Edição 279
A força das palavras
7 de novembro de 2023
José Roberto de Castro Neves Advogado / Professor de Direito Civil

O poder das ideias, historicamente, já se mostrou mais potente do que o das baionetas. Ao longo dos tempos, discursos, pela importância dos valores que carregam, marcaram, de forma indelével, a civilização, a ponto de se integrar a ela.
Em 1863, o então presidente norte-americano Abraham Lincoln, quando seu país se encontrava dividido, devastado por uma sangrenta guerra civil, fez um curto e potente discurso – com apenas 271 palavras – em Gettysburg, local onde, poucos meses antes, fora travada uma feroz batalha entre unionistas e confederados. Lincoln, pranteando a morte dos seus compatriotas, falou da necessidade de honrar a causa da democracia e da liberdade, ainda que isso consumisse nossas vidas.
Exatamente 100 anos depois, em 1963, em Washington, Martin Luther King proferiu outra famosa preleção, na qual endereçou os direitos humanos. Com verve mesmerizante, Luther King pregou: “Agora é hora de sair do vale escuro e desolado da segregação para o caminho iluminado da justiça racial. Agora é hora de retirar a nossa nação das areias movediças da injustiça racial para a sólida rocha da fraternidade. Agora é hora de transformar a justiça em realidade para todos os filhos de Deus.” O sonho dele era o mesmo de todos que compreendem a história da humanidade como uma única, sem vencedores nem vencidos, sem nobres ou plebeus, mas com a raça humana abraçada, mirando um propósito comum – porque nosso destino, ao fim, é o mesmo.
Lincoln e Luther King foram advogados. Eles tinham plena ciência de que as palavras, quando aliadas aos bons valores, têm o poder de unir, funcionando como grandes vetores, conquistando mentes e corações. Ambos também reconheciam o poder das instituições, do qual o Direito serve como guardião.
No dia 28 de setembro de 2023, 160 anos depois de Lincoln ter proferido sua ode à liberdade e à democracia e 60 depois do grito de Martin Luther King sobre igualdade e fraternidade, a posse dos Ministros Luís Roberto Barroso e Edson Fachin, como, respectivamente, presidente e vice-presidente do Supremo Tribunal Federal, nos fez, mais uma vez, reverenciar as palavras munidas de valor.
A procuradora-geral da República, Eliseta Ramos, o presidente da Ordem dos Advogados do Brasil, Beto Simonetti, o decano do Supremo, Ministro Gilmar Mendes, e o próprio empossado trouxeram lucidez, reflexão e ensinamento em suas manifestações.
Simonetti, representando os advogados do País, reiterou o intransigente compromisso da classe com a defesa da democracia e da necessidade de uma união pelo futuro do Brasil, que passa pela segurança jurídica e por conquistas sociais.
O Ministro Gilmar Mendes, saudando o novo presidente da Corte, lembrou dos recentes ataques sofridos pelo Supremo, inclusive às pessoas dos ministros, numa prática que se afasta da civilidade e coloca em risco o Estado Democrático de Direito. A agressão, mais recente, foi, até mesmo, às instalações do Tribunal Superior, covardemente depredadas. Uma violência, física e simbólica, sem justificação – como são, em regra, despidas de justificação as violências.
O ministro decano citou, com pertinência cirúrgica, Carl Schmitt, talvez o maior constitucionalista do Século XX, cuja vida assistiu a ascensão e o ocaso do nazismo. Um homem que, segundo ele próprio, ingeriu o bacilo do totalitarismo, mas não foi infectado. Schmitt, com a experiência de quem viveu a passagem mais dramática e cruel de totalitarismo na história recente da Europa, falou da democracia defensiva, aquela que tem coragem de ser intolerante com quem se vale da liberdade para aniquilá-la.
Com a merecida autoridade de quem fala pelo Supremo, o Ministro Gilmar Mendes destacou a importância do fortalecimento das instituições, guiada pela boa política. Consciente do momento, o ministro alertou que não é hora de se acovardar: “o tempo requer Homens e Mulheres de Estado”, pontificou o jurista.
Por último na cerimônia, o Ministro Barroso proferiu seu discurso de posse. Uma homilia que merecia ser emoldurada. Com a didática de professor há décadas, o Ministro Barroso dividiu sua fala em três partes, para tratar, nessa ordem, de gratidão, do Judiciário e do Brasil.
Inicialmente, o Ministro agradeceu às professoras e aos professores que iluminaram sua formação desde a tenra infância, em Vassouras, no interior do Estado do Rio de Janeiro, até as graduações nas mais afamadas universidades do planeta. Educação é tudo.
Em seguida, o Ministro Barroso, exaltando a justiça e a segurança jurídica como os grandes vetores do Direito, ressaltou a necessidade do diálogo entre os Poderes, a defesa da democracia e a proteção aos direitos fundamentais. Atento ao mundo contemporâneo, o atual Presidente do Supremo externou sua preocupação em tornar cognoscível à população as decisões da Alta Corte. O Supremo precisa se comunicar, até mesmo para que eventuais críticas sejam construtivas – e não um ricochete de maldosas fake news.
Finalmente, o Brasil, para o Ministro Barroso, reclama pela pacificação. O pluralismo das ideias, manifestada de forma educada e sem preconceitos, deve prevalecer. A verdade, como disse o Ministro Barroso, não pertence exclusivamente aos conservadores, aos liberais ou aos progressistas. Quem pensa diferente, registrou o ministro, não é inimigo, mas “parceiro na construção de uma sociedade aberta, plural e democrática.” Muito antes, Aristóteles, em sua “Ética a Nicômacos”, ensinou que “Tudo nasce do antagonismo”. Viva as diferenças – o reconhecimento delas sinaliza liberdade.
Os ministros Gilmar Mendes e Luís Roberto Barroso, em coro, enalteceram a educação e a afetividade. Ambos os temas receberam acentuada – e merecida – ênfase em suas manifestações. O Ministro Gilmar Mendes encerrou sua manifestação com votos de que o Ministro Barroso fosse feliz. Este, ao término de seu discurso, apontou a afetividade como “uma das energias mais poderosas do universo”. Essa sensibilidade foi aguçada pela divina participação de Maria Bethânia, que iniciou a cerimônia com uma antológica interpretação do hino nacional e terminou cantando “Todo Sentimento”, de Chico Buarque e Cristóvão Bastos, uma homenagem à Teresa, iluminada Teresa, mulher do Ministro Barroso, falecida no começo deste ano. Difícil não se emocionar.
Num período conturbado, com um País polarizado, as palavras ouvidas na posse do Ministro Barroso foram marcadas pela serenidade. O presidente do Supremo deixou clara a missão do Judiciário brasileiro, comprometido com a liberdade de expressão responsável e com o progresso social.
Fazendo referência a Stefan Zweig, o decano do Supremo alertou que o homem mediano se contenta com o ordinário. Eis um risco, advertiu o Ministro Gilmar, pois o momento exige mais. Felizmente, aqueles que falaram na posse de 2023 são pessoas extraordinárias, investidas de boa-fé e comprometidas com o Estado de Direito. Nelas, a sociedade brasileira, como bem anotado por Beto Simonetti, presidente da OAB, confia, mas, ao mesmo tempo, espera mais.
Os emblemáticos discursos de Lincoln e Martin Luther King, embora separados pelo tempo, se encontram unidos ao que se ouviu na posse do Ministro Barroso, pelos valores que carregam. A luta pela democracia, liberdade e igualdade seguem em pauta. Uma vigília constante. As palavras proferidas no Supremo, em setembro de 2023, todas também emanadas por pessoas com formação forjada pelo Direito, protegem esses valores tão preciosos quanto fundamentais – e servem como bandeira para quem sonha por um Brasil mais justo.