A crise dos emergentes

21 de julho de 2011

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A crise atual decorreu de um imperativo psicossocial clássico nas economias de mercado, ou seja, o envolvimento de toda a sociedade, sem intervenção adequada dos governos, na busca de resultados financeiros e no mercado de capitais, em face do crescimento da economia em padrões acima das necessidades de consumo dos que têm capacidade de absorver a produção. Dessa forma, os investimentos foram valorizados também em patamar mais elevado do que seu intrínseco valor estrutural, com o que, em um determinado momento, tal evolução, sem sustentabilidade real, necessariamente, terminaria por explodir, gerando mais uma crise cíclica de capitalismo, em dimensões maiores do que aquelas que ocorrerem após 1929.
O efeito psicológico de uma percepção superficial dos elementos causadores da crise, indiscutivelmente, acabou por gerar um prolongamento ilusório de um “boom econômico”, já diagnosticado por especialistas como sem condições de permanência, a partir de 2006/2007.
Os mercados não são autorreguláveis, mas as regulações oficiais quase sempre são insuficientes para corrigir suas distorções, mormente quando as próprias autoridades iludem-se quanto à sua capacidade de conduzi-lo.
Por outro lado, os investidores que o alimentam e que, não poucas vezes, também se iludem com a fortaleza estrutural do progresso e do desenvolvimento, terminam sendo, simultaneamente, causa e efeito gerador daquele momento em que a constatação da impossibilidade de sua permanência em níveis elevados indefinidamente torna-se evidente.
Em outras palavras, há um ponto de equilíbrio, que seria o limite crítico entre uma realidade controlável, propiciadora da estabilidade dos mercados, e a atuação dos agentes econômicos e autoridades tanto para perceber, quanto para promover uma intervenção corretiva, sempre que esse limite crítico, precário por natureza, é ultrapassado. É que, de outra forma, a atuação dos agentes econômicos passa a ser aleatória e desordenada, na busca desesperada de salvar o que lhes parece em risco de se perder, terminando, a ação das autoridades com poder regulatório, por ser superada pela atuação de investidores e consumidores.
São estes, de rigor, aqueles que determinam os humores da realidade econômica, nas crises e nos tempos de bonança.
Assim, há um ponto de equilíbrio permanente, na economia de mercado, sempre que os investidores, os agentes produtivos (agricultura, indústria, comércio e serviços) e os agentes públicos atuam na perspectiva de um desenvolvimento projetado, detendo pleno conhecimento dos fatores sociais, políticos, econômicos, de consumo e emprego, e sendo capazes de mantê-los constantes mediante controle induzido, por meio de políticas creditícias e fiscais capazes de estimular ou desestimular setores que possam provocar os desequilíbrios definidos como indesejáveis pelos agentes econômicos e públicos em conjunto. Nesse contexto de adequada política de mercado, a própria conjunção de agentes públicos e privados conformará o nível de gastos públicos e despesas burocráticas, sempre que estes possam interferir no mercado, promovendo o seu redimensionamento quando se mostrarem superiores à capacidade de absorção, de forma a impedir distorções de difícil correção, a médio e longo prazos.
Vale dizer, numa economia de mercado equilibrada, todos os fatores devem convergir para uma nova realidade, o que exige sensibilidade adequada dos parceiros com capacidade de intervenção, para que esta se dê de comum acordo e na exata medida, tanto para evitar desequilíbrios, como para propiciar convergência de objetivos. Tal convergência, aliás, mostra-se cada dia mais necessária e alargada, em nível internacional, nos espaços regionais criados com a mesma política, tornando indispensável um limite crítico convivencial amplificado.
Embora o modelo pareça utópico, a verdade é que, nas crises verificadas depois da Segunda Guerra Mundial, e, principalmente, na atual, os problemas não avaliados a tempo e distendidos pela  pressão própria dos agentes econômicos permitiram, todavia, a busca de convergência supranacional das relações, com razoável concordância quanto aos princípios básicos de combate à crise. A decisão pela manutenção operacional do falido sistema financeiro dos países desenvolvidos eliminou um contágio mais grave, na economia real, deteriorada pelos mesmos males que atingiram aquele sistema (créditos fáceis para empresas ou consumidores insolventes, com renovações permanentes). O erro de avaliação das autoridades, principalmente financeiras, no espoucar da crise, foi acreditarem que a força do mercado,  em “boom” constante há vários anos, absorveria bancos e empresas, institucionalmente quebrados, e que as forças do próprio mercado corrigiriam as detectadas dificuldades momentâneas, permitindo sua recuperação futura. Tal erro de avaliação, que levou ao mascaramento dos balanços e às renovações de títulos sem qualquer lastro real, retardou em mais de dois anos a tomada de medidas adequadas, sendo, de rigor, o grande deflagrador de uma crise, que poderia ter sido menor se os remédios eficazes, agora tomados, tivessem-no sido mais cedo. Vale dizer, tal qual um câncer não combatido no início, a luta para extirpá-lo, quando já se desenvolveu, é, indiscutivelmente, muito mais difícil.
É o preço que o mundo está pagando pelo erro de avaliação das autoridades governamentais dos países mais desenvolvidos.
Os países de economias emergentes sofreram menos, mas sofreram.
Pode-se dividi-los em 3 categorias: os emergentes desen­volvidos, os que possuem monoeconomias e os insuficientes.
Os primeiros, de rigor, são os Brics, acompanhados da Argentina e do México — a Coreia do Sul encontra-se entre os países desenvolvidos —, que sofreram na medida de seu maior ou menor envolvimento com os países desenvolvidos.
O Brasil, por exemplo, dependia do mercado exterior em 25%, enquanto o México, em mais de 50%. À evidência, o impacto negativo no México foi superior ao do Brasil, onde os estímulos ao mercado interno compensaram em parte a perda do mercado externo devido a três fatores: falta de crédito, redução do preço das commodities, só agora em recuperação, contração do mercado exportador. Desta forma, no ano de 2009, entre as 36 maiores economias do mundo, o Brasil colocou-se, no primeiro trimestre, entre as 8 que menos sofreram, com uma queda de 1,8% em relação ao mesmo trimestre de 2008, sendo superado apenas por Indonésia, Austrália, Coreia do Sul, Polônia, Chile, Canadá e Noruega.
A recuperação, todavia, já no 2º trimestre, é evidente, em face de uma adequada política de estímulos fiscais para setores sensíveis da economia (automóveis, eletrodomésticos e outros de grande impacto no consumo) capaz de manter um nível de produção elevado. Por exemplo, venderam-se mais automóveis no ano de 2009 que em 2008, no mercado interno.
Acresce-se que o Brasil tem uma banca sólida, decorrente de dois fatores. O primeiro é ter atrasado sua entrada na euforia global da multiplicação de títulos privados e papéis financiando uma economia em evolução e sem lastro, com o que, quando estava para entrar na ciranda internacional, esta se desfez. Em segundo lugar, por ter mais da metade desses ativos financeiros aportados em títulos públicos. É comum afirmar-se, no Brasil, que a banca brasileira vale o que vale o governo.
A manutenção de juros elevados, por outro lado, não provocou a fuga de recursos que outros países emergentes conheceram, demonstrando  que a economia brasileira é mais sólida que a da maior parte dos países emergentes.
A Rússia, pela proximidade dos países desenvolvidos, sofreu ao ponto de seu PIB ter caído, no último trimestre de 2008, 23,2%, se comparado com idêntico período de 2007, e 9,5% no 1º trimestre de 2009, se comparado com o mesmo período de 2008.
A Índia recupera-se com bastante rapidez (queda de 2,8% no último trimestre e elevação de 5,8% no 1º trimestre), o mesmo ocorrendo com a China (0% no último trimestre e + 6,1% no 1º trimestre).
Talvez, o mais relevante fator, nesta recuperação dos três componentes não europeus dos Brics, decorra de seus respectivos mercados consumidores internos, ainda insuficientes, pequenos, se comparados com os dos países desenvolvidos.
Quem, num país desenvolvido, pretendia comprar um carro, ante o medo da crise, da recessão e do desemprego, poderá atrasar a compra de 2 a 3 anos. Em países cujo mercado interno é composto de cidadãos que já possuem os principais bens representativos do conforto, o campo do consumo não comporta alargamento ou substituição, e decisões dessa natureza terminam por criar um círculo vicioso: menos vendas, mais desemprego, que geram menos vendas e mais desemprego.
Já nos países emergentes, em que os mercados são insuficientes e o grau de evolução industrial, tecnológico e de serviços é grande, a perda de determinados mercados não implica redução sensível da produção de bens materiais e imateriais, pela capacidade de expansão do consumo para áreas antes fora de sua influência. Compatibilizar políticas de estímulos fiscais e creditícios auxilia a conquista de novas áreas, substitutivas, em parte, das áreas já atingidas pelo consumo.
Desta forma, Brasil, Índia e China, com mercados ainda a ser desbravados, têm compensado o mercado externo pelo alargamento do mercado interno.
China e Índia levam vantagem sobre o Brasil, em face da inexistência de direitos sociais no nível em que temos em nosso País. O dumping social que promovem torna seus produtos muito mais competitivos (serviços e bens) do que os dos países civilizados e emergentes em geral, acrescentando-se uma carga tributária pequena, se comparada à do Brasil e à dos países desenvolvidos, além de juros inferiores aos aqui praticados.
Teme-se que, em 2009, venha a ocorrer uma invasão crescente dos produtos chineses, já com melhor qualidade, no mercado dos países desenvolvidos e emergentes, o que está levando alguns a tomarem medidas de proteção aduaneira, com elevação dos direitos alfandegários  incidentes sobre as importações chinesas. Percebe-se, pois, que a perda de mercados desenvolvidos está levando a China a invadir os mercados emergentes, criando problemas de descompetitividade só compensáveis com tarifas aduaneiras ou barreiras ligadas ao controle do poder econômico (leis anti-dumping).
Os países de monoeconomia — como, por exemplo, a Venezuela, que importa 70% de seus alimentos e que prospera quando suas commodities têm cotação elevada, entrando em colapso financeiro quando o preço cai — começam a viver problemas sérios por não terem criado uma infraestrutura agrícola, industrial ou de serviços, nem aproveitado convenientemente os bons anos de alta cotação de seu monoproduto.
Quanto mais tempo levarem as commodities para recuperar seus preços internacionais, tanto mais grave será a deterioração de seus mercados e economia.
Nos países emergentes insuficientes, de mono ou polieconomia, a economia sofreu mais do que a dos países emergentes e desenvolvidos, embora sua população, acostumada a um padrão de vida inferior ao dos países civilizados, reclame menos. Estão acostumados à privação de inúmeros bens da modernidade e a crise os afeta na exata medida de sua capacidade de suportar. Padecem, todavia, tais países da perda dos mercados externos, falta de crédito e redução dos preços das commodities, quase sempre seus únicos bens de exportação.
De certa forma, os países emergentes dependem da recuperação dos países desenvolvidos para crescer, como ocorreu, nas 3 citadas categorias de países, entre 2003 a 2008. A população sofre menos que os governos, afetados em sua capacidade de manipulação das massas e às voltas com descontentamentos pontuais por salários e estímulos. Aguarda, todavia, como “boi de tranco”, que haja uma recuperação econômica mundial. A expressão “boi de tranco” vem do interior paulista, aludindo à situação daqueles animais integrantes da segunda fila, nas juntas de quatro bois que conduzem os carros das fazendas: levam o tranco do carro, por estarem atrás, mas não o conduzem, pois isso é feito pelos bois da frente. No sentido figurado, comporta-se como “boi de tranco” a empresa, o cidadão, a sociedade que nada conduzem, mas recebem a carga dos que conduzem a política do país.
Pessoalmente, acredito que Brasil, China e Índia deverão liderar a recuperação das economias emergentes, o que pode ocorrer antes da recuperação das economias desenvolvidas, prevista apenas para 2010. É que seu mercado consumidor continua alimentando, independentemente do mercado externo, a recuperação interna. Tal recuperação dependerá, todavia, da sensibilidade dos governos em reduzir a pressão fiscal, em determinar políticas adequadas de estímulo, acompanhadas de programas sociais geradores de mercado, para que pessoas fora do consumo passem a consumir produtos não colocáveis no mercado externo.
Não se trata da situação descrita pelo Barão de Munchausen — de ter evitado seu afogamento, puxando-se das águas pelos cabelos —, mas de países com grande diversidade agrícola, de bens extrativos e de indústria evoluída aproveitarem as próprias potencialidades para se autoalimentarem com as riquezas próprias, que voltarão a ser destinadas ao mercado externo, tão logo comece, de forma mais acentuada, a recuperação internacional.
O tempo dirá se tais prognósticos corresponderão à realidade dos fatos.