A Justiça do Trabalho

5 de julho de 1999

Titular da Academia Brasileira de Letras Jurídicas Ex-ministro do Tribunal Superior do Trabalho Ex-ministro do Trabalho e Previdência Social

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Na atual polêmica sobre a Justiça do Trabalho, afigura-se-me que as causas do inegável retardamento nos julgamentos do litígios que lhe são submetidos estão sendo apresentadas de forma equivocada. E alguns dos que se tem manifestado a respeito do tema propõem soluções inadequadas.

A Justiça do Trabalho foi instalada a 1º de maio de 1941, vinculada administrativamente ao então Ministério do Trabalho, Indústria e Comércio. A Constituição de 1946 integrou os seus órgãos no Poder Judiciário, com a competência de instituir ou rever condições de trabalho nos processos de dissídios coletivos, isto é, com o chamado “poder normativo” que, no dizer do internacionalmente conceituado Pia Rodriguez, nada mais é do que uma forma de arbitragem compulsória institucionalizada num tribunal.

As Constituições de 1967/69 e 1988 mantiveram a competência da Justiça do Trabalho, inclusive para os dissídios coletivos tendo a vigente facultado às partes conflitantes escolherem, por consenso, a via da arbitragem.

Apesar do gigantismo da organização judiciária do trabalho, composta de 1.092 Juntas de Conciliação e Julgamento vinte e quatro Tribunais Regionais e o Tribunal Superior do Trabalho, os processos que percorrem os três graus de jurisdição consomem, em média, seis anos para o trânsito em julgado da decisão. E não há recursos financeiros nem humanos para ampliá-la, sendo certo que cerca de dois mil cargos de juízes estão vagos nas diferentes jurisdições porque os baixos vencimentos, em contraste com o excesso de trabalho, não motivam os mais capazes para o ingresso na Magistratura, salvo honrosas exceções.

No último concurso para juiz do trabalho, terminado em fevereiro deste ano, foram aprovadas somente duas candidatas para as 49 vagas existentes.

O retardamento da solução das ações trabalhistas – e a Justiça do Trabalho não é a mais lenta – pode ser explicado pelo impressionante crescimento do número de processos nela ajuizado: a) década de 60 – 3.333.214; b) década de 70 – 4.827.884; c) década de 80 – 8.911.179; d) de 1990 a 1998 – 15.473.880. Só em 1998, a Justiça do Trabalho recebeu 2.349.419 ações e solucionou 2.333.912.

O Tribunal Superior do Trabalho, a quem cabe uniformizar a jurisprudência e orientar as decisões normativas, impedindo que a mesma norma jurídica seja aplicada diferentemente em cada Estado, julgou em 1998 mais de 112 mil processos. Isso é, cada uma de suas cinco turmas constituídas de cinco ministros, julgou 22.400 processos, o que totaliza mais de 400 processos por mês para cada ministro, excluídos períodos de férias.

Será possível exigir-se mais? Diversas são as causas da hipertrofia da Justiça do Trabalho:

1º) Desemprego crescente, (7,71%, atualmente) e alta rotatividade da mão de obra. Quase todos os trabalhadores despedidos têm algo a reclamar;

2º) Extensão da legislação do trabalho aos rurais e domésticos;

3º) Excesso de empregados não registrados;

4º) Abuso de contratos simulados (terceirização e cooperativa com os prestadores de serviço trabalhando sob o poder de comando da empresa contratante), visando a encobrir verdadeiras relações de emprego;

5º) Falta de procedimentos prévios de conciliação e mediação para os litígios individuais e coletivos de trabalho;

6º) Cultura desfavorável à mediação e à arbitragem dos conflitos coletivos, que não se altera em virtude da facilidade na instauração da instância judiciária;

7º) Complexas regras processuais, com demasiados recursos e depósito insuficiente para o empregador recorrer;

8º) O excesso de leis e medidas provisórias inovando ou modificando substancialmente o ordenamento legal, muitas vezes com afronta ao bom Direito.

O ideal seria a remoção de todas as concausas. Duas delas, no entanto, poderiam ser focalizadas desde logo; uma por lei e outra por emenda constitucional.

Os litígios individuais, em sua maioria, poderão ser resolvidos no âmbito empresarial, por acordo mediado por comissões paritárias de conciliação, obrigatoriamente criadas nos estabelecimentos de médio ou grande porte. Por seu turno, convenções coletivas firmadas por sindicatos patronais e de trabalhadores instituíram tais comissões para a mediação dos litígios relativos aos estabelecimentos de menos de 60 empregados. Esses órgãos que não têm competência para julgar, funcionam exitosamente em diversos países, inclusive nos inúmeros que possuem tribunais de trabalho, como pré-fase obrigatória da distribuição da ação judicial. O professor Klaus Adomeid, catedrático do Direito do Trabalho na Universidade de Berlim, informou-me que mais de dois terços dos casos são resolvidos, por acordo ou desistência, por essas comissões, reduzindo assim, o número de ações ajuizadas nos tribunais de Trabalho da Alemanha, cuja organização, com os três graus de jurisdição, é similar à nossa Justiça do Trabalho.

Em 1982, a Academia Nacional de Direito do Trabalho encarregou-me, juntamente com os saudosos juristas Segadas Vianna e Haddock Lobo de redigir anteprojeto de lei nesse sentido, cujo texto foi encaminhado ao Congresso Nacional e ao Ministro do Trabalho. Em nenhum desses órgãos foi considerado, apesar das manifestações favoráveis do Fórum Brasileiro da Justiça do Trabalho (Gramado, 1984) e do Seminário de Direito Constitucional do Trabalho (São Paulo, 1992). Em 1994, o ilustre Ministro Marcelo Pimentel promoveu o encaminhamento de projeto de lei ao Congresso Nacional, baseado no texto elaborado pela referida Academia; mas ampliou e formalizou demasiadamente o procedimento que, deve ser simples e o mais informal possível. Por isso mesmo, resolvi atualizar o anteprojeto da Academia e o apresentei à Comissão Permanente de Direito Social do Ministério do Trabalho, que o aprovou por unanimidade e o encaminhou, sem sucesso, ao ministro Paulo Paiva. Afinal, o Presidente Fernando Henrique Cardoso submeteu ao Congresso Nacional projeto similar, que não reduzirá, como se pretende, o volume de processos na Justiça do Trabalho, porquanto determina a homologação dos acordos pelo juiz do trabalho, ao invés de respeitar o ajuste firmado sob a supervisão da Comissão Partidária de Conciliação.

Pelo referido anteprojeto da Academia, seria obrigatório o funcionamento de uma comissão partidária de conciliação nas empresas cujos estabelecimentos totalizassem, no mesmo município, mais de 60 empregados. Essas comissões teriam um membro designado pelo empregador e um eleito pelos empregados. Dois seriam os representantes de cada classe quando houvesse mais de 120 empregados. Haveria um suplente para cada membro da comissão, assegurado aos empregados eleitos o direito à estabilidade no emprego, para garantir·lhes independência no desempenho dos mandatos, fixados em três anos. As comissões teriam o prazo improrrogável de quinze dias para intentarem a conciliação em procedimento absolutamente informal. Obtida a conciliação, o respectivo termo, firmado perante a comissão, valeria como transação extrajudicial, quitando todos os direitos dele constantes. Se não cumprido pelo empregador, seria objeto de execução com o rito estabelecido no parágrafo único do art. 872 da CLT, reservado à Justiça do Trabalho somente o exame dos aspectos formais do acordo e o das nulidades porventura argüidas. Malograda a conciliação, a comissão forneceria documento ao empregado, que seria condição para o ajuizamento da ação principal, salvo se as partes, por consenso, atribuíssem a arbitragem do litígio à própria comissão. Os sindicatos de empregadores e de trabalhadores poderiam instituir essas comissões nas empresas das correspondentes categorias que não estivessem obrigadas a criá-las. Os procedimentos aqui resumidos suspenderiam o prazo prescricional de que trata o art. 11 da CLT.

No concernente aos conflitos coletivos de trabalho, é evidente que a negociação direta, ou com mediação de terceiros, será fomentada na razão direta das dificuldades opostas ao ajuizamento do processo de dissídio coletivo. Para tal fim, impõe-se modificar o § 2° do art. 114 da Constituição, para limitar a instauração do dissídio na Justiça do Trabalho às seguintes hipóteses: a) do consenso das partes desde que não tenham optado pela arbitragem extrajudicial; b) pelo Ministério Público do Trabalho, em caso de greve prejudicial às necessidades inadiáveis da comunidade; c) por qualquer das partes desde que esgotado os procedimentos e prazos estabelecidos em lei para a negociação coletiva direta ou com mediação de terceiro.

Outrossim, essa reforma deveria explicitar que os tribunais do trabalho arbitrariam o dissídio, o que significa que o seu pronunciamento só ensejaria recurso nos casos de nulidade.

Por fim, cumpre ponderar que dezenas de países do primeiro e do terceiro mundo possuem tribunais do trabalho, conforme exposto na recente obra Instituciones de Derecho del Trabajo, elaborada pelos membros da Academia Iberoamericana de Derecho del Trabajo y la Seguridad Social, cujo capítulo pertinente ao tema foi por mim escrito (alguns poucos exemplos significativos: Alemanha, Argentina, Colômbia, Dinamarca, Espanha, Israel, México, Peru, Portugal, Suécia e Uruguai).

Esclareça-se, ainda, que o poder normativo ou a arbitragem compulsória institucionalizada em tribunais não é uma invenção fascista, como se apregoa, eis que foi instituída no início deste século na Nova Zelândia. No ano em que foi criada a nossa Justiça do Trabalho, como assinalou Oliveira Vianna, ele existia na Austrália, Dinamarca, Itália, México, Noruega, Nova Zelândia e Turquia. Hoje, como revelou a Organização Internacional do Trabalho (Tribunales de trabajo en America latina e Conciliación y Arbitraje en los Conflictos del Trabajo – Estudio Comparativo), essa competência normativa ou arbitral é atribuída a órgãos administrativos ou a tribunais do trabalho nos seguintes países: Austrália, Bolívia, Brasil, Camarões, Colômbia, Costa do Marfim, Costa Rica, Egito, Equador, Gana, Grécia, Guatemala, Indonésia, Índia, Jamaica, Quênia, Líbano, Madagascar, Malásia, México, Nigéria, Nova Zelândia, Paquistão, Serra Leoa, Singapura, Sri Lanka, Tanzânia, Trinidad Tobago, Tunísia, Turquia, Uganda, Venezuela e Zâmbia.

Por todo o exposto, parece-me inconcebível a extinção da Justiça do Trabalho, que tantos e meritórios serviços vem prestando a Nação, tendo concorrido, inquestionavelmente, para a configuração do clima social propiciador da industrialização do País. Que responsabilidade pode ter essa justiça pelo fato de receber, anualmente, mais de dois milhões de novas ações? E esses processos ficarão sem julgamento ou serão transferidos para a Justiça Federal que está mais congestionada do que a trabalhista? E quem decidirá os conflitos coletivos eclodidos com greves, cujo número crescerá para que os trabalhadores pressionem os empresários na celebração de acordos ou na submissão dos litígios a arbitrarem? E que órgão tomará as medidas indispensáveis à preservação dos direitos do cidadão ou de interesse público nas greves que afetem as necessidades inadiáveis da comunidade, da economia nacional ou da própria segurança do Estado?