A ética pelo avesso

5 de fevereiro de 2005

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Nas férias partidas que, pesaroso, hoje encerro, andei por Itatiaia matando velhas saudades de amigos e lavando a miopia nos deslumbrantes cenários da serras que arranham o céu, estive em Belo Horizonte e naturalmente consagrei alguns dias ao descanso em Nova Friburgo.

Conheci muita gente, desfrutei conversas vadias, sem hora para acabar. Como é natural e inevitável, a curiosidade e a frustração que se alastram, como vinho entornado na mesa manchando a toalha, invariavelmente encaixavam perguntas sobre os temas da minha longa militância profissional de mais de meio século de repórter político.

A bisbilhotice sobre as contradições do governo do presidente metalúrgico, deslumbrado com o desfrute do novo padrão de vida de milionário excêntrico, a reformar palácios e comprar avião de luxo confere com o que se esperava. O que não surpreende, mas alarma, é a constatação que a memória não registre um único sinal de interesse pelo Congresso, pelos partidos ou pela emocionante crise nacional, envolvendo governo, o PT e a oposição no balaio de ambições da briga pela presidência da Câmara. Aqui e acolá, de passagem, com quem enxota a mutuca que atrapalha o papo, a frase curta de desprezo e repugnância pelo descalabro moral que contamina o Legislativo.

Números não mentem, às vezes enganam os que não sabem interpretá-lo. Não é o caso. O levantamento do Instituto Brasileiro de Pesquisa Social (IBPS) que o JB publicou na edição de domingo, debulhado pelo texto impecável do jornalista Israel Tabak reduz a percentuais o descrédito do Congresso na fria reação popular, com o ranger dos dentes na crispação do asco e da conformação com veteranas distorções. Alguns exemplos: 83% dos entrevistados cravam na mosca a sintética conclusão que os parlamentares ‘’trabalham pouco e ganham muito’’; em índices superiores a 50% desconhecem as funções dos senadores, deputados federais e estaduais e vereadores e não souberam citar o nome de um único parlamentar, sequer dos que desmereceram o seu voto.

Não há leve traço de exagero na severidade do julgamento dos eleitores, que reflete o que pensa a população: este é o pior Congresso da nossa crônica republicana.

E, se o momento aconselha a definir a cota de responsabilidade pelo descalabro que se abateu sobre as quatro décadas e quebrados do modelo brasiliense, para começar o mea culpa nos remorsos domésticos, nós, da reportagem política, devemos estender a mão à palmatória. Não tem faltado, sobra espaço na mídia para a amazônica cobertura da inatividade do Congresso. Páginas inteiras nas edições dominicais para o desfile das entrevistas da meia dúzia que se reveza dizendo as mesmas coisas no blablablá das obviedades. E salta-se por cima, com receio de derrubadas as barreiras das mazelas que corroem a respeitabilidade do mais democrático dos três poderes. A casa do povo transformou-se no palácio dos milionários, encarapitados no melhor dos empregos do mundo.

Ainda agora, na encenação da artificial briga de feira pela presidência da Câmara, aceita-se a impostura de que se trata de um choque de idéias, de programas entre os dois garnisés do PT, os ilustres e devotados deputados Luiz Eduardo Greenhalgh, carimbado pelo apoio do governo e da cúpula do partido, e o dissidente Vírgilio Guimarães. Outras pretensões correm ou se se arrastam por fora, como o venerando deputado Severino Cavalcanti, obstinado padroeiro do baixo clero e patrono das mordomias.

No saracoteio da mistificação, empalidece o que está realmente em jogo para o destaque de miudezas. Em mais um escorregão da arrogância, governo e PT transformaram a opaca rotina da troca de presidente da Câmara num episódio da precipitada reeleição de Lula. E ajudou a escamotear a surda mobilização dos bastidores e dos cochichos de plenário para o aumento da penca de vantagens, passagens, selos, verba indenizatória da farra das mordomias dos 81 senadores e 513 deputados, que se espalham pelas assembléias estaduais e câmaras de vereadores.

Em espantosa entrevista aos repórteres Gerson Camarotti e Isabel Braga, de O Globo, o candidato de Lula, deputado Greenhalgh, sustenta que tudo que precisa mudar é fazer as coisas com transparência. Explica o truque mágico: confiar ao plenário a decisão sobre o que é justo, constitucional, correto e ético. É o mesmo que entregar aos coelhos a guarda das cenouras.

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