Edição 298
A Defensoria Pública como instrumento e expressão do regime democrático de Direito
2 de junho de 2025
Fernanda Fernandes Presidenta da Anadep

Vivemos tempos marcados por paradoxos. Como observa Boaventura de Sousa Santos “nunca as promessas da modernidade foram tão possíveis e nunca estiveram tão ameaçadas”. A era da inteligência artificial, da cibernética e da virtualização das relações trouxe avanços imensos, mas também intensificou desigualdades, exclusões e rupturas sociais. A contemporaneidade nos oferece recursos técnicos inéditos para a realização das promessas centrais da modernidade – liberdade, igualdade e solidariedade – mas, contraditoriamente, tais ideais parecem cada vez mais afastados da realidade social. Nesse cenário complexo, a Defensoria Pública se apresenta não apenas como uma instituição jurídica, mas como um símbolo de justiça, unidade e reconstrução democrática. Ela é, simultaneamente, instrumento e expressão do regime democrático de direito, como preconizado pela própria Constituição de 1988.
Como afirma Boaventura de Sousa Santos, “a democracia representativa, na sua forma liberal, está longe de esgotar as potencialidades democráticas da sociedade moderna”. Para ele, a crise atual das democracias decorre da captura das instituições por poderes econômicos e da separação entre os princípios proclamados e a realidade vivida pelas populações. Nesse sentido, propõe-se a construção de democracia participativa que complemente a representação formal com novas formas de escuta, controle social e empoderamento popular.
É precisamente nesse ponto que a Defensoria Pública se apresenta como ferramenta constitucional fundamental. Sua missão constitucional é garantir o acesso à justiça àqueles que mais precisam, promover os direitos humanos e atuar com perspectiva transformadora. É a instituição que se coloca ao lado do povo vulnerável, não apenas como mediadora, mas como defensora – promovendo uma justiça que ouve, acolhe e constrói vínculos. É, na prática, uma realização da proposta de Boaventura de democratizar a própria democracia.
Do ponto de vista filosófico, a atuação da Defensoria Pública em favor da efetivação de acesso a justiça e direitos e, portanto, da inclusão dos tradicionalmente excluídos, remete-nos ao ideal platônico do belo como justo e do justo como aquilo que eleva e unifica. Platão compreendia que a beleza não é mera aparência sensível, mas forma ideal e essência que conduz o ser humano ao aperfeiçoamento. Essa concepção se contrapõe à heresia da separatividade, expressão que denuncia a crença ilusória de que estamos isolados e desconectados uns dos outros e do mundo. A separatividade, nesse sentido, alimenta o sofrimento, a discriminação e o conflito. Já a unidade – objetivo da justiça – é o que dá sentido à evolução social e à pacificação das relações humanas.
A história oferece respaldo a essa teoria filosófica sobre os esforços humanos para promoção da união, após os períodos de dor marcados pela separatividade. Os horrores do século XVIII, com desigualdades extremas, foram seguidos dos ideais de liberdade, igualdade e fraternidade. No pós-guerra do século XX, a resposta à divisão e à violência institucionalizada foi a Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948, reafirmando o princípio da dignidade que une todos os seres humanos. No Brasil, a Constituição de 1988 nasce como resposta à ruptura democrática. Como disse Ulysses Guimarães na promulgação da Carta: “Esperamos a Constituição como o vigia espera a aurora. Bem-aventurados os que chegam”.
E a Defensoria Pública, celebrada neste maio verde, chegou junto com a nossa Constituição de 1988, que a inscreveu como expressão do regime democrático de direito, pela aurora de uma democracia que escuta e atende os excluídos e vulneráveis, em busca da unidade de efetivação de direitos e de acesso a justiça.
Essa atualidade da Defensoria Pública como expressão e instrumento da democracia é evidenciada pela Pesquisa Nacional da Defensoria Pública 2025. Em 2024, foram realizados quase 30 milhões de atendimentos por defensoras e defensores públicos no Brasil, entre os quais mais de 1,7 milhão de conflitos foram solucionados extrajudicialmente. Apesar desses números expressivos, apenas 52% das comarcas brasileiras são regularmente atendidas, em descumprimento à Emenda Constitucional (EC) no 80/2014, que determina a presença da instituição em todas as comarcas do país. O gasto médio nacional com a Defensoria foi de apenas R$ 45,99 por habitante, variando de R$ 15,15 em Santa Catarina a R$ 158,86 em Roraima e Tocantins.
Esses dados revelam um paradoxo concreto: enquanto a Defensoria cresce, entrega resultados e se consolida, inclusive como referência internacional, em acesso gratuito à justiça, ainda enfrenta subfinanciamento, ausência territorial e invisibilidade institucional. E isso, sem dúvida, é um prejuízo efetivo à democracia. Afinal, como bem declarou o presidente Luiz Inácio Lula da Silva em discurso proferido no dia 8 de janeiro de 2024: “Não haverá democracia enquanto houver uma pessoa no sinal com um cartaz pedindo ajuda para matar a fome”, e, portanto, não há democracia enquanto essas pessoas em situação de vulnerabilidade não tiverem uma Defensoria Pública fortalecida, consolidada, estruturada e capilarizada na forma da EC 80 para efetivar os direitos à alimentação, à saúde, à liberdade, à defesa, enfim, à dignidade da implementação de direitos fundamentais e básicos.
A Constituição de 1988 é clara ao afirmar que erradicar a pobreza, reduzir as desigualdades e promover o bem de todos são objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil. Tais finalidades não se realizarão enquanto metade do território nacional estiver desassistido por defensoras e defensores públicos. A Defensoria Pública é, nesse contexto, uma instituição que encarna o princípio da dignidade humana como fundamento do Estado Democrático de Direito.
Ela também cumpre, na prática, o que Boaventura de Sousa Santos chamou de democracia contra-hegemônica: aquela que, mesmo nos interstícios do sistema, reconfigura os espaços públicos de debate e de decisão a partir das experiências e necessidades populares, da justiça dos territórios. A Defensoria, nesse sentido, é também instrumento de tradução intercultural e de hermenêutica concreta, promovendo diálogo entre mundos do dever ser e do ser desconectados na realidade social.
Mais do que uma estrutura jurídica, a Defensoria é a promessa de realização dos direitos fundamentais que estão como o cerne da Constituição. É expressão porque representa modelo de Estado que reconhece, escuta e repara. É democracia porque é povo.
Se queremos uma democracia forte, precisamos de uma Defensoria Pública forte: presente em todas as comarcas, valorizada, estruturada, com orçamento justo e defensoras e defensores em número suficiente para assegurar qualidade e humanidade no atendimento. Porque sem justiça social, não há democracia real. E sem Defensoria Pública, não há justiça social.
Como disse Ulysses Guimarães: “Hoje é o alvoroço da chegada, com a âncora da Constituição chumbada no chão da democracia”. Que essa âncora permaneça firme. E que, neste maio verde, verde da Defensoria, verde da esperança, verde da bandeira brasileira, possamos celebrar o compromisso de um sonho efetivado da Defensoria Pública como a base da nossa democracia – para todos e todas, como celebração da efetivação da nossa Constituição.
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