de determinados grupos vulneráveis, inclusive no contexto ambiental. Tal prática excludente é caracterizada por injustiça social e merece cada vez mais atenção. Frequentemente nos deparamos com comunidades inteiras destruídas, sem abrigo ou lugar para viver, devido à devastação causada pela natureza que foi abusada. Isso provoca constantes calamidades climáticas, resultando no surgimento dos refugiados ambientais, uma categoria de pessoas sem qualquer proteção jurídica.
Nas últimas décadas, testemunhamos inúmeras crises humanitárias que afetam diferentes regiões do planeta, sejam elas guerras, catástrofes naturais ou doenças. Essas crises têm sido responsáveis por uma das situações mais sérias, complexas e urgentes do mundo: a crise dos refugiados. Embora as guerras e conflitos tenham recebido atenção como os principais desencadeadores desse fenômeno, eles, apesar de importantes, não são a principal causa da maioria dos deslocamentos forçados e refúgios pelo mundo.
Contrariamente à crença popular, grande parte desses deslocamentos é resultado de desastres naturais, advindos sobretudo da degradação do meio ambiente. De acordo com notícia publicada no site do jornal espanhol El País, em outubro de 2021, o Banco Mundial projetou, por meio de relatório, que até o ano de 2050 poderá haver mais de 17 milhões de latino-americanos (2,6% dos habitantes da região ou o equivalente à população do Equador) deslocados pela mudança climática se não forem tomadas medidas concretas para frear seus efeitos. “Os migrantes climáticos se deslocarão de áreas menos viáveis, com pouco acesso à água e produtividade de cultivos, e de áreas afetadas pela elevação do nível do mar e pelas marés de tempestade”, diz o documento. As áreas que sofrerão o golpe mais duro, acrescenta, são as mais pobres e vulneráveis.
Sabemos que nem sempre esses refugiados são acolhidos. Desse modo, o racismo ambiental culmina no desprezo pela dignidade humana e na falta de aplicação dos Direitos Humanos, dos quais todos somos titulares.
É urgente a necessidade, portanto, de um novo enfoque proposto para o acesso à justiça, quando constatamos que grupos social e economicamente desfavorecidos, aqueles que são acometidos diretamente pelo racismo ambiental, têm maiores dificuldades para defender e representar seus direitos e interesses. São justamente esses grupos que suportam uma parcela desproporcional dos custos e riscos ambientais. Emerge a necessidade da garantia de amplo acesso à justiça, disponibilizando instrumentos e espaços democráticos para a gestão ambiental e resolução de conflitos e, por conseguinte, restaurando a equidade na distribuição dos custos e benefícios ambientais.
O acesso à justiça ambiental pode proporcionar aos grupos vulneráveis, em termos socioeconômicos, étnicos e informacionais, o empoderamento e emancipação, utilizando a possibilidade de levar suas demandas aos tribunais como uma estratégia para defender os seus direitos e influenciar nas decisões ambientais, direcionando políticas públicas e promovendo uma reinterpretação do sistema jurídico ambiental sob a lógica da justiça ambiental.
Conclui-se que combater o racismo ambiental e promover o acesso à justiça são aspectos fundamentais para o pleno exercício da cidadania ambiental, uma vez que os direitos ambientais inerentes a essa cidadania só podem ser efetivos se forem acessíveis e operacionalizados, especialmente quando violados por injustiças ambientais.
Notas______________________
1 (Disponível em: https://www.unep.org/pt-br/noticias-e-reportagens/comunicado-de-imprensa/o-litigio-climatico-mais-do-que-dobra-em-cinco-anos)
2 (Disponível em: https://wedocs.unep.org/bitstream/handle/20.500.
11822/43008/global_climate_litigation_report_2023.pdf?sequence=3)
3 (Tradução livre de: Chavis, Benjamin. “Foreword” in Confronting environmental racism: voices from the grassroots. 1993. Boston, Mass: South End Press. 31.)
4 (Disponível em: https://brasil.elpais.com/internacional/2021-10-31/os-desterrados-do-clima.html)
Conteúdo relacionado:
https://editorajc.com.br/2025/dedicacao-a-justica-promocao-da-igualdade-e-defesa-da-democracia/
https://editorajc.com.br/2025/dedicacao-a-justica-promocao-da-igualdade-e-defesa-da-democracia/