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A Justiça, a comunicação e o pensamento único

5 de outubro de 2004

Juíza de Direito do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro

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Conta a história que no fim de sua vida, Galileu entrou em conflito com a Igreja e, por meio de ameaças foi, então, submetido à inquisição. A sentença condenatória é um documento interessante e ali encontram-se tipificados os crimes praticados: as falsas proposições de que o Sol é o centro do mundo e de que a Terra não é o centro do Universo, nem é imóvel.

Por sustentar teses expressamente contrárias às sagradas escrituras e errôneas em matéria de fé, sofreu Galileu um doloroso processo de julgamento e viu-se obrigado a pronunciar uma fórmula de abjuração negando toda a sua teoria. Não é verdade que, depois de abjurar, tenha o sábio murmurado “EPPUR SI MUOVE”. Foi o mundo que assim o disse. Mas o fato é que Galileu continuou firme nas suas convicções e certezas e, mesmo enclausurado, prosseguiu pesquisando, escrevendo clandestinamente e contribuindo para o aprimoramento da ciência e da sociedade, até morrer, nove anos depois.

Em alguns momentos da história, onde há a prevalência de um pensamento único, parece impossível se vislumbrar qualquer caminho diverso do imposto por tal pensamento. Foi assim na Idade Média e assim tem sido nestes tempos, onde impera a hegemonia do neoliberalismo.

É inegável que, para a disseminação totalitária desta ideologia onde o lucro ocupa lugar de centro, a massificação da comunicação é um dos fatores determinantes.

A ocupação dos veículos de comunicação de massa passou a ser estratégia de ação e já se foi o tempo onde a opinião pública era captada pela mídia. A mídia passou a ser o espaço onde se gera a opinião de um grupo. E mais, hoje se fala que não mais existe opinião pública e sim opinião publicada. O que não é selecionado pelos “media”, praticamente não acontece. Deixa a comunicação de se constituir em aparato tecnológico de irradiação de informações para ser o próprio espaço de construção da realidade.

Para agravar ainda mais este quadro, verifica-se que a mídia é dominada por interesses econômicos e passa, inclusive, a pautar as políticas públicas dos Estados. A invasão da esfera pública por interesses privados reduz a importância dos governos e desqualifica as funções antes essenciais para o resguardo dos valores éticos de liberdades e garantias individuais.

Paradoxalmente a este cenário de agigantamento econômico, assistimos na esfera jurídico-constitucional a um aumento de atribuições do Poder Judiciário como garantidor dos valores humanos formadores da civilização ocidental. Nunca o Judiciário foi tão importante para fortalecer e garantir as defesas dos cidadãos frente aos interesses do mercado. Com o fenômeno que se convencionou chamar de judicialização das políticas, passou o poder a intervir diretamente na vida do país, atuando em causas de interesse coletivo e se transformando num verdadeiro entrave ao avanço da hegemonia neoliberal.

Embora ampliando sua esfera de atuação, recente pesquisa do IBOPE, encomendada pela AMB, demonstra que a imagem que se tem do Judiciário é negativa e as expectativas apontam para o estabelecimento de uma relação aberta e transparente que ofereça informações em linguagem clara e acessível sobre sua estrutura e funcionamento bem como sobre sua atuação positiva junto à sociedade.

Outrora um poder inacessível e conservador, foi o Judiciário trazido ao primeiro plano da vida política do País, exigindo de seus integrantes formação mais humana, ética, sociológica, econômica e cultural e, acima de tudo, a capacidade de interagir com o tecido social buscando uma forma de ampliar a comunicação, reconhecidamente inacessível até mesmo para os intelectuais, para outros membros de poder e para a imprensa.

No dia-a-dia, a melhoria da comunicação do Poder com a população passa pelo contato direto que o juiz tem com as partes, nas audiências e julgamentos. Espera-se do Magistrado, contextualizado com sua época, que procure se fazer claro, explicando as razões dos ritos desconhecidos pela maioria e dizendo a lei através de uma linguagem compreensível e objetiva.

Espera-se, ainda, que os juízes disponibilizem parte de seu escasso tempo para participar da vida da comunidade, integrando-se aos projetos de “Justiça e Cidadania se aprendem na escola”, da “Justiça Cidadã” e do “Canal do Cidadão” dentre outros, promovidos respectivamente pela AMB, TJ/RJ e Amaerj.

Para que alguma transformação, entretanto, seja percebida pela sociedade como um todo, impõe-se que o Judiciário utilize o caminho da comunicação de massa para fazer-se conhecido e essencial. Maquiavel já afirmava que “governar é fazer ver” e o Judiciário, como poder político que é, precisa de visibilidade, necessita institucionalizar-se como expressão da sociedade e, por isso, precisa da comunicação.

A Amaerj e o Tribunal de Justiça do Rio, em projeto pioneiro, apresentam, semanalmente o programa Direito e Avesso, veiculado na TV Record e com reprises na TV Justiça. A linguagem é fácil, os temas são abordados com humor e clareza e a produção primorosa tem trazido um excelente retorno de audiência e, por conseqüência, alterações quanto à imagem do poder no país.

O funcionamento dos Juizados Especiais, estabelecendo um contato direto do juiz com as partes, a informatização integral do Tribunal, o site, o Programa de Rádio e a Revista Fórum da Associação dos Magistrados do Estado do Rio de Janeiro são exemplos vitoriosos de projetos na área da comunicação.

Ainda é tímida a iniciativa. É preciso avançar. Em momentos adversos, em momentos onde domina o pensamento único, a criatividade passa a ser alternativa eficiente. Devemos entender a lógica da comunicação de massa para, através deste caminho, buscarmos o resgate da credibilidade de um Poder que é essencial para a afirmação dos valores humanos. O Judiciário tem por base de sustentação o direito que é uma construção da racionalidade humana, assim como é a cultura. Sua atuação deve ser no sentido de preservação destes valores.

A utilização dos veículos de comunicação de massa – invenção da sociedade do lucro e do mercado – assim como a capitulação momentânea de Galileu devem ser entendidos como instrumentos de afirmação de convicções de humanidade, liberdade e justiça, em momentos onde a resistência parece impossível. A coisa pública, para ser autenticamente pública, necessita de visibilidade e transparência e o mecanismo a ser utilizado para este fim é a massificação da informação e do conhecimento. É neste espaço onde o Judiciário deve atuar buscando alterar a percepção negativa que se tem do poder.

Em 31 de outubro de 1992, no Vaticano, o papa João Paulo II reuniu a Pontifícia Academia de Ciências para resolver, de uma vez por todas, o caso Galileu e, após a conclusão dos trabalhos, o jornal L’Osservatore Romano noticiou em sua primeira página; “A fé não pode jamais conflitar com a razão”.

Já a manchete do Los Angeles Times dizia: “É oficial! A terra gira em torno do Sol, mesmo para o Vaticano”.

Esperamos não ter que aguardar 350 anos para a revelação de que o homem e os valores transcendentais de liberdade, fraternidade e justiça é que são essenciais para a vida e que, através do Poder Judiciário ético, comprometido e responsável é que se garantirão a liberdade e a democracia.