A pena de talião e o STF

31 de março de 2009

Membro do Conselho Editorial e Desembargador aposentado do TJERJ

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É a cada dia mais perceptível um perigoso distan­ciamento entre a norma jurídica, a realidade social e o senso natural de justiça, inerente ao ser humano, qualquer que seja sua atividade profissional ou grau de instrução.
A escalada intolerável da violência, que a todos nós fere e ameaça, está gerando, na população, um sentimento compreensível de vingança contra os criminosos, uma espécie de renascimento da pena de talião — olho por olho, dente por dente —, cominada no Código de Hamurabi, há cerca de dois mil anos antes de Cristo.
A “vingança privada”, que perpetua a violência e jamais a reduziu, passou a ser a receita milagrosa que, supostamente, nos protegeria contra aqueles que infringem a lei penal.
Isso explica a indignação de parcela expressiva dos brasileiros contra a histórica e corajosa decisão do Supremo Tribunal Federal, guardião maior de nossa Constituição, de assegurar aos réus o direito de permanecer em liberdade, até que transite em julgado a sentença condenatória, em respeito aos princípios da presunção de inocência, da preservação da dignidade humana e da ampla defesa, ali consagrados.
Manifestações virulentas inundaram as páginas dos veículos de comunicação, sempre desaguando nas costumeiras críticas ao Poder Judiciário, como se a ele incumbisse garantir a segurança pública.
A dolorosa luta, travada nos últimos séculos, pela conquista dos direitos humanos, passou a ser quase execrada pela população, que os imagina voltados apenas para a proteção
dos criminosos, ignorando e abandonando as suas vítimas.
É preciso compreender, sem a distorcida ótica da paixão e do medo, que tão ou mais violenta que a mão que nos agride é a que se levanta contra os princípios e valores fundamentais que a vontade coletiva do povo inscreveu em sua Carta Magna.
Muitos brasileiros se imolaram, na resistência ao Regime Militar, para assegurar a construção de um Estado Democrático de Direito, alicerçado em valores fundamentais, dos quais a dignidade humana é o mais importante.
O sistema recursal, a desaguar, em última instância, nos Tribunais Superiores, foi idealizado para minimizar os riscos dos erros judiciários, inevitáveis em decorrência da  falibilidade humana, e deve ser preservado, para que só se restrinja a liberdade individual quando exauridos todos os recursos.
Por outro lado, a falência do sistema prisional brasileiro, que a ninguém ressocializa, e, ao revés, aperfeiçoa os presos, na prática infracional, não recomenda que se inicie o cumprimento da pena, enquanto penderem os recursos.
A população brasileira, infelizmente, acusa o Poder Judiciário, que considera tolerante e benevolente com os criminosos, deixando-os em liberdade, esquecida de que não são os magistrados que elaboram as leis e cominam as penas, cumprindo-lhes apenas aplicá-las, especialmente em obediência aos princípios constitucionais.
Ao se divulgar a notícia do polêmico julgamento, com verdadeira comoção social, não se deu o mesmo e necessário destaque ao fato de ele não assegurar, em caráter absoluto, a liberdade a todo e qualquer acusado, até o trânsito em julgado da sentença, reservando-se aos juízes, diante do caso concreto, o direito de decretar e manter as prisões preventivas, temporárias e em flagrante delito, quando presentes os pressupostos que a autorizam.
Em qualquer fase da instrução criminal, caberá a prisão preventiva, decretada pelo juiz, de ofício ou a requerimento do Ministério Público.
Poderá ela ser decretada como garantia da ordem pública, da ordem econômica ou para assegurar a aplicação da lei penal, desde que haja prova da existência do crime e indício suficiente de autoria, segundo a regra do artigo 312 do Código de Processo Penal
É importante lembrar que o juiz pode de novo decretar a prisão preventiva, se, antes, já a tiver revogado e se sobrevierem razões que a justifiquem, o que traduz eficiente mecanismo de proteção social.
A nova ordem jurídica, principiológica, implantada após o advento da Constituição Federal de 1988, confere maior discricionariedade aos juízes, para que, diante do caso concreto, apliquem a lei segundo os valores fundamentais que hoje pairam soberanamente, até mesmo, sobre o texto da lei.
Mas, não se pode submeter o juiz ao clamor popular, levando-o a violar esses princípios, ainda mais em matéria que envolve a liberdade individual, por temer a repercussão da sentença e a crítica da maioria da sociedade.
Já se disse que aos juízes só se admite um medo: o medo de ter medo.
Os ministros que adotaram o entendimento, certo ou erradamente, sabiam que iriam provocar, contra eles, as mais violentas reações populares, mas preferiram se manter fiéis ao texto da Constituição, que juraram defender.
Ao invés de execrá-los, é preciso compreender que o desejo de vingança, que não traduz a realização da justiça, jamais resolverá o grave problema da violência, cujas verdadeiras causas não são enfrentadas pelo Estado, que as vem perpetuando, com sua inércia e incompetência.
A reação da opinião pública contra a decisão revela a difícil compatibilização entre o comando da lei e a vontade popular, muitas vezes plasmada pela mídia, nem sempre bem informada ou responsável.
É evidente que as leis não estão engessadas pelo tempo, tornando-se imutáveis. Uma sociedade como a nossa, em vertiginosa transigência, está sempre desafiada a promover a adaptação dos modelos do passado à nova realidade.
O caráter dinâmico da norma jurídica, cujas coordenadas fundamentais são o tempo e o espaço, está a exigir uma releitura do atual sistema penal, no sentido de criar mecanismos mais eficazes de proteção social.
Mas, enquanto isso não ocorrer, não podemos retroceder à barbárie, defendendo os linchamentos e a pena de morte, que em nenhum outro lugar lograram reduzir a criminalidade.
A indiferença social, o desamor, a falência do sistema educacional e de saúde, o desemprego, a miséria, a corrupção e o amolecimento ético, não são as únicas, mas, certamente, as principais causas da violência, as quais temos o dever de combater, com a mesma energia e indignação.
Outro princípio inserido na Constituição é o da solidariedade social, o que nos torna corresponsáveis pela construção de uma sociedade mais justa e fraterna.
O Padre Antônio Vieira, em famoso sermão, proferido há mais de 400 anos, nos advertia que Deus há de nos pedir contas de tudo que fizermos, mas muito mais estreita conta do que deixamos de fazer.
De nada adiantará clamar por vingança, enquanto não nos dispusermos a participar, efetivamente, para romper o círculo vicioso da violência que se perpetua com o combustível da indiferença social e do individualismo perverso e comodista.
O polêmico julgamento da Corte Suprema deve ser objeto de profunda reflexão e não de medo irracional, constituindo uma imperdível oportunidade para um exame coletivo de consciência, para descobrir e desvendar suas mensagens ocultas, a nos convocar para participar de um verdadeiro processo de resgate ético e político da sociedade brasileira.
Esqueçamos o talião, assim como o fez a maioria dos ministros, e vamos descobrir, como Quixotes modernos, o que será preciso fazer para construir, com a argamassa da energia de nossos sonhos, a utopia do possível.