Edição 224
A prisão antecipada no modelo dogmático brasileiro
9 de abril de 2019
Ney Bello Desembargador federal no TRF 1a Região Professor na UnB
As prisões cautelares existem por razões instrumentais, são parcialmente vinculadas ao mérito do processo principal e, no caso das prisões preventivas, servem para proteger a sociedade da possibilidade de a) o crime continuar a ser cometido ininterruptamente, b) crime similar vir a ser cometido novamente no futuro, c) houver risco de fuga do autor e d) houver risco para a instrução penal ou para a efetividade da punição.
A nova redação do art. 312 do Código de Processo Penal (CPP) está assim disposta: “A prisão preventiva poderá ser decretada como garantia da ordem pública, da ordem econômica, por conveniência da instrução criminal, ou para assegurar a aplicação da lei penal, quando houver prova da existência do crime e indício suficiente de autoria.”
Por esta razão é que ofende ao vernáculo e ao Direito Processual Penal prisão preventiva cujo objetivo seja um conjunto de fatos passados, sem risco de fuga ou risco de aplicação posterior da pena, sem potencial probabilidade de continuidade, permanência ou nova ocorrência criminal. Ninguém se protege ou protege a sociedade do que já aconteceu, mas sim da perspectiva, em tese, de novo acontecimento ofensivo.
Ademais, a prisão cautelar preventiva não é prisão decorrente de condenação. As prisões têm natureza distinta e a razão para o encarceramento antes do cumprimento da pena só pode ser uma das quatro razões cautelares previstas no art. 312 do CPP.
Outra hipótese – ontologicamente diferenciada – é a prisão temporária, prevista na Lei no 7.960/1989, nas hipóteses de a) imprescindibilidade para a investigação, b) quando o indicado não tiver residência fixa ou não fornecer elementos necessários ao esclarecimento de sua identidade, decretadas quando houver fundadas razões, de acordo com qualquer prova admitida na legislação penal, de autoria ou participação do indiciado nos crimes que a própria lei especifica taxativamente.
A última hipótese legalmente admitida como cautela penal é a da prisão em flagrante, que necessita relaxamento na audiência de custódia dela decorrente ou conversão em prisão preventiva, acaso existentes os elementos do art. 312 do CPP. Estas hipóteses de recolhimentos cautelares possuem motivos específicos para seu decreto, que não se confundem com a gravidade do crime, seu grau de reprovação ou a robustez da prova indicando condenação futura.
A jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça (STJ) é repleta de precedentes que qualificam a prisão cautelar como cerceamento de liberdade necessário por razões instrumentais, jamais por antecipação de condenação.
Não se decreta prisão cautelar em razão da natureza do crime, em função da gravidade abstrata do delito ou do grau de reprovabilidade da conduta, já que tais argumentos são de mérito, não de cautela. Questões de mérito acerca do ato serão tratadas na sentença, quer para exarar decreto absolutório, quer por razões condenatórias. É na dosimetria da pena que a lei autoriza as argumentações de reprovação social da conduta, não subsistindo a hipótese de decreto de prisão cautelar pela gravidade do delito.
A prisão cautelar deve ser decretada, em primeiro lugar, para evitar a reiteração da conduta criminosa. Se ficar latente a potencial probabilidade do réu continuar a delinquir, será necessária prisão preventiva para mantê-lo encarcerado, impedindo que continue a praticar ilícitos. Também é possível o cerceamento de liberdade se o crime for permanente e ainda estiver sendo cometido.
Segundo a jurisprudência do STJ, é fundamental comprovar o risco concreto – não apenas abstrato – de que o réu possa novamente cometer crimes, ou indicar razões fundadas de sua permanência ou continuidade.
A prisão preventiva também poderá ser decretada para impedir a influência do investigado na instrução e na produção de provas. Sói acontecer do réu destruir elementos probatórios e corromper a prova testemunhal, por ameaça ou por cooptação. Da mesma maneira, será o caso de decreto preventivo quando o réu concretamente demonstrar tendência à destruição de provas documentais. Nestas hipóteses será sempre caso de decretação de prisão preventiva, pois a necessidade do encarceramento estará presente, haja vista a intromissão ilegal do denunciado – ou investigado – na atuação probatória da justiça criminal.
Outra hipótese de decreto de prisão cautelar – na modalidade de prisão preventiva – é a decorrente da possibilidade de fuga do acusado, para se furtar à atuação da lei penal. O sentido desta hipótese de prisão é garantir a futura aplicação da lei. A fuga, embora corresponda a sentimento de reação ao Estado-Policial moralmente justificável, é tratada pelo Direito Processual Penal como elemento justificante do prévio encarceramento, pois é dever do Estado zelar pelo cumprimento futuro de suas próprias decisões. Este risco de fuga, entretanto, deve ser concreto e demonstrado, e não abstratamente considerado.
Questão relevante diz com a ideia de garantia da ordem pública ou da ordem econômica que, não raro, confundem questões de cautela com juízo de mérito, haja vista jogar a função dogmática de cláusula aberta que, por via transversa, arrisca entronizar o senso comum, a reação social ao fato e a reprovação genérica ao ato como razões de encarceramento preventivo.
O argumento da garantia da ordem pública pode deixar a decisão técnica muito próxima do senso comum e do desejo disperso da sociedade. Não raro, cuida-se da possibilidade de prisão cautelar em razão do clamor público, o que deixa de guardar senso concreto de pertinência com a natureza de cautela do instituto da prisão preventiva.
Por esta razão, o STJ tem tentado objetivar o conceito, dando densidade à ideia de garantia da ordem pública e, de forma bastante rotineira, combinando a garantia da ordem pública com outra hipótese de cabimento da prisão preventiva. São causas encartadas na ideia de garantia da ordem pública: uso de arma de fogo combinado com a gravidade concreta do delito e possibilidade de reiteração; temor das testemunhas; reiteração delitiva; risco de reiteração; proteção da sociedade; fuga e temor da vítima; gravidade decorrente da quantidade de droga que abala a organização social; periculosidade decorrente do modus operandi.
A catalogação jurisprudencial acerca do que significa prender para garantir a ordem pública é assaz importante, até para prevenir a dogmática da invasão do senso comum e de exigência popular por encarceramento, que representam justificação deficiente para a prisão cautelar. Essa diferenciação é importante, dentre outras razões, porque o sentimento popular, a moral coletiva ou o moralismo da sociedade não podem servir de fundamento para o cerceamento de liberdade, sob pena de rompermos a integridade ou a dimensão contramajoritária dos direitos fundamentais. A pressão da maioria sobre as condutas não pode subjugar o direito fundamental à liberdade, que joga a função dogmática de trunfo contra a maioria. Esta, inclusive, é uma das razões pelas quais havia – e ainda há – muita oposição à decretação de prisão preventiva por clamor público.
A análise dos fundamentos das decisões do STJ indica que ao decretar – ou manter – prisões preventivas sob o fundamento da garantia da ordem pública, a Corte inexoravelmente sustenta as decisões em questões que ela mesma adjetiva como de mérito, como a reprovabilidade do delito e a sua gravidade em abstrato.
Analisados diversos arestos de 2018 é possível perceber, contudo, que este grau de reprovação e esta gravidade do delito adquirem dois matizes. Por um lado são critérios que se combinam com questões objetivas, como uso de arma, possibilidade de reiteração ou abalo provocado na sociedade onde fora praticado. De outra banda, as decisões sustentam argumentativamente que a gravidade tratada é a concreta e não a abstrata, e o grau de reprovação não é em tese, mas aquele que fora observado na própria sociedade em relação ao fato. Dessa forma, só há necessidade de garantia da ordem pública quando os atos são de extrema reprovação social e de profunda gravidade, de tal sorte a incitá-lo.
O argumento é que só há necessidade de garantia da ordem pública quando há sentimento de reprovação e gravidade reconhecida em patamares elevados, o que conduz ao raciocínio de que em uma sociedade tomada por ambiente de comoção nas redes sociais e com os desejos e os sentimentos conduzidos por uma onda social via rede, quem faz a fake news ou controla o efeito manada constrói o medo da desordem pública, a necessidade da garantia desta mesma ordem, e permite e justifica a decretação da prisão preventiva com base no desejo coletivo que pode ser construído em bases imaginárias.
Por fim, após duas decisões do Supremo Tribunal Federal (STF) – HC 68.726/1991, Rel. Ministro Nery da Silveira, HC 126.292/2016, Rel. Ministro Teori Zavaski – desfazendo a proeminência do precedente HC 84.078/2009, Rel. Ministro Eros Grau, diversos julgados do STJ e também decisões dos Tribunais de Apelação se permitem antecipações de cumprimento de pena, antes do trânsito em julgado.
A antecipação do momento da execução da condenação, que começaria antes do trânsito em julgado – mas na pendência de recurso sem efeito suspensivo, esgotadas as vias ordinárias – não se confunde com prisão cautelar. É a própria execução da pena que se inicia, razão pela qual não se discutem quaisquer elementos instrumentais, nem condições pessoais ou tópicas do fato delituoso. Basta a existência do título executório que é a decisão de segunda instância. Não se cuida de prisão cautelar que tem valorações próprias e individuais, mas efeitos automático e universal de ato formal que é a condenação nos Tribunais de Apelação ou Cortes Especial e Suprema, originariamente. Isso implica execução antecipada, quer de decisões condenatórias em apelações, quer de decisões condenatórias em única instância, quando for o caso de réu com prerrogativa de foro.
A execução pode ser tomada como provisória, ou como definitiva na pendência de recurso sem efeito suspensivo, mas se dá antes do trânsito em julgado, após o esgotamento das instâncias ordinárias, e efetivamente não se mistura com as hipóteses de cabimento da prisão cautelar.
É dogmaticamente sustentável a prisão após decisão de segunda instância por que não há óbice constitucional, na medida em que o art. 5o, LVII, da Carta Magna prescreve que “ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado da sentença penal condenatória”, mas não afirma que a pena só começará a ser executada após a declaração definitiva de culpa.
A construção levada a efeito pelo STF tão somente deixa claro que no modelo constitucional brasileiro é possível começar a execução penal antes da certeza da culpa. Por mais que pareça consequência racionalmente frágil, ou moralmente questionável, ela é dogmaticamente sustentável.
O óbice não é constitucional, mas sim de ordem legal, na medida em que o art. 283 do CPP prescreve que “ninguém poderá ser preso senão em flagrante delito ou por ordem escrita e fundamentada da autoridade judiciária competente, em decorrência de sentença condenatória transitada em julgado ou, no curso da investigação ou do processo, em virtude de prisão temporária ou prisão preventiva”.
Assim, ao determinar a prisão para execução da pena antes do trânsito em julgado da decisão, o Judiciário estará desconsiderando a letra expressa do CPP, na medida em que a disposição é clara.
A construção argumentativa tem por base o mesmo CPP que estabelece a ausência de efeito suspensivo para recursos especial e extraordinário. Prescreve o dispositivo: “Art. 637. O recurso extraordinário não tem efeito suspensivo, e uma vez arrazoados pelo recorrido os autos do traslado, os originais baixarão à primeira instância, para a execução da sentença”.
A interpretação conjunta de ambos os artigos permite crer que, não havendo efeito suspensivo no recurso interposto, executa-se desde já a decisão de segunda instância, pois os efeitos decorrentes do ulterior trânsito em julgado seriam antecipados, em razão de não haver óbice à sua realização.
Por outro lado, o próprio STJ entendeu que a necessária execução provisória, ou definitiva sem efeito suspensivo, após decisão condenatória de segunda instância não se dá nos casos de penas alternativas, somente quando for o caso de penas privativas de liberdade.
Conforme o HC 436.307/SP, “considerando a ausência de manifestação expressa da Corte Suprema e o teor do art. 147 da Lei de Execução Penal (LEP), não se afigura possível a execução da pena restritiva de direitos antes do trânsito em julgado da condenação”, pois “no caso das penas restritivas de direitos, a Corte Especial deste STJ manteve o entendimento de que não cabe execução provisória antes do trânsito em julgado, nos termos do art. 147 da LEP”.
O posicionamento do STJ prioriza a ideia de que qualquer antecipação de execução só pode se dar nos exatos termos da decisão do STF. Não caberia ao STJ afirmar o que o STF não afirmou. Contudo, parece razoável executar logo as penas que não implicam encarceramento, na medida em que são menos gravosas do que as privativas de liberdade. Não parece ser correto que o condenado à pena mais gravosa comece a cumprir a segregação imediatamente após a decisão da Corte de Apelação e, ao condenado a pena mais branda, alternativa, lhe seja imposto o cumprimento somente após decisão do STF com trânsito em julgado.
Diversas decisões monocráticas do STF são no mesmo sentido deste entendimento. No mesmo sentido, e em momen1to posterior à fixação de entendimento da Terceira Seção do STJ, decisão da Primeira Turma do STF – por maioria de votos e vencido o Ministro Marco Aurélio – veio a lume, ratificando a posição segundo a qual a execução do julgado antes da decisão definitiva transitada em julgado se dá para todas as modalidades de pena aplicadas. Cuida-se do Ag.Reg. no RE 1.161.581 Relator Ministro Alexandre de Moraes.
Esse é o modelo dogmático ao qual estamos adstritos no sistema judicial brasileiro, no que diz respeito à prisão antes do trânsito em julgado da condenação. Contudo, breve análise do comportamento dos órgãos jurisdicionais permite observar que as prisões cautelares e a prisão por execução provisória ou definitiva na inexistência de efeito suspensivo vêm ganhando foros de normalidade e seletividade, não raro, ofendendo a própria previsão legal, tornando-se instrumento de discurso moral – ou de cunho ideológico – sustentado em ativismo judicial penal que se opõe às garantias da modernidade e aos direitos fundamentais.
Notas_____________________________
1 RHC 95.282/BA, Rel. Ministro Ribeiro Dantas, Quinta Turma, julgado em 24/05/2018, DJe 30/05/2018; HC 438.217/SP, Rel. Ministro Joel Ilan Paciornik, Quinta Turma, julgado em 17/05/2018, DJe 01/06/2018; HC 424.605/RS, Rel. Ministro Felix Fischer, Quinta Turma, julgado em 17/05/2018, DJe 23/05/2018; AgRg no HC 445.064/SP, Rel. Ministro Reynaldo Soares da Fonseca, Quinta Turma, julgado em 03/05/2018, DJe 08/05/2018; HC 434.236/SP, Rel. Ministro Antonio Saldanha Palheiro, Sexta Turma, julgado em 24/04/2018, DJe 02/05/2018.
2 HC 444.157/CE, Rel. Ministro Reynaldo Soares da Fonseca, Quinta Turma, julgado em 24/05/2018, DJe 01/06/2018.
3 RHC 89.176/BA, Rel. Ministro Sebastião Reis Júnior, Sexta Turma, julgado em 22/05/2018, DJe 06/06/2018; RHC 86.739/BA, Rel. Ministro Felix Fischer, Quinta Turma, julgado em 05/06/2018, DJe 08/06/2018.
4 HC 445.117/MG, Rel. Ministro Antonio Saldanha Palheiro, Sexta Turma, julgado em 22/05/2018, DJe 04/06/2018.
5 HC 448.229/SP, Rel. Ministro Felix Fischer, Quinta Turma, julgado em 05/06/2018, DJe 08/06/2018.
6 RHC 97.517/RS, Rel. Ministro Rogério Schietti Cruz, Sexta Turma, julgado em 15/05/2018, DJe 29/05/2018 e HC 441.672/SP, Rel. Ministro Ribeiro Dantas, Quinta Turma, julgado em 22/05/2018, DJe 30/05/2018
7 HC 417.546/SP, Rel. Ministra Maria Thereza de Assis Moura, Sexta Turma, julgado em 22/05/2018, DJe 04/06/2018 e RHC 94.421/SP, Rel. Ministro Reynaldo Soares da Fonseca, Quinta Turma, julgado em 17/05/2018, DJe 30/05/2018.
8 HC 442.077/SP, Rel. Ministro Rogério Schietti Cruz, Sexta Turma, julgado em 17/05/2018, DJe 01/06/2018.
9 HC 446.302/MG, Rel. Ministro Jorge Mussi, Quinta Turma, julgado em 22/05/2018, DJe 29/05/2018.
10 HC 436.006/SP, Rel. Ministro Joel Ilan Paciornik, Quinta Turma, julgado em 17/05/2018, DJe 01/06/2018 e HC 435.059/RJ, Rel. Ministro Néfi Cordeiro, Sexta Turma, julgado em 24/04/2018, DJe 11/05/2018.
11 Redação dada pela Lei no 12.403/ 2011.
12 Rel. Ministro Reynaldo Soares da Fonseca, julgado em 16/08/2018, DJe 24/08/2018.
13 RE 1158593, Relator Min. Celso de Mello, julgado em 24/10/2018; RE 1169582, Relator, Min. Alexandre de Moraes, julgado em 30/10/2018; RE 1153920, Relator Min. Luiz Fux, julgado em 23/11/2018; RE 1172224, Relatora Min. Cármen Lúcia, julgado em 18/12/2018.