Edição 256
“A proficiência da jurisdição não se mede apenas pelos números”
7 de dezembro de 2021
Da Redação

Empossado Presidente do Tribunal Regional Federal da 2ª Região (TRF-2) em abril de 2021, o Desembargador Federal Messod Azulay Neto teve pela frente o duplo desafio de administrar um dos maiores tribunais do País em meio à maior crise sanitária dos últimos cem anos. Nessa entrevista à Revista Justiça & Cidadania, ele faz um balanço de seus primeiros meses no cargo, fala sobre as medidas em implantação – com destaque para o projeto de inteligência artificial – e comenta outros temas relevantes, como os aprendizados da pandemia e a expectativa com a chegada da tecnologia 5G ao País.
Revista Justiça & Cidadania – Qual é o balanço que o senhor faz dos seus primeiros meses na Presidência do TRF-2? Quais são os projetos que já implantou e quais ainda pretende implantar em sua gestão?
Desembargador Messod Azulay – Por óbvio, a pandemia de covid-19 marcou fortemente a pauta do nosso primeiro ano de gestão. A prioridade foi garantir a continuidade e a qualidade dos serviços que prestamos à sociedade, na vigência do regime de trabalho remoto. Diante disso, voltamo-nos para a incorporação e aperfeiçoamento dos recursos tecnológicos aplicados à jurisdição e à administração cartorial.
Regulamentamos, então, o sistema de audiências e julgamentos por videoconferência, implantamos o balcão virtual e demos suporte para a criação do Centro de Conciliação 100% digital, desenvolvido pelo Núcleo Permanente de Métodos Consensuais de Solução de Conflitos da 2ª Região, sob a coordenação do Desembargador Federal Ferreira Neves.
Além disso, o TRF-2 foi o primeiro, dentre os 93 tribunais do País, a implantar os núcleos de Justiça 4.0, com a estrutura prevista na Resolução nº 385/2021, do Conselho Nacional de Justiça.
Nossos dois núcleos instalados, respectivamente, na Seção Judiciária do Rio de Janeiro e na do Espírito Santo são especializados em matéria de saúde pública, cuja premência é inconteste, sobretudo no cenário de pandemia que ainda enfrentamos. Aqui é importante destacar que a efetivação desse projeto não se teria dado com tanta celeridade e sucesso sem a valiosa concorrência do Corregedor Regional da Justiça Federal da 2ª Região, Desembargador Federal Theophilo Miguel e dos diretores dos foros das Seções Judiciárias do Rio de Janeiro, Juiz Federal Osair Victor de Oliveira Junior, e do Espírito Santo, Juiz Federal Fernando Mattos.
RJC – Pode nos falar mais sobre o projeto de inteligência artificial do TRF-2, o Intelligentia? Ele será interoperável com outros sistemas semelhantes no Judiciário nacional?
DMA – De fato, a ideia é que a nossa ferramenta de inteligência artificial tenha capacidade de comunicação e troca de informações com sistemas congêneres do Judiciário. Inclusive, um dos critérios definidos para o desenvolvimento do projeto, cuja conclusão está prevista para os primeiros meses de 2022, é que ele ocorra em um ambiente de cooperação técnica com as casas de Justiça que possuem projetos de inteligência artificial implantados ou em elaboração.
O projeto Intelligentia, idealizado pelo Vice-Presidente do TRF-2, Desembargador Federal Guilherme Calmon, e promovido e apoiado pela Presidência do Tribunal, está sendo desenvolvido por nossa equipe de tecnologia da informação. Suas funcionalidades visam ao aperfeiçoamento da gestão de precedentes judiciais e de reconhecimento de temas incluídos nos sistemas de repercussão geral e demandas repetitivas. Além disso, a ferramenta digital auxiliará na análise de admissibilidade dos recursos especiais e extraordinários pela Vice-Presidência, e de questões com potencial para se transformar em demandas de massa. Com isso, o TRF-2 poderá antecipar medidas de prevenção à litigância, com o apoio do Centro Local de Inteligência da Justiça Federal.
Em suma, trata-se de um recurso tecnológico de apoio à jurisdição que deverá agilizar e tornar mais preciso o gerenciamento e, por conseguinte, a aplicação de precedentes na Justiça da 2ª Região, bem como a identificação de processos a serem sobrestados até a definição de repercussão geral ou recurso repetitivo pelos tribunais superiores. A consequência naturalmente esperável, portanto, é que se alcance, com tal ferramenta, maior segurança, certeza e isonomia nos julgados.
RJC – Quais são os aprendizados que o senhor já assimilou a partir da gestão de um tribunal em meio à grave crise sanitária? Quando a pandemia passar, o que vai voltar a ser como era antes e o que nunca mais será o mesmo no TRF-2 e na Justiça como um todo?
DMA – Juntamente com o sofrimento, a pandemia nos legou lições importantes. A primeira é a da imprescindibilidade dos recursos tecnológicos, que tornaram possível a continuidade dos nossos serviços, inclusive com incremento da produtividade durante a pandemia. Inegavelmente, não teríamos logrado fazê-lo sem o sistema processual eletrônico e-Proc, que contempla funcionalidades para a realização de todos os atos processuais on-line, bem como sem a possibilidade de realização de audiências e julgamentos por meio virtual.
Dessa forma, a pandemia acabou gerando uma mobilização que acelerou muito o processo de virtualização do Judiciário. Além disso, a crise serviu para ratificar o que já sabíamos: que contamos com um corpo de magistrados e servidores de excelência técnica e compromissado, que soube adaptar os sistemas e rotinas de trabalho à nova realidade com extrema rapidez.
Essa experiência bem sucedida leva-nos a crer na utilidade de incorporar definitivamente um regime de trabalho híbrido, coordenando o presencial e o remoto, inclusive por conta da sensível redução de gastos operacionais que obtivemos com o exercício das atividades a distância, o que é muito importante, dada a crescente pressão orçamentária que enfrentamos.
Outra lição que vale destacar é a da importância das parcerias interinstitucionais, tanto com órgãos do Judiciário quanto dos demais poderes. Como disse, não há expectativa de que a nossa desafiadora realidade orçamentária vá mudar, então temos, por exemplo, firmado convênios com prefeituras para instalação de varas e juizados especiais em imóveis cedidos pelo Executivo, e estabelecido acordos de cooperação técnica com outros tribunais para desenvolvimento de aplicativos e sistemas digitais.
RJC – Antes de ingressar na magistratura, o senhor participou da Comissão de Defesa, Assistência e Prerrogativas da OAB. O que a experiência de tantos anos como magistrado agregou ao seu entendimento sobre essa questão?
DMA – A Advocacia é uma atividade de fundamental função social e um dos eixos indissociáveis do sistema de Justiça, que se completa com a magistratura e o Ministério Público, sem vínculo de hierarquia entre os três. A atuação na jurisdição, após ter cumprido um longo percurso no exercício da advocacia e também na Comissão de Defesa, Assistência e Prerrogativas da OAB, sem dúvida permite uma compreensão mais ampla e extensiva das relações que se estabelecem dos dois lados do balcão da Corte.
Por um lado, tornam-se mais compreensíveis as prioridades e as angústias daqueles que cumprem o mister de defender as partes nos processos e, por outro, tem-se mais vívidas as dificuldades e limitações da atividade judicante, que é cercada por prazos e exigências de metas sempre crescentes e fatigantes.
Dito isso, cabe dizer que na Justiça Federal da 2ª Região vigora um ambiente de equilíbrio, respeito e urbanidade para com os advogados, assim como para com os procuradores públicos e privados e com as partes. São muito raras as representações dirigidas às Corregedorias Regional e Nacional que envolvam a violação às prerrogativas legais, que, ademais, são menos dos advogados do que da sociedade e do próprio processo, na medida em que favorecem o exercício pleno da ampla defesa.
RJC – Na sua avaliação, houve prejuízo às prerrogativas dos advogados, ao contraditório e à ampla defesa com as audiências telepresenciais? Houve também prejuízos à atuação dos magistrados?
DMA – Não creio que se deva falar propriamente em prejuízo, considerado todo o cuidado que os juízos de primeiro grau e os órgãos fracionários do TRF-2 têm se esmerado em conferir à condução das audiências telepresenciais, de sorte a garantir o cumprimento dos ritos e do direito ao contraditório e à ampla defesa.
Cabe, porém, refletir que o retorno às atividades presenciais certamente levará ganhos qualitativos às audiências e sessões de julgamento. Lembro que tivemos uma elevação de produtividade sob o regime remoto, mas a proficiência da jurisdição não se mede apenas pelos números. Assim, sabemos que há um desconforto, por exemplo, para o juiz criminal que se vê diante de uma sentença condenatória de um réu que ele sequer conheceu pessoalmente. E, por outro lado, também para o réu é inquietante ser condenado por um julgador que ele nunca viu senão pela tela do computador. As audiências e sessões por teleconferência são uma solução importante e têm sido extremamente valiosas durante as restrições pandêmicas, e com certeza ainda serão muito usadas em situações específicas. Mas não se poderá jamais prescindir da realização desses atos de forma presencial, como regra geral.
RJC – O senhor tem grande experiência no Direito das Telecomunicações. Qual é a expectativa com a chegada do 5G ao País? Quais são as repercussões legais esperadas? O modelo regulatório atual das telecomunicações será suficiente para lidar com os reflexos desse avanço tecnológico?
DMA – A entrada em operação da quinta geração da telefonia móvel é essencial para a economia e para os serviços públicos e privados no Brasil, razão pela qual a prioridade do momento deve ser a redução de eventuais entraves que possam retardar o processo. Contudo, é óbvio que a segurança jurídica deve ser garantida, com todas as cautelas, inclusive por ser fator de promoção da confiança por parte de investidores.
Nesse sentido, a Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD), cuja vigência se iniciou em setembro de 2020, deve ser vista como uma baliza fundamental para a implantação da tecnologia 5G no País. Trata-se de uma legislação consistente e abrangente, com força para prevenir e reparar eventuais abusos no uso dos dados dos usuários.
Isso é importantíssimo, visto que o 5G possibilitará uma circulação de dados digitais sem precedentes, com evidentes impactos na economia e na influência política que os grupos detentores da tecnologia poderão exercer. Sendo assim, o próximo passo é fortalecer e tornar realmente efetiva a aplicação da norma, que ainda é muito recente.
Acredito, ainda, que as agências reguladoras do setor estejam atentas aos efeitos práticos da introdução do 5G no Brasil e têm trabalhado para definir um regramento eficiente para a operação do sistema. Veja-se que a Agência Nacional de Telecomunicações (Anatel) já estabelece, por exemplo, os critérios técnicos para certificação e comercialização dos aparelhos capazes de funcionar com a tecnologia 5G.
Além disso, a portaria do antigo Ministério da Ciência, Tecnologia, Inovações e Comunicações, que firmou as diretrizes para a licitação das faixas de radiofrequências do 5G, condicionou a concessão a contrapartidas, como atendimento com banda larga móvel em cidades isoladas e áreas rurais, cobertura de rodovias federais também com banda larga móvel e implantação de redes de fibra óptica em municípios ainda não atendidos por esse recurso.