A necessidade de uma cultura de desjudicialização

25 de agosto de 2017

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A mediação é importante meio de resolução de conflitos entre particulares e destes com a Administração Pública, com o duplo propósito de reduzir a litigiosidade e tornar mais efetiva a distribuição da justiça. O marco legal sobre o tema pode contribuir de modo decisivo para o alcançar de tal desiderato.

Responsável por dispor da mediação entre particulares e da autocomposição de conflitos no âmbito da administração pública, a Lei no 13.140/15 insere-se no quadro da terceira onda renovatória do acesso à justiça – conceito que pode ser delimitado como o sistema pelo qual os cidadãos reivindicam direitos e resolvem litígios sob o auspício do Estado1. O acesso ao Poder Judiciário é o “requisito fundamental – e mais básico dos direitos humanos – de um sistema jurídico moderno”2.

Contudo, o simples demandar em juízo é insuficiente para concretizar este valor que, na Constituição Federal de 1988, encontra assento nos incisos LIV (devido processo legal), LV (contraditório e da ampla defesa), LXXIV (assistência judiciária integral e gratuita) e LXXVIII (razoável duração do processo). O acesso à justiça faz-se realidade somente se as partes podem efetivamente resolver os conflitos e concretizar os direitos de forma igualitária e se o resultado da demanda atende os litigantes da forma mais justa possível, dentro do que é o seu direito.

O acesso à justiça expandiu-se primeiro mediante os serviços de assistência judiciária, por meio da qual os sistemas jurídicos garantiam prestação jurídica a populações menos favorecidas. No Brasil, as regras para a concessão de assistência foram fixadas pela Lei no 1.060/50, parcialmente revogada com o Novo Código de Processo Civil, e encontram fundamento na Constituição Federal de 1988. A segunda onda renovatória deu-se com a valorização da representação judicial dos interesses difusos, ensejando a reinterpretação das concepções tradicionais do processo, a exemplo de legitimidade, vinculada à noção de lesão individual, e coisa julgada, até então restrita às partes integrantes da lide. Nesta fase, foram desenvolvidos instrumentos de defesa dos interesses coletivos, a exemplo da ação civil pública, da ação popular e do mandado de segurança coletivo.

A terceira onda destacou-se pela ênfase em uma acepção mais ampla de acesso à justiça se comparada às duas primeiras, explorando ampla variedade de reformas: alteração das formas do procedimento, redesenho da estrutura dos tribunais, transformações no direito material para facilitar a resolução do litígio e até mesmo evitá-lo e, por fim, a utilização de meios privados ou informais de solução de conflito3. Deixou-se de preocupar com questões meramente formais de representação judicial para privilegiar o conjunto de instituições, mecanismos, pessoas e procedimentos utilizados no processamento e no julgamento, ou até mesmo na prevenção, dos conflitos.

Como todo serviço público, a adequação da tutela jurisdicional pode ser medida por meio de três critérios: efetividade, eficiência e justiça4. Será efetivo o procedimento que oferecer decisões razoáveis dentro de um prazo adequado e a um custo proporcional aos recursos dos litigantes e do Poder Judiciário. A eficiência será concretizada caso os recursos públicos e privados não forem desperdiçados, mas sim maximizados. Por fim, será justo o processo que distribuiu os recursos entre as partes de forma isonômica.

A crescente utilização de meios alternativos de resolução de conflito, com ênfase ao uso da medição, é resposta do processo civil às demandas da sociedade por: i) simplificação dos procedimentos; ii) redução dos custos decorrentes da demora no trâmite processual; iii) melhora qualitativa do provimento jurisdicional; e iv) efetividade da tutela judicial. Não adianta franquear o acesso à justiça se for impossível obter resultados satisfatórios.

Marco Legal da Mediação, a Lei no 13.140 institucionalizou as práticas de mediação já existentes no País, ampliando e estimulando seu emprego na resolução de conflito entre particulares ou entre particulares e o Poder Público, desde que estejam em juízo direitos disponíveis ou indisponíveis que admitam transação5. Em contraste com o rigor que é característico do processo judicial, a mediação pauta-se pela informalidade, evitando-se a excessiva burocratização e reforçando-se a autonomia da vontade das partes. A fim de evitar que a mediação estenda-se demasiadamente, a Lei estabelece que o procedimento deverá ser concluído no prazo de 60 (sessenta) dias6, admitindo a prorrogação apenas se for de comum acordo entre as partes.

Informalidade e autonomia da vontade são apenas alguns dos princípios orientadores da mediação. Na forma do artigo 2o da Lei, o processo deverá se pautar pela imparcialidade do mediador, pela isonomia entre as partes, pela oralidade, pela busca do consenso, pela confidencialidade e pela boa-fé.

Importante novidade trazida na Lei no 13.140 é a cláusula compromissória de mediação: havendo previsão contratual de que os eventuais conflitos serão primeiros submetidos à resolução consensual, as partes deverão atender à primeira reunião de mediação antes de ingressar com uma ação judicial, no teor do artigo 1o, §2o, do Marco Legal7. Também está prevista legalmente a criação pelos Tribunais de centros judiciários aos quais serão encaminhados todos os processos passíveis de serem mediados8, bem como a criação de cadastro de profissionais habilitados e autorizados a atuar em mediação9. Quanto à Administração Pública, a Lei inova ao permitir à advocacia pública instaurar, de ofício ou mediante provocação, processo de mediação de conflitos11.

O Novo Código de Processo Civil enuncia, de antemão, que “a conciliação, a mediação e outros métodos de solução consensual de conflitos deverão ser estimulados por juízes, advogados, defensores públicos e membros do Ministério Público, inclusive no curso do processo judicial” – nos termos do artigo 3o, §3o. Após discorrer sobre os conciliadores e mediadores judiciais ao longo dos artigos 165 a 175, inclusive repisando os princípios que informarão a conciliação e mediação12, o novo código disciplina exaustivamente a audiência de conciliação ou de mediação.

O artigo 334 do Código de Processo cristaliza os esforços do legislador em prestigiar a célere resolução do conflito. Tão logo receba a exordial, onde o autor da demanda deve desde já declinar se possui interesse ou não na autocomposição, o juiz deverá designar a audiência com antecedência mínima de 30 (trinta) dias, sendo o réu citado até 20 (dias) antes da sua ocorrência. Poderá o requerido, contudo, apresentar ao juiz seu desinteresse na conciliação ou mediação, desde que o faça 10 (dez) dias antes da audiência. Se uma das partes faltar à audiência sem justificativa, o parágrafo oitavo do artigo 334 estipula que o não comparecimento “é considerado ato atentatório à dignidade da justiça e será sancionado com multa de até dois por cento da vantagem econômica pretendida ou do valor da causa, revertida em favor da União ou do Estado”. A audiência apenas deixará de ser realizada se as partes manifestarem por expresso seu desinteresse ou quando não for admitida a autocomposição13.

A composição consensual deixou de ser mera discricionariedade do julgador ou simples opção do jurisdicionado. Cuida-se de obrigação legal.

Os benefícios na utilização de meios alternativos de resolução de conflito compreendem o desafogamento do Poder Judiciário, a rapidez na solução dos processos, a participação ativa dos sujeitos e a democratização do sistema de Justiça. Em que pesem as vantagens, a mediação ainda é de utilização tímida pela advocacia brasileira por razões tais quais a escassa doutrina sobre o assunto, o baixo número de Faculdades de Direito que incluam os métodos alternativos nos currículos e a cultura do litígio. As três circunstâncias estão intimamente relacionadas e deverão ser enfrentadas juntas. Para mudar a mentalidade do conflito, é necessário que as faculdades de Direito ensinem aos alunos a mediação, que não mais é um opcional da prática forense. O ensino, por sua vez, apenas será adequado e efetivo com uma produção acadêmica sobre o assunto, dedicada a pensar e repensar os métodos alternativos de resolução de conflito.

A mediação coloca-se como o instrumento extrajudicial de composição de conflito cujo ponto de partida é a convergência, e não a divergência, entre os interesses dos litigantes. Por serem os maiores conhecedores das peculiaridades do caso e principais interessados no seu desfecho, as partes são autônomas para deliberar sobre a construção das próprias soluções de forma satisfatória. O papel do mediador é de agente catalisador, auxiliando no mapeamento dos interesses comuns e dos pontos passíveis de convergência, mas sem participar da decisão ou influenciar atitude: “nisso se baseia sua imparcialidade; é imparcial porque não resolve nem decide”14.

A edição de um Marco Legal da Mediação é, per se, um avanço significativo na direção de uma cultura de “desjudicialização”, em que as partes litigantes enxergam-se a um só tempo atores e destinatários do processo judicial. Os méritos do diploma legal devem-se ao brilhante trabalho do Ministro do Superior Tribunal de Justiça Luis Felipe Salomão na presidência da Comissão de Juristas do Senado encarregada da elaboração do projeto de atualização da atual Lei de Arbitragem e do anteprojeto do primeiro Marco Legal da

Mediação. Também do Tribunal da Cidadania, o Ministro Marco Buzzi é um tradicional defensor e entusiasta do potencial dos métodos alternativos de resolução do conflito em auxiliar o Poder Judiciário, participando do Movimento da Conciliação desde seu início, em 2006, e presidindo o grupo de trabalho do Conselho Nacional de Justiça que criou os novos parâmetros curriculares para a formação de conciliadores e mediadores.

A solução construída de comum acordo diante de uma situação de conflito perpassa por um processo de conhecimento e diálogo entre os litigantes, cuja relação deixa de ser de antagonismo para assumir traço de parceria na formulação do consenso. Pensar soluções pacíficas e duradouras aos litígios travados no seio da sociedade não deve ser monopólio do Estado. Quando a comunidade participa ativamente da pacificação social por meio de processos judiciais, os cidadãos emancipam-se e irmanam-se na busca por justiça.