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A evolução da Análise Econômica do Direito no Brasil

6 de novembro de 2018

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O campo mais fértil no mundo para o estudo e aplicação da ciência denominada Análise Econômica do Direito (AED) indiscutivelmente encontra-se nos Estados Unidos da América. No Reino Unido, cujo sistema também é da família da common law, a AED acaba por ser igualmente relevante. Nos países de língua latina, entretanto, o interesse é mais tardio e tímido, supostamente por serem do sistema da civil law.

Com fundamentos que remontam aos pensadores do iluminismo escocês, notadamente David Hume, Adam Ferguson e Adam Smith, todos da segunda metade do século XVIII, a AED é inaugurada como ciência em meados da década de 1960, a partir de Ronald Coase, no artigo “The Problem of Social Costs”, que desenvolveu de maneira inovadora a temática de “custos de transação”.

Por meio do cunhado Teorema de Coase, cujo enforque era voltado à discussão acerca da alocação eficiente de recursos, o autor defendia a necessidade de valorização dos métodos alternativos de resolução de conflitos como opções viáveis à superinflação do sistema judiciário. Ainda dentro dessa linha de raciocínio, era imprescindível o desenvolvimento de ambientes com mínimos custos transacionais, de modo a facilitar e estimular a alocação eficiente de recursos, reduzindo os incentivos para o demandismo individual.

Essa nova forma de pensamento, voltada à implementação de critérios econômicos às relações sociais, colaborou para o surgimento da geração da Escola de Chicago, liderada por Richard Posner (e seguida por outros doutrinadores) que, em suma, buscavam estimular o papel da troca eficiente de mercado, sem grandes entusiasmos com relação aos aspectos redistributivos e igualitários. Destaca-se, nesse ponto, o entendimento da reconhecida Escola de Chicago sobre o tema por meio de três características principais: (i) a visão de que o ser humano é racional, isto é, age sempre em atenção à finalidade de maximizar sua satisfação; (ii) esse padrão comportamental se dá mesmo em áreas não diretamente ligadas ao mercado, funcionando as regras legais de forma análogas aos preços, isto é, como incentivos ou desestímulos à determinada conduta; e (iii) a absorção de critérios econômicos na aplicação do Direito poderia levar à cenários eficientes, conforme apontado pelo vanguardista Ronald Coase.

Rompendo com a visão, surge Guido Calabresi, que buscou aplicar valores de justiça como um filtro nas relações sociais e trocas de mercado. Essa nova corrente tinha como objeto de análise exatamente as falhas do mercado, reivindicando modelos mais interventivos e redistributivos condizentes à realidade das relações sociais e à natureza do ser humano.

Seguindo nessa digressão sobre a evolução da AED, a década de 1980 foi o divisor de águas para a formalização deste segmento do Direito como ciência e como objeto de profundas investigações acadêmicas nas mais renomadas faculdades dos Estados Unidos da América. Nesse ponto, Steven Shavell, Louis Kaplow, Lucien Bebchuk e Kathryn Spier, todos da Escola de Direito de Harvard, assumem distinta notoriedade.

Não há como contestar o pioneirismo de Shavell e Kaplow na introdução da social welfare function como instrumento de análise normativa. Esses autores, com merecidos aplausos, colaboraram demasiadamente para a evolução da AED sob enfoque processual, especificamente na ordenação de técnicas e modelos – como, por exemplo, a teoria dos jogos – que apontam para os incentivos presentes no binômio acordo/ ajuizamento da ação, na ponderação acerca de interposição de recursos e nas vantagens e desvantagens de um protagonismo do magistrado em um sistema probatório mais preciso.

Pois bem. Se decantarmos os ensinamentos dos doutrinadores (clássicos e modernos) da AED, conseguimos extrair três grandes palavras de ordem: racionalidade, eficiência e equilíbrio. A primeira se consolida em razão da incessante análise de fenômenos coletivos a partir de escolhas individuais racionais. A segunda se justifica, pois visa à maximização dessas escolhas individuais em prol do bem-estar social. A terceira, não menos importante, é justamente a união entre conceitos da Economia e do Direito em prol de uma estabilidade, que deriva dos incentivos sociais e desse referido bem-estar social almejado.

Essa interdisciplinaridade entre Direito e Economia no Direito brasileiro, embora conhecida e de inegável importância, nunca recebeu a devida atenção dos intérpretes. A verdade é que historicamente a AED sofreu grande resistência no Brasil, seja pela falta de compreensão acerca dos seus conceitos-chaves, seja pela ideia equivocada de que apenas nos países da common law essa ciência poderia ser adotada, ou mesmo pela míope concepção de que as decisões judicias não deveriam ser submissas aos fatores econômicos.

Essa mentalidade vem paulatinamente mudando e estamos evoluindo para o bem de todos. O argumento simplista de manifesta diferença entre os sistemas da civil law e da common law não é mais empecilho para absorção responsável de institutos jurídicos de alhures pelo Direito brasileiro (com suas óbvias adaptações necessárias), incluindo-se, nesse tocante, a principiologia subjacente à AED.

O Novo Código de Processo Civil é prova viva disso, ao passo que introjetou num sistema genuinamente romano-germânico grande influência do direito anglo-saxão em sua elaboração, por meio da importação e adaptação de técnicas e institutos há muito utilizados nos países de sistema do common law, como por exemplo, a obrigatoriedade do respeito aos precedentes.

Em boa hora, a AED vem ganhando terreno nas discussões acadêmicas e recebendo atenção especial pelos tribunais pátrios, que têm assumido a liderança no emprego de conceitos econômicos – notadamente da microeconomia – como instrumento para interpretação das normas e/ou princípios legais, em inequívoca demonstração da preocupação com incentivos, análise de custo-benefício e consequências agregadas da aplicação direta das leis e das decisões.

Nos últimos anos, viu-se a crescente discussão acerca do tema na academia jurídica em congressos pelo Brasil afora e até mesmo nas universidades, a exemplo do que ocorre no programa de pós-graduação stricto sensu em Direito da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), em disciplina específica cunhada de Análise Econômica do Direito Processual, lecionada pelo professor e ministro do Supremo Tribunal Federal Luiz Fux. A Escola da Magistratura do Estado do Rio de Janeiro (Emerj) seguiu pelo mesmo caminho e, até o final do ano, oferecerá um curso específico sobre a AED para formação e aprimoramento dos magistrados.

No âmbito dos tribunais, convém destacar o elucidativo debate sobre a aplicabilidade da Análise Econômica do Direito e a possibilidade de importação crítica desta ciência pelo ordenamento jurídico brasileiro nos relevos do ministro Luis Felipe Salomão, quando do julgamento do REsp 1.163.283/RS. Em seu brilhante voto, o eminente ministro assentou que “a análise econômica do direito não pretende, por óbvio, esclarecem seus estudiosos, submeter as normas jurídicas à economia, mesmo porque o Direito não existe para atender exclusivamente aos anseios econômicos. Por outro lado, visa à aproximação das normas jurídicas à realidade econômica, por meio do conhecimento de institutos econômicos e do funcionamento dos mercados.”-

Como se vê, o uso do raciocínio econômico pelos tribunais brasileiros não é uma importação de algo pronto e acabado, construído de acordo com as particularidades de outra sociedade. Muito pelo contrário, é o resultado de uma profunda busca pela transformação e aprimoramento do ordenamento jurídico brasileiro.

Em uma intepretação neoconstitucional, a AED pode influenciar positivamente a aplicação do Direito não apenas quando a lei suscita conceitos econômicos, como é frequente no caso do Direito Antitruste e Monetário, mas também quando os princípios e/ou normas exigem uma previsão das prováveis consequências em caso de ponderação de valores (há tantos e tantos anos discutida e aplicada no Direito). Portanto, essa ciência tem total aderência a todos os ramos do Direito (penal, civil, administrativo, tributário, etc.), na medida em que propõe apenas a otimização do sistema com os instrumentos já existentes no ordenamento jurídico em prol de algo maior e melhor.

Essa almejada eficiência decorre, dentre outras técnicas de balanceamento, da reinterpretação e aplicação racional dos princípios e normas. Em outras palavras, segundo a exegese da AED, cabe ao aplicador do Direito, independentemente do cargo que ocupe, considerar qual interpretação melhor consagra a ratio assendi da lei e qual meio legítimo para rápida obtenção de um resultado que atenda igualmente aos parâmetros de justiça.

Essa breve exposição, sem por óbvio exaurir um tema de tamanha riqueza de detalhes, teve apenas a pretensão de demonstrar que o intuito da AED não é estabelecer uma relação de dependência ou sujeição entre Direito e Economia. A proposta é tão somente fornecer aos intérpretes do Direito mais uma perspectiva na avaliação das relações sociais. Mais além, visa também abrir os olhos dos interessados no sentido de que é possível inferir, a partir de uma avaliação de custos individuais e a comparação destes com os custos sociais, se o Estado está, na verdade, fornecendo incentivos errados aos operadores do Direito, máxime diante do atual cenário de explosão de litigiosidade e dificuldade do Estado de otimizar o aparelho judiciário.

Trata-se de uma nova era que propõe a reinterpretação do sistema jurídico brasileiro mediante o uso de instrumentos próprios da economia voltados à obtenção de escolhas racionais para que se compreenda os efeitos e as consequências indesejáveis ou involuntárias decorrentes dessas escolhas. É uma análise mais completa da questão jurídica, desde a gênese do problema até o consequencialismo da resolução do litígio (para o sujeito diretamente envolvido e para própria sociedade em geral).

Em resumo, o sistema jurídico pátrio absorveu esse um novo mecanismo ao dispor do intérprete pátrio e AED já é uma realidade a quem do Direito possa interessar. Essa ciência pode e deve ser interpretada sob um prisma plural, com os mecanismos já existentes, visando à construção de ambiente de litigância saudável. Nessa nova era, a AED pode se desmembrar em diferentes caminhos, aptos a gerar diversos frutos nos mais variados ramos do Direito, contribuindo de forma pujante à evolução da sociedade civil e ama­durecimento da nossa
democracia.

Não se trata de uma adoção acrítica de tendências estrangeiras em sua integralidade só até termos algum método tupiniquim de interpretação, mas sim adicionar mais uma deslumbrante tonalidade à rica paleta de cores já existente no Direito brasileiro.

Referencias bibliográficas_______________________

ARAÚJO, Thiago Cardoso. Análise econômica do direito no Brasil: uma leitura à luz da teoria dos sistemas. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2017.

COASE, Ronald. The Problem of Social Cost, vol. 3, Journal of Law and Economics 1690.

FUX, Luiz; BODART, Bruno. Notas sobre o princípio da motivação e a uniformização da jurisprudência no novo Código de Processo Civil à luz da análise econômica do Direito.: Revista de Processo, v. 269, jun. 2017.

KAPLOW, Louis. Private versus Social Costs in Bringing Suit. Cambridge: The Journal of Legal Studies, Vol. 15, no. 2, 1986

POSNER, Richard A. Economic Analysis of Law. 9a. ed. New York: Wolters Kluwer, 2014.

SHAVELL, Steven, The fundamental divergence between the private and the social motive to use the legal system. vol. XXVI, Journal of Legal Studies, Chicago: 1997;

SHAVELL, Steven The Appeals Process and Adjudicator Incentives, in Journal of Legal Studies, vol. 35, Chicago University Press, January 2006;

SHAVELL, Steven. Foundations of Economic Analysis of Law. Cambridge; London: Belknap, 2004.

WOLKART, Erik Navarro. Análise econômica e comportamental do processo civil: como promover a cooperação para enfrentar a tragédia da Justiça no processo civil brasileiro. 2018. Tese (Doutorado em Direito Processual) – Centro de Estudos e Pesquisas no Ensino do Direito, Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro. pps. 114-118.

Notas_________________________

1 COASE, Ronald. The Problem of Social Cost. Journal of Law and Economics, Vol. 3, 1690. pp. 1-44.

2 WOLKART, Erik Navarro. Análise econômica e comportamental do processo civil: como promover a cooperação para enfrentar a tragédia da Justiça no processo civil brasileiro. 2018. Tese (Doutorado em Direito Processual) – Centro de Estudos e Pesquisas no Ensino do Direito, Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro. pps. 114-118.

3 ARAÚJO, Thiago Cardoso. Análise econômica do direito no Brasil: uma leitura à luz da teoria dos sistemas. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2017, p. 69

4 Nos dias atuais, Shavell é indiscutivelmente é maior referência no tema ora em debate, tendo publicado inúmeras obras, sob diversos enfoques distintos.

5 Para maiores esclarecimentos, veja: SHAVELL, Steven, The fundamental divergence between the private and the social motive to use the legal system. vol. XXVI, Journal of Legal Studies, Chicago University Press, June 1997; SHAVELL, Steven The Appeals Process and Adjudicator Incentives, in Journal of Legal Studies, vol. 35, Chicago University Press, January 2006; KAPLOW, Louis. Private versus Social Costs in Bringing Suit. The Journal of Legal Studies, Vol. 15, no. 2 (Jun., 1986), pp. 371-385

6 De acordo com os ensinamentos de Richard Posner, “a jurisprudência é um estoque de capital que gera incremento produtivo às futuras decisões do Judiciário. a heurística derivada da aplicação de precedentes simplifica a tarefa do julgador, poupando recursos na solução dos casos” (POSNER, Richard A. Economic Analysis of Law. 9. ed. New York: Wolters Kluwer, 2014. p.759; FUX, Luiz; BODART, Bruno. “Notas sobre o princípio da motivação e a uniformização da jurisprudência no novo Código de Processo Civil à luz da análise econômica do Direito.” In: Revista de Processo, v. 269, jun. 2017, pp. 421-432.)

7 Com merecido destaque ao professor Luciano Benetti Timm.

8 STJ, REsp 1.163.283/RS, Relator ministro Luis Felipe Salomão, 4a T., j. em 07/04/2015.

9 Além do mencionado aresto, em profícuo voto subscrito pelo eminente ministro Ricardo Villas Bôas Cueva, o STJ avaliou o uso de garantias fidejussórias em fase de cumprimento de sentença vis-à-vis a AED, verbis: “De fato, no cumprimento de sentença, a fiança bancária e o seguro garantia judicial são as opções mais eficientes sob o prisma da análise econômica do direito, visto que reduzem os efeitos prejudiciais da penhora ao desonerar os ativos de sociedades empresárias submetidas ao processo de execução, além de assegurar, com eficiência equiparada ao dinheiro, que o exequente receberá a soma pretendida quando obter êxito ao final da demanda.” (STJ, REsp 1.691.748/PR, Relator ministro Ricardo Villas Bôas Cueva, 3a T., j. em 07/11/2017)

10 SHAVELL, Steven. Foundations of Economic Analysis of Law. Cambridge; London: Belknap, 2004, p. 39.