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A formação dos juízes na Espanha

31 de janeiro de 2008

André Luiz de Macedo Juiz de Direito da 3ª Vara Criminal e de 
Execuções Penais de São Carlos-SP

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1. O processo de seleção dos juízes
A Espanha escolhe seus juízes por meio de concur-so público, valorizando o aspecto democrático do processo seletivo, onde qualquer cidadão, preen-chendo os requisitos para concorrer às vagas, poderá tornar-se juiz.
Há um único concurso para selecionar juízes e promotores de justiça (denominados “fiscais”), com três fases de testes, e os aprovados, no final, escolhem entre as vagas existentes, de acordo com sua classificação nas provas, optando entre a Magistratura e o Ministério Público (“Fiscalía”).
Devido às dificuldades de superação das provas, o tempo médio de preparação de um candidato à magistratura é de quatro anos.
Os concursos são realizados anualmente e, em regra, mais de cinco mil candidatos se apresentam, todos os anos, às provas seletivas.
Os aprovados, após a escolha de vaga na magistratura – ainda sem cargo específico, pois, nessa fase, decidem, tão-somente, se ingressarão na Magistratura ou no Ministério Público –, iniciam a Escola Judicial, no curso de formação inicial, com dois anos de duração e, ao término dela, se também aprovados, escolhem seu cargo, o “juzgado” (vara) de primeira instância, mais comumente chamado de “primeiro destino”, de acordo com sua classificação, resultante da média entre as notas do concurso e da Escola.
Conceitua-se, portanto, a Escola Judicial como aquela que, integrando o processo de seleção, “prepara o juiz para o seu primeiro destino”, ou seja, o início da carreira, onde conhecerá causas mais simples, sem necessidade de espe-cialização, em locais com pequeno número de habitantes.
Paralelamente a esse concurso, a que concorrem os ba-charéis em Direito – semelhante aos realizados no Brasil –, há uma segunda forma de acesso ao cargo de juiz, em primeiro grau, destinada, exclusivamente, a juristas com mais de seis anos de experiência que, não obstante sua condição, também são submetidos à prova de seleção; como regra, um quarto das vagas é destinado aos profissionais que concorrem por essa via.
Cabe observar que os termos “juiz” e “magistrado” têm, na Espanha, significados diferentes, pois o primeiro refere-se ao juiz de primeira instância e o segundo, ao de instância superior. Existe, pois, lá, relação de hierarquia entre juízes e magistrados, como, no Brasil, entre juízes e desembargadores, havendo, igualmente, promoção na carreira, de um cargo a outro.

2. O Conselho Geral do Poder Judiciário
O Conselho Geral do Poder Judiciário é órgão autônomo e independente, previsto na Constituição Espanhola, com função organizadora e instrumental, destinado a garantir a independência do Judiciário.
É este conselho que responde pela manutenção da Escola Judicial, seu órgão técnico encarregado da seleção e formação dos juízes (e magistrados, quando não oriundos da categoria dos juízes de primeira instância).
Cabe, também, ao Conselho Geral do Poder Judiciário, elaborar o orçamento do poder (que inclui o da Escola Judicial, mediante aprovação dos planos docentes de atividades a serem realizadas e da nomeação de professores), realizar inspeções (correições) e nomeações, organizar o
arquivo de informação e documentação judicial, prestar contas e estabelecer regime disciplinar, sem prejuízo da função consultiva.
Trata-se de um órgão que estabelece diretrizes a serem obser-vadas pelo Judiciário nessas questões específicas, traçando metas
e avaliando resultados, de forma a alcançar elevado padrão de eficiência na organização judiciária, sem interferir, contudo, na atividade jurisdicional propriamente dita, atribuída ao juiz ou magistrado, nos “juzgados” (varas), “audiências” (tribunais das províncias) ou tribunais superiores.
Atua, pois, como órgão de gerência da justiça espanhola, composto por vinte membros, chamados vocales (vogais), sendo doze juízes (seis indicados pelo Senado e seis pela Câmara dos Deputados) e oito juristas de reconhecida competência (quatro deles indicados pelo Senado e outros quatro pela Câmara dos Deputados, ou “Congreso”).

3.  A Escola Judicial
A Escola Judicial, órgão técnico do Conselho Geral do Poder Judiciário, tem por finalidade a seleção e formação dos juízes e magistrados.
O surgimento dela, com o modelo atual (que conta com dez anos de existência), incluindo os dois anos de formação inicial que fazem parte do processo seletivo, tanto quanto as provas iniciais, decorreu da constatação de que os juízes, então aprovados no concurso público, não necessariamente iniciavam suas carreiras preparados para os desafios que se lhes impunham.
Constatou-se que não lhes bastava o conhecimento jurídico, pois era comum encontrar aqueles que nenhuma experiência prática possuíam, notadamente porque haviam se dedicado, unicamente, nos anos subseqüentes à graduação, à preparação para o concurso de ingresso.
Considerando, também, que a grande maioria dos novos juízes era formada por jovens, com média de vinte e oito anos de idade – que passaram por cinco anos de faculdade e outros quatro, em média, de preparação para o concurso –, tal constatação se fazia ainda mais forte.
A partir desta visão dos acontecimentos, modificou-se a antiga concepção da 
Escola Judicial – que, até então, limitava-se a fornecer pequeno número de informações, em mínimo espaço de tempo, aos novos juízes, muitas vezes, encaminhados a seus “primeiros destinos” sem condições de exercer, com razoabilidade, a difícil missão de julgadores e pacificadores de conflitos, não obstante o excelente conhecimento jurídico de que dispunham – para preparar, de maneira eficiente e homogênea, todos os juízes do país para a tarefa que lhes era confiada.
Tal preparação, nesses dois anos de formação inicial, não se destina, precipuamente, ao aprofundamento dosconheci-mentos jurídicos, mas sim, à implementação de conhecimentos práticos, com transmissão de experiência e realização de ativi-dades simuladas nas diversas áreas de atuação de um “juzgado” (vara) de primeiro grau.
O candidato que ingressa na Escola Judicial, no curso de formação inicial, já é chamado “juiz em prática”, mas não possui, todavia, jurisdição, que somente é adquirida após o decurso desse período, que, na realidade, é a segunda etapa do concurso para o ingresso na magistratura.
O “juiz em prática” recebe um salário equivalente a oitenta por cento da remuneração inicial da carreira, pois é necessário dedicação integral, sendo inviável o exercício de qualquer outra atividade pelo aspirante.
Os professores são, na maioria, juízes ou magistrados (de segunda instância) e têm dedicação exclusiva. São afastados das funções jurisdicionais para que atuem unicamente na formação dos novos juízes e escolhidos em função de suas qualificações; assim, também concorrem aos postos de professores, podendo exercer essas funções por até dez anos, afastados de suas varas ou tribunais. Outros são professores universitários, trazidos à Escola em razão de sua especialização e capacidade para temas específicos.

3.1. Formação inicial
A formação inicial, com duração de dois anos, está subdividida em 
duas fases.
A primeira, chamada “fase presencial”, com um ano de duração, ocorre na sede de Barcelona, com atividade intensiva durante todo o dia, envolvendo práticas, simulações e estudos de casos concretos, além do estudo de matérias adicionais, como economia, contabilidade e medicina forense, visando à melhor compreensão, pelo juiz, de laudos técnicos ou médicos, e bioética, dependência de drogas, com colaboração de ex-dependentes e toxicômanos, familiares e terapeutas, bem como informática, idiomas próprios das diferentes comunidades espanholas (catalão, euskera, galego e valenciano), inglês jurí-dico, psicologia jurídica, mediação e conciliação.
Conquanto não se destinem à repetição do estudo jurídico feito na universidade, é inegável que a análise e simulação de casos práticos impõem o exercício dos conhecimentos adquiridos, agora aplicados a situações concretas, permitindo-lhes outra visão, igualmente necessária ao juiz.
O estudo de línguas, informática, contabilidade e medi-cina forense, e de outros temas específicos, tratados em semi-nários (como ocorreu, por exemplo, com o tema “grandes catástrofes”, a propósito dos atentados terroristas nos trens de Madrid), além do Direito Comunitário Europeu, em razão da integração da Espanha na Comunidade Européia, foram considerados imprescindíveis à formação global do juiz espanhol moderno.
Sem embargo, objetiva-se também, no curso inicial, estimular a formação da consciência do candidato sobre a importância e a dimensão social da atividade do juiz, proporcionando-lhe reflexão sobre o seu papel constitucional, dotando-lhe de formação humanística, estimulando-lhe a sensibilidade para determinados conflitos e indicando-lhe parâmetros para valorar, de maneira adequada, as relações com os demais operadores do Direito.
Nesse particular, relevantes são os estágios dos candidatos nas promotorias de justiça, unidades da polícia e penitenciárias, bem como em escritórios de advogados com o objetivo de presenciar o trabalho desenvolvido por esses profissionais, aproximando o futuro juiz de uma realidade que influenciará seu conhecimento, suas convicções e sua capacidade de avaliação e análise das questões que lhe serão apresentadas.
O uso do “método do caso” é regra em todas as disciplinas, ou seja, a partir da situação concreta, desenvolve-se toda a atividade docente, com grupos reduzidos 
de alunos (máximo de vinte e cinco) para melhor aproveitamento e interação com os professores, permitindo manifestação de cada candidato, que necessariamente deve expressar-se, demonstrando parti-cipação e compreensão dos temas em estudo.
A Escola, com avançada estrutura material e tecnológica, funciona em prédio amplo e moderno, que provê o necessário às atividades docentes, como inúmeras salas de aula, sala de audiência simulada, com aparelhagem para gravação das atuações em DVD, destinada à posterior análise pelos alunos, sala de computadores, biblioteca, refeitório, local para atividades esportivas, secretaria, estacionamento e departamento de fotocópias.
Nesse mesmo prédio, realizam-se as atividades interna-cionais da Escola Judicial, entre elas a “Aula Ibero-americana”, onde se comparte a experiência ali acumulada com as Escolas de Magistratura da América Latina, entre elas as de nosso país, membro da Rede Ibero-Americana de Escolas Judiciais, além
de outras Escolas, de países da Rede Européia de Escolas Judiciais, e não é incomum que os aspirantes espanhóis se encontrem ali, lado a lado, com juízes estrangeiros.
A segunda fase da formação inicial, chamada “fase de práticas tuteladas”, ocorre no segundo ano da Escola Judicial, e cada “juiz em prática” é encaminhado a uma vara para um período de exercício prático, ainda sem jurisdição, na condição de juiz adjunto do titular.
Nessa etapa, o candidato está sob a tutela de um outro juiz, também selecionado pela Escola, e por ele será orientado e avaliado.
O aspirante poderá realizar projetos ou esboços de sentença, que poderão (ou não) ser usados e assinados pelo juiz titular, se com eles concordar, bem como poderá presidir audiências, com a concordância das partes e sob a supervisão do tutor, que monitora e avalia seu desempenho, reportando-o à Escola, para aferição de sua nota final no curso de iniciação.
É nessa fase que será observada a capacidade de relaci-onamento do magistrado com os funcionários da vara, sua pontualidade, sua capacidade de interagir adequadamente com pessoas e gerenciar problemas concretos, relativos ao dia-a-dia de uma unidade do Judiciário.
São mais de duzentos juízes tutores em toda a Espanha, sendo certo que cada aluno escolhe o local de sua preferência, dentre os existentes, para realizar o segundo ano de práticas tuteladas.
Também aos juízes tutores é conferida orientação pela Escola, porquanto suas avaliações deverão ter critérios deter-minados, não se admitindo que sejam feitas sem qualquer parâmetro, fundadas unicamente no subjetivismo.
São freqüentes os encontros regionais entre docentes da Escola, encarregados dessas práticas tuteladas, com os juízes-tutores, a fim de recomendar-lhes métodos de avaliação e buscar a uniformidade do sistema.

3.2.  A formação contínua
A formação contínua ocorre durante toda a vida profis-sional do juiz ou magistrado, tem sede em Madrid e objetiva a atualização permanente e o aperfeiçoamento, possuindo duas formas: presencial e a distância.
Diante da dificuldade em realizar cursos com participação pessoal de todos os magistrados, seja em razão da necessidade de viagens e abandono dos locais de trabalho ou família, optou-se pela realização de fórmula mista, com cursos apenas em parte presenciais.
As outras restantes são realizadas a distância, sob as di-versas formas de comunicação, com envio de material e informações.
Chamam a atenção os cursos virtuais, realizados com eficiência e organização, elaborados em módulos e com avaliações também virtuais, que exigem tão-somente que o juiz saiba manusear o computador e acessar os bancos de dados fornecidos pela Escola Judicial.
Nesse passo, grande é a contribuição espanhola, haja vista que, sem exigir deslocamento dos juízes aos centros de formação, permite que todos possam, em igualdade de condições, participar da aquisição de conhecimento, deixando ao interessado, unicamente, a opção de fazê-la.
Mesmo assim, o sistema não é, para os juízes espanhóis, isento de crítica: diz-se que é um método de isolamento, que não favorece o intercâmbio de informações, que muito contribui para o aperfeiçoamento de todos, bem como imputa-se ao método um alto custo e a dificuldade de uso para uma parcela de pessoas não afeitas ao uso da informática.
As atividades de formação contínua são voluntárias, não se exigindo, na Espanha, que o juiz dela participe de maneira impositiva.
Difere, nesse aspecto, da legislação brasileira, que prevê, como critério para aferição do merecimento, na promoção do juiz, “a freqüência e aproveitamento em cursos oficiais ou reconhecidos”, nos termos do art.93, II, “c”, de nossa atual Constituição Federal.

4. Conclusão
Os dez anos de experiência do curso de formação inicial da Escola Judicial Espanhola comprovaram a premissa de que a eficiência da prestação jurisdicional deve-se, em grande medida, à formação inicial e global do juiz.
Por essa formação entende-se não apenas a habilidade para lidar, de maneira prática, com o trabalho forense mas também a capacidade de raciocinar de maneira lógica, profunda e sistemática, à luz da Ciência do Direito e da realidade em que ela se insere, na busca da Justiça.
Não menos importante é estimular a sensibilidade do juiz para as candentes questões sociais de seu tempo, seja para manter o estado de justiça social, onde existir, seja para fomentá-lo onde não houver, atuando como agente transformador da realidade, no exercício de seu mister.
O investimento na formação dos juízes é patrimônio de todo um país, maior beneficiário dele e grande destinatário de seus frutos.
A experiência espanhola está consolidada naquele Estado e parece irreversível, porquanto bem-sucedida e percebida grande melhoria no serviço judiciário a partir da moderna concepção da formação inicial.
Basta dizer que, hoje em dia, os juízes são as autoridades de maior avaliação e prestígio na percepção do povo da Espanha, atrás, unicamente, do Rei, segundo pesquisa de opinião lá realizada.
Não é sem razão que o orçamento para a formação inicial de juízes, em 2007, atingiu o valor de 9.289.495,62 de Euros, e, para a formação continuada, o valor de 5.956.445,25 da mesma moeda, segundo dados do Conselho Geral do Poder Judiciário, investimentos considerados importantes.
Atento à premissa de que a idéia de Justiça é dotada de sentido universal e a busca dessa universalidade é objetivo do ser humano e de todas as sociedades, vale a pena estimular e incentivar as boas idéias já existentes no Brasil para a formação de juízes de maneira global, preparando-os, quer para o início da atividade, quer para exercício ao longo da vida.
As boas experiências, nesse aspecto, confirmam que investir nessa área não é apenas uma opção política, mas sim uma opção social das mais relevantes, capaz de transformar a realidade de um povo.