“A democracia precisa ser cultivada”

8 de junho de 2020

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Entrevista com o novo presidente do tribunal Superior Eleitoral, Ministro Luís Roberto Barroso

Em cerimônia inédita, em que os convidados puderam acompanhar apenas por videoconferência, os Ministros do Supremo Tribunal Federal (STF) Luís Roberto Barroso e Edson Fachin assumiram em 25/5, respectivamente, a presidência e a vice-presidência do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) durante o biênio 2020-2022. Seu desafio imediato será avaliar a viabilidade das eleições municipais marcadas para outubro, cujo cronograma se encontra ameaçado em função dos efeitos da pandemia de covid-19.

Na antevéspera da posse, o Ministro Barroso concedeu à Revista JC essa entrevista exclusiva, na qual falou, para além da possibilidade de adiamento das eleições, sobre os projetos que pretende implementar no TSE e sobre as propostas em que acredita para o aperfeiçoamento do sistema eleitoral. Confiante na solidez das instituições, disse não ver riscos imediatos à democracia apesar das turbulências políticas, econômica e sociais vivenciadas pelo País.

Participaram da entrevista, realizada por chamada de vídeo, o Editor Executivo da Revista Justiça & Cidadania, Tiago Salles, e o Presidente do Conselho Editorial, o Ministro do Superior Tribunal de Justiça (STJ) Luis Felipe Salomão, que é também membro efetivo do TSE e está cotado para assumir, no segundo semestre, a Corregedoria-Geral da Justiça Eleitoral. Confira como foi a conversa:

Tiago Salles – O senhor vai assumir a Presidência do TSE às vésperas de um dos maiores processos eleitorais do mundo em termos de número de eleitores e candidatos. Está animado com o desafio das eleições municipais brasileiras?
Ministro Luís Roberto Barroso – Animado não tenho certeza se é a palavra, mas devemos cumprir com boa disposição as missões que a vida nos dá. O Brasil é de fato, possivelmente, a quarta maior democracia de massas do mundo, atrás apenas de Índia, Estados Unidos e Indonésia, com aproximadamente 150 milhões de eleitores. Portanto, não é tarefa fácil administrar esse processo, mais ainda nas eleições municipais, em que há uma grande quantidade de candidatos – esperamos cerca de 750 mil.

TS – Quais projetos pretende realizar à frente do TSE?
LRB – Temos vários projetos. O primeiro é fazer uma campanha pelo voto consciente. Precisamos demonstrar às pessoas que o voto não é dever cívico apenas, que se cumpre resignadamente, mas instrumento para moldar e modificar o mundo. Vamos procurar estimular os eleitores a pesquisarem, se prepararem, chegarem à eleição sabendo quem é seu candidato e se ele corresponde a suas visões de mundo e de País. Vamos estimular o eleitor a gravar o nome do seu candidato, inclusive, para saber o desempenho dele.

O segundo projeto, uma segunda campanha, será atrair jovens valores para a política. Precisamos trazer jovens idealistas, focados no interesse público, para a vida política, para contribuir, escrever e reescrever a história do Brasil.

Um terceiro projeto da nossa gestão será o que tenho chamado de empoderamento feminino. Precisamos atrair também as mulheres para a atuação política e a participação em todos os níveis da vida do País, especialmente na política, de forma igualitária. Faz muita diferença. Olhando para o mundo, podemos verificar o sucesso no enfrentamento à pandemia obtido por países liderados por mulheres.

Ministro Luis Felipe Salomão – Ministro Barroso, em meio a essa grande tragédia que estamos vivendo, ao mesmo tempo um momento de superação, como fica o cronograma das eleições? Vai precisar alterar as datas? Isso será feito em consonância com o Congresso Nacional? Quais as providências, do ponto de vista administrativo, que o Tribunal terá que adotar para que isso se viabilize?
LRB – Desde quando fui eleito Presidente do TSE, repetidamente vinha dizendo que ainda era precoce decidirmos acerca do adiamento das eleições. Havia programado internamente, para mim mesmo, que junho seria o marco para essa tomada de decisão, que evidentemente depende de uma decisão política do Congresso Nacional. Existem aspectos técnicos da competência da Justiça Eleitoral e existe uma decisão política, a ser tomada pelo Congresso. Já iniciei contatos informais com o Presidente do Senado Federal, Senador Davi Alcolumbre, e com o Presidente da Câmara, Deputado Rodrigo Maia. Existe entre nós três consensos: o primeiro é que se for inevitável adiar as eleições, que esse adiamento se dê pelo mínimo prazo; o segundo é que, em qualquer caso, desejamos realizar as eleições ainda este ano para evitar, no limite máximo, qualquer prorrogação de mandato; e, em terceiro lugar, estamos em consenso contrário ao cancelamento das eleições para fazê-las coincidir em 2022 com as eleições nacionais.

Ainda que se tente marcar alguma data, talvez a melhor fórmula seja uma Proposta de Emenda Constitucional sobre os Atos das Disposições Constitucionais Transitórias que conceda uma janela de tempo, de três meses, por exemplo, para que essa data seja fixada. Talvez se conceda essa competência ao TSE em consulta ao Presidente da Câmara e ao Presidente do Senado. (…) Desejaria que não fosse necessário o adiamento, mas a essa altura é uma possibilidade real que precisamos considerar.

LFS – Essa semana se falou com mais intensidade no primeiro turno dia 6/12. É isso mesmo ou são apenas rumores?
LRB – Acho que já foram apresentados diversos projetos ao Senado e à Câmara. Um dos que li previa o primeiro turno em 15/11 e o segundo turno no primeiro domingo de dezembro (6/11). Mas, como falei, uma das características dessa pandemia e do momento que vivemos é uma certa indefinição, certa imprevisibilidade. Enquanto a curva da doença estiver subindo, e infelizmente ela ainda está subindo, será muito difícil prever o futuro. Li essa semana artigo do Professor Gonzalo Vecina – renomado sanitarista que foi presidente da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) – e ele fazia um cálculo assustador de que poderia haver 500 mil mortos. Evidentemente, espero que isso não venha a se consumar, mas, em um ambiente assim, a saúde pública é nossa preocupação número um, a democracia vem logo atrás, mas essa decisão, no fundo, não é jurídica nem política. É uma decisão sanitária.

LFS – Será preciso ou se cogita, do ponto de vista administrativo, a mudança do sistema, na forma de votação ou na estrutura das zonas eleitorais? Alguma mudança nesse sentido é cogitada?
LRB – Uma pequena modificação já será inevitável. A cada eleição é substituída uma fração das urnas, que vão ficando obsoletas. Esse ano isso não foi possível, não apenas por dificuldades iniciais de licitação, como também pela superveniência da pandemia, que inviabilizou essa substituição, de modo que vamos ter que aumentar um pouco o número de eleitores por urna. O setor técnico do TSE já está fazendo esses cálculos. Não é nada relevante, mas vai passar de 300 e pouco para talvez 450 por urna.

Cheguei a cogitar em uma live fazer as eleições em dois dias, o que poderia minimizar as aglomerações e parecia uma ideia possível. Porém, também pedi para fazer as contas de quanto isso custaria e o custo é muito alto. O estimado é de R$ 180 milhões, só de lanche para 1,8 milhão de mesários e para o pagamento das Forças Armadas, por conta de um convênio que têm com o TSE para garantir a segurança e o transporte das urnas. Portanto, embora talvez seja uma medida positiva do ponto de vista sanitário, tenho dúvidas se o País poderia fazer esse gasto extra nesse momento de dificuldade. Uma alternativa seria prolongarmos o horário das eleições, talvez fazer das 8h às 20h, 12 horas de eleições, e tentar dividir em turnos, possivelmente por faixa etária ou outro critério objetivo razoável, e contar com o apoio do eleitorado para evitar as aglomerações. Porque a informação que tenho é que há grande concentração de eleitores no início, grande concentração de eleitores no final e certa dispersão ao longo do dia. Se conseguíssemos otimizar esses slots, esses horários, talvez se possa evitar a aglomeração.

Outra coisa que me ocorre, porque o País está sem dinheiro, é conclamar grandes empresas – sem contrapartida, devo dizer – a nos ajudar com doações de máscaras e álcool gel para os mesários, talvez alguma outra medida de segurança para profilaxia das urnas. Portanto, acho que vai ser uma gestão complexa, para a qual espero muito contar com você e com suas ideias como Corregedor Geral da Justiça Eleitoral.

LFS – O voto continua na urna? Há possibilidade de uma alternativa de voto por outro meio que não seja a urna eletrônica?
LRB – Até tenho vontade e sob a liderança da nossa querida Presidente (TSE, 2018-2020), Ministra Rosa Weber, já estávamos pensando em montar um pequeno grupo de trabalho para começar a planejar as eleições do futuro. Precisamos baratear os custos das eleições, porque as urnas eletrônicas custam muito caro e têm essa necessidade de revisão periódica. Hoje em dia já há tecnologia pra votar do computador, do celular. De modo que minha ideia é acelerar esses estudos para conseguirmos, no menor tempo possível, essa fórmula de eleição por dispositivos pessoais de cada eleitor, mas a verdade é que há outras considerações. Não é só uma questão tecnológica, é uma questão tanto de confiabilidade do sistema quanto de sigilo do voto. Se o sujeito estiver votando em casa sozinho você não sabe se tem um cabo eleitoral monitorando o que ele está fazendo e comprometendo o caráter secreto do voto. Portanto, há algumas questões que precisam ser equacionadas e que não são só tecnológicas. Sou um sujeito que acredita em criações coletivas, portanto, minha ideia é tentar produzir um brainstorming de ministros e técnicos para encontrar uma fórmula tecnologicamente mais eficiente e economicamente mais barata, mas acho que não haveria condições de conseguirmos isso para essas eleições.

TS – Apesar de não haver notícia de falha grave nas urnas eletrônicas, utilizadas no Brasil desde 1996, volta e meia a segurança delas é questionada, sobretudo por candidatos. Qual o seu grau de confiança nas urnas eletrônicas? O senhor estava falando agora dessa possível mudança…
LRB – Queixa dos candidatos sempre haverá. Sou juiz há sete anos e nunca vi uma parte perder e dizer “a outra parte tem realmente melhor direito do que eu”. Às vezes você consegue desagradar os dois lados, isso acontece na política. O sujeito que não é eleito às vezes acha que o problema não foi dele, da sua campanha ou da carência de eleitores, acha que o problema está em outro lugar. Geralmente não é o caso.

Sob as urnas eletrônicas já foram eleitos o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, para o segundo mandato; o ex-presidente Lula, para o primeiro e para o segundo mandatos; a ex-presidente Dilma Rousseff, para o primeiro e o segundo mandatos; e o Presidente Jair Bolsonaro. Não acho que alguém possa crer que essa não tenha sido efetivamente a vontade do eleitorado, até porque os resultados corresponderam às pesquisas que antecederam os pleitos e mesmo às pesquisas de boca de urna. Portanto, não há nenhum motivo até hoje para desconfiança em relação às urnas. Claro que se alguém trouxer – sou juiz, lido com fatos, não dou muita bola para retórica política – um fato, um dado, uma prova, um elemento objetivo de que houve algum problema, nós do TSE temos todo interesse, porque nossa preocupação não é defender a urna. Nossa preocupação é fazer eleições limpas. Se houver algum indício vamos atrás, mas nunca houve até agora.

Há certa fantasia de que o voto impresso é mais seguro, mas quando o voto era impresso é que havia fraude. A história da República brasileira é uma história de fraudes, tanto na votação quanto depois, no lançamento dos mapas. Nós acabamos com isso. O sistema de apuração brasileiro é admirado pelo mundo inteiro. A bronca é livre, mas é uma queixa infundada.

LFS – O Ministro Barroso coordenou um grupo de trabalho no TSE sobre sistema eleitoral e algumas sugestões foram apresentadas. Como o Ministro vê isso?
LRB – De fato apresentamos uma proposta à Câmara dos Deputados de mudança do sistema eleitoral. Já havia um bom projeto aprovado no Senador Federal, apresentado pelo Senador José Serra. Achamos que começar do zero não era uma boa ideia e trabalhamos sobre esse projeto. Fizemos talvez três, quatro ou cinco retoques e o apresentamos ao Presidente da Câmara, Deputado Rodrigo Maia, como uma proposta oficial do TSE na composição daquele momento. Qual é a crítica? Na verdade, estamos falando do sistema eleitoral para a Câmara dos Deputados, em que o sistema praticado no Brasil é o do voto proporcional em lista aberta. Cada partido lança uma vez e meia o número de vagas em disputa e o eleitor vota livremente em quem deseja, o que cria um pouco a ficção de que o eleitor está elegendo seus candidatos, mas o sistema, infelizmente, não proporciona isso. Nossa proposta junto à Câmara visa a realização de três objetivos que achamos que devem ser alcançados por uma reforma política: baratear o custo da eleição, aumentar a representatividade parlamentar e facilitar a governabilidade.

Esse sistema de eleição proporcional em lista aberta para a Câmara dos Deputados é caro porque todo candidato a deputado concorre às eleições disputando voto em toda a circunscrição eleitoral. Vamos dar como exemplo São Paulo que tem, arredondando, 35 milhões de eleitores. Em tese, cada candidato disputa o voto de 35 milhões de eleitores. A campanha é muito cara e esse é o primeiro problema, porque o financiamento eleitoral esteve por trás de boa parte dos problemas de corrupção que enfrentamos no Brasil.

O segundo problema é de representatividade, porque o eleitor vota no candidato da sua escolha, mas o voto vai para o partido e os mais votados do partido é que obtêm a vaga. Portanto, pelo quociente eleitoral do partido – que é a divisão do número de votos válidos pelo número de cadeiras – e depois pelo quociente partidário – que é o número de votos que o partido recebe – faz-se uma conta. Vamos supor que o partido tenha direito a dez cadeiras, os dez mais votados é que entram. Porém, a experiência demonstra, só 5% são eleitos por votação própria, 95% são eleitos pela transferência do voto partidário. No final do dia, o eleitor vota em quem quer, mas elege quem não sabe. O eleitor não sabe quem elegeu e o candidato não sabe exatamente por quem foi eleito, um sistema em que um não tem de quem cobrar e o outro não tem para quem prestar contas. O que gera um descolamento indesejável entre a classe política e a sociedade civil.

Um terceiro problema é que o voto proporcional em lista aberta, somado a algumas outras regras, induz à criação e à atomização de partidos, o que dificulta a governabilidade e a formação de maiorias consistentes no Congresso. Gera esse modelo de presidencialismo de coalisão que impõe ao Presidente, seja ele qual for, um tipo de negociação com o Congresso que, por vezes, não consegue se manter em moldes republicanos.

Propusemos uma alternativa que é o voto distrital misto, que acreditamos ser capaz de baratear as eleições, aumentar a representatividade e facilitar a governabilidade. Vou dar uma explicação simplificada de como funciona. Metade da Câmara é eleita pelo voto no distrito e a outra pelo voto no partido, de forma tal que o eleitor tem dois votos: no candidato do seu distrito e no partido de sua preferência.

Como funciona a dimensão distrital no voto distrital misto? Vamos tomar de novo São Paulo como exemplo. São 35 milhões de eleitores e 70 cadeiras na Câmara para deputados de São Paulo. Para preencher metade das 70 vagas com o voto distrital, vai se dividir o estado em 35 distritos, com a média de um milhão de eleitores cada, de modo que o candidato, em vez de disputar a vaga em todo o território, vai disputar apenas o voto de um milhão de eleitores do distrito. Cada partido lança um candidato no distrito e um milhão de eleitores daquele distrito votam no candidato de sua preferência, o que tiver maior número de votos obtém a vaga. Por que barateia? Porque em vez de fazer campanha para 35 milhões, vai fazer campanha para um milhão. Por que aumenta a representatividade? Porque o eleitor daquele distrito passa a ficar sabendo quem o representa na Câmara dos Deputados, de modo que quando aquele parlamentar voltar quatro anos depois para pedir voto, vai saber como ele votou na reforma trabalhista, na reforma da Previdência, na reforma tributária e poderá monitorar o desempenho dele. Sabendo disso, o candidato também vai se esforçar para corresponder às aspirações dos seus eleitores no distrito. O sistema distrital misto induz a redução dos partidos, induz a formação de blocos. Essa é a dimensão distrital.

O segundo voto é no partido, para que a eleição não fique totalmente municipalizada e as grandes questões possam ser debatidas. Esse é o chamado voto em lista. O partido apresenta uma lista preordenada e os primeiros nomes da lista é que vão obter as vagas. Há uma certa queixa de que não se pode escolher livremente seu candidato, mas a verdade é que no voto em lista você sabe que se votar naquele partido os cinco primeiros que vão entrar são aqueles, ao passo que na lista aberta você vota em quem quer, mas elege quem você não sabe. Fica mais democrático assim. Porém, é muito importante e nós previmos em uma de nossas sugestões que se o eleitor não quiser votar na lista, poderá votar no seu candidato, mas será preciso que o candidato obtenha votação própria, correspondente ao quociente eleitoral, para obter a vaga. Portanto, é um sistema que combina uma dimensão majoritária, que é o voto distrital, com uma dimensão proporcional, que é o voto no partido.

LFS – Eu hoje participava de um debate sobre o momento político atual e um dos debatedores disse “não fomos nós que mudamos, foi o eleitor e suas prioridades que mudou mudaram”. É bom que nos acostumemos com isso, porque efetivamente as demandas são outas. As tecnologias trouxeram impactos nas prioridades das pessoas e as implicações no debate eleitoral são enormes. Aquela questão do comício foi completamente superada. Aquela coisa de emporcalhar as ruas, que era uma das maiores preocupações que tínhamos há dez, vinte anos atrás, não existe mais. Agora esse debate foi transplantado e a arena é a rede social. Entra aí o tema das notícias falsas, das falsas afirmações, das ofensas à honra e de como reparar isso para manter o equilíbrio do pleito. Como avalia esse cenário?
LRB – Ainda no capítulo mudança do sistema eleitoral, costuma haver certo ceticismo porque o senso comum diz que as pessoas que estão lá não vão querer mudar o sistema pelo qual se elegeram. Essa talvez seja uma percepção equivocada. Primeiro, porque sempre podemos contar com certo senso de interesse público e de patriotismo das pessoas; em segundo lugar, houve uma renovação de cerca de 50% no Congresso Nacional. Portanto, o sistema não garante recondução. De modo que talvez seja uma premissa equivocada achar que quem está lá pode não querer nunca mudar o sistema.

Passando agora especificamente à pergunta, realmente a dinâmica eleitoral mudou substancialmente, do corpo a corpo na rua, dos comícios e da distribuição de santinhos de papel para uma era que primeiro foi a da telecomunicação, via rádio e televisão, e agora passou a ser a das redes sociais. Nas últimas eleições presidenciais no Brasil, a televisão e o rádio tiveram peso muito menor do que em eleições passadas. Vimos que os candidatos que se articularam para ter o maior tempo de televisão na verdade tiveram menos acesso aos eleitores do que os que se organizaram nas redes sociais. Isso é um fato. As redes sociais – Whatsapp, Twitter, Facebook, Instagram, essas novas ferramentas – passaram a ser, portanto, protagonistas desse processo.

O que aconteceu foi a migração, digamos assim, de certos comportamentos delituosos para as redes sociais com essas campanhas, às vezes de impulsionamento ilegal e, mais graves ainda, as campanhas de desinformação, de difamação e de ódio. Isso é muito preocupante, porque não há solução fácil para esse problema e essa solução não está predominantemente no Poder Judiciário. É a dura verdade que temos que aceitar. O Judiciário vai ter um papel, mas um papel residual no enfrentamento das fake news, por muitas razões. Vou dar três. A primeira é que a própria caracterização do que seja fake news não é singela e o Judiciário não pode se transformar em sensor do debate público. Em segundo lugar, o Judiciário tem rito próprio, depende de representação do interessado, tem que seguir o contraditório e depois julgar. Como regra, não consegue a tempo e a hora de impedir a circulação de notícias falsas. Se você chegar 15 dias depois, o que para o Judiciário às vezes é relativamente rápido, já é tarde. Em terceiro lugar, parte desses computadores estão fora do Brasil e nós não temos jurisdição extraterritorial para ir atrás deles.

Há situações extremas em que, evidentemente, o Judiciário tem que intervir, mas não dá para imaginar um controle amplo de conteúdo do debate público pelo Judiciário para eliminar fake news, mesmo porque o que um acha que é fake news o outro acha que é a pura verdade. Portanto, estamos contando em primeiro lugar e sobretudo com as próprias plataformas tecnológicas. Sob a liderança da Ministra Rosa Weber fizemos parcerias com diversos órgãos, entidades, instituições, inclusive com as principais plataformas tecnológicas, para que elas utilizem os meios tecnológicos a sua disposição para detectar impulsionamentos ilegais, atuação de robôs, comportamentos não usuais e violação das suas políticas de uso. As plataformas que eram um pouco arredias a essa colaboração, em defesa da liberdade plena, já se deram conta de que vinham sendo utilizadas para a degradação da democracia e que isso importava em uma perda de imagem para elas. Imagino que venham a ser bem mais colaborativas. Tenho vontade de me reunir com elas, talvez virtualmente, o mais breve possível, para que possamos, eu e os ministros, nos informar e nos inteirar do que eles estão fazendo para deixarem de ser os vilões da democracia.

Também imagino fazer pelo TSE, uma grande campanha de conscientização para as pessoas terem o mínimo de critério ao repassar notícias, verificar a procedência, ter o mínimo de interesse na autenticidade e não fazer com o candidato dos outros o que não gostaria que fizessem com os seus. Regra de ouro neles também nessa matéria. Portanto, talvez seja a minha principal preocupação nas eleições as campanhas de desinformação. Os controles de conteúdo são muito difíceis, mas vamos ter que adotar certos controles de comportamento via plataformas tecnológicas.

TS – Do Direito do Consumidor ao Direito do Trabalho, passando por questões relativas à proteção de dados pessoais e à privacidade, essa pandemia desperta medo não apenas por seus sintomas, mas pela insegurança jurídica. Na sua visão, quais são as principais inseguranças causadas por essa crise?
LRB – São tantas implicações que é até difícil sistematizá-las, porque essa é uma crise que se apresentou em múltiplas dimensões. Ela tem uma dimensão sanitária, em que o mundo já tem mais de quatro milhões de pessoas que contraíram a doença e caminha, talvez, para 200 mil mortos. Países como os EUA já têm mais de 1,5 milhão de pessoas contaminadas e caminha para 100 mil mortos. O Brasil já caminha para 20 mil mortos em breve. Em primeiro lugar há a dimensão sanitária na crise, uma questão de saúde pública. Com a falta de uma vacina ou de um remédio eficaz só há duas soluções: ou o isolamento social ou o que se tem chamado de imunidade de rebanho. O isolamento social tem se mostrado relativamente eficiente na contenção da doença. A imunidade de rebanho é uma possibilidade que se avalia, mas vem com mais ou menos 70% de pessoas contaminadas. Em um país como o Brasil, se você tiver 70% das pessoas contaminadas e aplicar um percentual de mortes modesto, de 0,4%, ainda assim estará falando de centenas de milhares de mortos. Então, provavelmente, esse não é o caminho que queremos seguir.

A segunda dimensão é econômica. Vem aí uma imensa recessão econômica no mundo. O Fundo Monetário Internacional estima que será de 3% a queda do Produto Interno Bruto mundial e no Brasil, infelizmente, estima-se que será de 5,3% e há quem ache que esta é uma estimativa ainda modesta.

As empresas vão quebrar ou vão entrar em recuperação e vai haver desemprego em massa em um país que já tinha 12% de desempregados. Uma dimensão social grave a ponto do Governo estar prevendo auxílio emergencial para amparar sobretudo os trabalhadores informais, e aí nós descobrimos que uma boa parte da mão de obra do Brasil está na informalidade e muitos estavam na invisibilidade, nem se sabia quantos eram, nem onde estavam. Portanto, há uma dimensão social dramática.

Há uma dimensão fiscal. O País já estava com déficit público que chegava perigosamente a 80% do PIB e, evidentemente, a pandemia coloca grande pressão sobre os cofres públicos, tanto para a área da saúde, quanto para o apoio às empresas, quanto para o apoio social aos desempregados, então vamos ter uma dimensão fiscal imensa dessa crise.

No meio da crise, tivemos no Brasil uma dimensão política. Dois ministros da Saúde deixaram o cargo, criando um grau de dificuldade de coordenação do enfrentamento da pandemia. Temos ainda a dimensão eleitoral, que é o impacto no adiamento das eleições. Portanto, são múltiplas as dimensões. Sendo que a mais dramática é a dimensão humana na perspectiva de termos centenas de milhares de mortos.

LFS – Qual é o papel do STF nisso?
LRB – O papel do Judiciário, em geral, e do Supremo, em particular, deve ser um papel de autocontenção, sobretudo onde há políticas públicas já estabelecidas e uma certa eficiência na sua implementação. O Supremo interveio pontualmente em algumas questões, mas não estruturalmente. Interveio para suspender pagamento de dívida dos estados, para estes poderem direcionar recursos ao enfrentamento da pandemia – o que achei uma decisão bastante razoável. O Supremo interveio – com uma decisão minha mesmo – para impedir a difusão de uma campanha convocando as pessoas para voltarem a trabalhar e às ruas em um momento em que a Organização Mundial da Saúde e todas as entidades médicas recomendavam o isolamento social – outra decisão acertada. Recentemente, o Supremo interveio para dizer que se considera erro grosseiro do agente público não seguir protocolos, padrões médicos e sanitários consensuais e universalmente reconhecidos como adequados. Portanto, foram poucas as intervenções pontuais, mas importantes para a adoção de critérios racionais. Cheguei a usar a expressão que “o Brasil precisa de um choque de iluminismo”, diante dessa dificuldade você precisa trabalhar com razão, ciência, humanismo e não com ideologia, misturando o enfrentamento da doença, que é uma questão de saúde pública, com o varejo da política. Mas vejo com grande reserva o Judiciário se imiscuir demais nessa matéria para determinar exames, ou para determinar internações, porque às vezes o juiz consegue produzir o que considera a justiça do caso concreto, e isso tudo é importante, mas produzindo um efeito sistêmico que, na outra ponta, causa injustiças maiores do que aquela que evitou em uma situação concreta. Portanto, desde o primeiro momento minha posição, quando manifesto publicamente, é de recomendar à magistratura uma autocontenção nessa matéria para não desestruturar o sistema.

TS – Em um ambiente político tão turbulento quanto o atual, que envolve inclusive conflitos entre os Poderes, o senhor enxerga algum risco de quebra da normalidade democrática? Quais medidas o STF poderia adotar para proteger a independência dos poderes?
LRB – Risco na vida sempre existe, mas a despeito da turbulência desse momento não vejo um risco real. O que eu vi foi o Poder Legislativo rejeitar medidas provisórias do Presidente da República e elas deixarem de vigorar: a Constituição foi cumprida. O Supremo Tribunal Federal invalidou algumas medidas do Presidente da República, elas não foram aplicadas: a Constituição foi cumprida. Portanto, do ponto de vista institucional as coisas vêm funcionando. Fala-se muito das Forças Armadas, mas não vejo nenhuma mobilização, nenhuma liderança das Forças Armadas imbuída do espírito de quebrar a legalidade constitucional. É claro que pode haver uma declaração aqui, outra ali, de lealdade ao Comandante em Chefe, mas institucionalmente eu não vejo esse perigo.

As Forças Armadas brasileiras pagaram um preço alto pelo regime militar. Temos uma nova geração, competente, profissionalizada, que nos 30 anos da democracia não se meteu no varejo da política. Não tenho nenhuma razão para acreditar que isso tenha se alterado ou venha a se alterar. A democracia em qualquer lugar do mundo precisa ser cultivada e preservada, mas não vejo risco imediato. Quando houve acenos retóricos antidemocráticos, a reação da sociedade foi muito vigorosa, tanto dos partidos políticos, quanto do Congresso, da imprensa e da sociedade civil. Portanto, ninguém quer uma volta a regimes de força. Regimes de força vêm sempre com censura, com violência contra adversários, com intolerância. Nós já superamos os ciclos do atraso e acho que esse tempo não voltará mais.