Edição 141
A clareza no discurso jurídico
6 de junho de 2012
José Renato Nalini Membro do Conselho Editorial
O direito é uma realidade que interfere na vida de todas as pessoas. A sociedade contemporânea impregnou-se de crescente juridicização de todos os temas. Mais do que isso, a judicialização é o fenômeno brasileiro que passou a despertar a atenção de outras esferas das ciências sociais anteriormente alheias ao espaço jurídico.
Todas as questões, sejam incluídas na concepção macro, sejam consideradas micro – ou questiúnculas – chegam à apreciação de juízes e tribunais.
A matéria prima do direito é a palavra. Enquanto outras atividades podem depender de equipamentos que a ciência e a tecnologia tornam cada dia mais aperfeiçoados, o jurídico está subordinado ao conteúdo do verbo. É imprescindível saber dominá-lo, manejá-lo, extrair dele todas as irradiações que a compreensão propiciar.
Todo o universo jurídico é composto de palavras. O ordenamento é um sistema cujo ápice é uma Constituição escrita. Serve ela de fundamento de validade para toda a estrutura normativa infraconstitucional. A proliferação de normas traduz a intenção de disciplinar todos os temas, de maneira a não deixar espaço de vácuo normativo. O Brasil é uma República prolífica em regras. Muitas as instâncias produtoras de regulação da conduta humana, além do Parlamento. Por sinal que a função encarregada de produzir direito novo é aquela mais tolhida de efetivamente exercê-la, tantas as estratégias de exclusão do fruto do processo legislativo do ordenamento vigente.[1]
Compreende-se que a urgência no enfrentamento de graves questões não se compatibilize com a complexa produção de textos normativos. O processo de elaboração de leis é sofisticado, lento, submetido a vicissitudes, que têm início no sistema bicameral. Mas isso não legitima a absorção de uma competência que é do Parlamento, a caixa de ressonância de aspirações populares, instância adequada para detectar as necessidades de regulação e traduzi-las em textos normativos destinados a vigorar por um largo lapso temporal.
Outra explicação corrente para a depauperação do Parlamento é que o sistema eleitoral converteu-se numa disputa entre setores bem compartimentados, cada qual mais interessado em favorecer interesses tópicos do que procurar o bem comum. Isso faz com que a lei seja cada vez menos a tradução do interesse coletivo, mas a satisfação de anseios bem localizados e muita vez distanciados daquele. Essa espécie de novo feudalismo vai desaguar em textos imprecisos, cuja fluidez reflete o consenso possível obtido no entrechoque de forças conflitantes. O juiz é que terá de fazer um exercício hercúleo para detectar o que significa uma lei. A ambiguidade de sua linguagem nem sempre conseguiu dizer tudo o que pretendia. Nem prima em clareza imprescindível a eliminar o mar de sargaços das dúvidas surgidas, assim que promulgado um novo texto legal.
Adicione-se a isso, a multiplicidade de fontes normativas numa República em que o Governo estende seus tentáculos para absorver todos os assuntos. Assenhoreando-se de todos os espaços, não consegue satisfazer as aspirações despertadas numa sociedade que dele tudo espera. Com o intuito de tentar responder às promessas, exterioriza-se em agências, órgãos, conselhos, colegiados e outros núcleos de poder, direto ou indireto, ávidos todos de normatizar sua atuação. A consequência é que o ordenamento não contém apenas a Constituição da República, mais as Constituições Estaduais e as Leis Orgânicas Municipais, que desempenham idêntico papel na terceira entidade federativa instituída pelo constituinte de 1988. Há leis complementares, leis ordinárias, federais, estaduais e municipais. Mais decretos, resoluções, portarias, ordens de serviço, instruções normativas, regimentos internos e toda uma exuberante coleção de atos disciplinares que inviabilizam o conhecimento integral da lei por qualquer estudioso ou especialista em direito.
Já não pode vigorar no Brasil a longeva lição romana – iuria novit curia ou o narra mihi factum, dabo tibi jus. É humanamente impossível conhecer todas as regras, identificar de imediato aquelas vigentes e as que foram revogadas, menos ainda o seu alcance e extensão.
Para permitir desenvoltura nesse ambiente de inflação normativa, adota-se como guia a nova hermenêutica. Poucos já se compenetraram de que o advento da Constituição de 1988, que logo mais vai completar um quarto de século, representou uma verdadeira revolução para o direito brasileiro. É um pacto que adotou o modelo de normas-regra conjugadas com as normas-princípio. Disso decorre que a interpretação passou a ser muito mais importante do que a letra da norma.
Mesmo os Romanos sabiam o quão relativo era o in claris cessat interpretatio. Num idioma como o português, a polissemia é apenas um dos fatores aptos a suscitar dificuldades para o intérprete. Todo e qualquer texto é suscetível de gerar várias leituras. Todavia, quando se adota um padrão principiológico, o sistema passa a ostentar a característica de campo minado para a utopia da segurança jurídica. O clamor de certos setores por segurança jurídica sugere que ela se identificaria com a previsibilidade das decisões. Todavia, o cipoal normativo disponível, sua fluidez, a plasticidade do terreno principiológico, tudo a par com um universo em que o pluralismo é valor explicitado no texto fundamental, converte a segurança jurídica numa ficção cada vez mais distanciada do possível.
A leitura de um determinado texto pode resultar em tantas versões quantos forem seus leitores. Isso não é novidade. Um dos temas centrais da epistemologia de Heidegger é o conhecido círculo hermenêutico. Nome com que se batizou uma concepção original sobre a interpretação de textos: chega-se ao texto com um sentido do todo, mas isso deve ser examinado à luz de leituras específicas. Existe uma relação circular entre compreender o todo e compreender partes específicas, porque um é o propósito do outro[2].
Heidegger, com isso, formula um princípio epistemológico geral: toda compreensão humana é interpretação, e toda interpretação envolve tais círculos hermenêuticos.
A circularidade não representa manter-se preso aos preconceitos ou pré-compreensões. Na verdade, pressupõe análise textual e contextual, exame acurado das consequências da interpretação no mundo concreto, no qual incidirá a norma.
Todavia, se não houver profundidade nessa análise, a ser feita por quem dispõe de suficiente erudição para penetrar na integralidade dos aspectos abrangidos pelo texto, a margem potencial de erronia se dilatará. O intérprete não pode permanecer na superfície. Ele tem a obrigação de perscrutar todas as hipóteses de leitura. Precisa ter ao menos a responsabilidade de tentar apreender a variedade de compreensões derivadas da norma.
Dentre todos os intérpretes – e numa concepção de sociedade aberta de intérpretes da Constituição, todos, sem exclusão de qualquer sujeito, são chamados a conhecer a vontade do constituinte – o mais comprometido com as consequências da interpretação é o juiz. Este foi chamado a concretizar as promessas do constituinte. Dele dependerá a edificação da sociedade justa, fraterna e solidária com que se acenou ao término do autoritarismo brasileiro.
O juiz brasileiro precisa se compenetrar de que foi absorvido por sua missão histórica. Nada obstante, fruto de uma formação jurídica anacrônica e compartimentada, tem dificuldades em vislumbrar outra realidade que não o direito. Ele enfrenta a neurose gadameriana:
Estar situado dentro de tradições significa de fato estar submetido a preconceitos e limitado na própria liberdade? Não seria, antes, que toda existência humana, até mesmo a mais livre, está limitada e classificada de muitas maneiras? Se for assim, a ideia de uma razão absoluta não é uma possibilidade para a humanidade histórica[3].
O juiz brasileiro tem de ser humilde para reconhecer que, ao apreciar qualquer demanda, está sob o influxo de suas opiniões, formação filosófica, experiência de vida, idiossincrasias e mesmo impregnado de preconceitos. O verbete preconceito tende a causar impacto. Ninguém se considera preconceituoso. Mas é forçoso reconhecer, preconceitos não são necessariamente injustificados ou errôneos, de modo que inevitavelmente distorçam a verdade. Na verdade, a historicidade de nossa existência implica que os preconceitos, no sentido literal da palavra (pré-juízos), constituem a direcionalidade de toda nossa habilidade para experimentar. Preconceitos são vieses de nossa abertura para o mundo. São simplesmente condições por meio das quais experimentamos algo[4].
Persuadidos de que podemos ser levados por preconceitos, temos – principalmente os juízes – de nos convencer também de que tudo, incluindo nós mesmos, nossa realidade e o mundo natural, é apreendido na interpretação. “O mundo inteiro é um texto, ou melhor, uma biblioteca de textos”[5]. Tanto que Derrida, ao reforçar o objetivo universal da interpretação, chegou a proclamar: “Nada existe fora do texto”[6].
Se nada existe fora do texto e o mundo inteiro é uma biblioteca de textos, o profissional do direito – notadamente o juiz – deve ao destinatário de seus préstimos o dever de clareza. Pronunciar-se com a maior objetividade. Com singeleza, pois ser complicado é fácil. O difícil é ser simples.
“A clareza é a boa fé dos filósofos”, dizia Vauvenargues. Verbete que adquire instigante simbologia para a Magistratura. Conforme adverti em obra recente,
A limpidez que se pretende não é apenas a do caráter do juiz, de quem depende a remoção de parte das iniquidades presentes no mundo. Mas é também a clareza de sua linguagem, que, sem deixar de ser técnica, deverá ser compreensível. A ponto de o destinatário entender o que aconteceu com a pretensão levada por seu advogado à apreciação judicial[7].
A clareza está implícita no postulado da fundamentação. Fundamentar é permitir ao destinatário e a toda a comunidade, percorrer, juntamente com o julgador, a trajetória lógica de seu raciocínio. Compreender o que o levou a decidir daquela maneira, quando outras estavam à espreita e poderiam ter sido escolhidas.
A Magistratura antiga, encarada como exercício aristocrático da dicção do direito por uma elite distanciada do vulgo, alimentava a pretensão de se exprimir por um idioma de erudição inatingível pelo jejuno. A Magistratura contemporânea, sensibilizada pelo clamor de uma população sedenta de justiça e extenuada de tanto ver triunfar a iniquidade, cultiva o ideal da objetividade.
Clareza, singeleza, objetividade são posturas dignificantes de um Judiciário cobrado a ser eficiente. Já não se admite a errância intelectual das divagações teóricas, que podem acabar por prodigalizar o contrassenso. As metamorfoses reclamadas pela marcha invencível da história e das ideias propõem novo paradigma para a Magistratura.
O juiz brasileiro sensibilizado pelas urgências de seu próximo sabe que no mundo assolado por tantos desafios, o caminho íngreme e áspero da Justiça é o mais habilitado a realizar o sonho da esperança. Aquele no qual se pode exprimir, como dizia Kant, “a honra de ser homem”.
[1] O controle de constitucionalidade faz com que inúmeras leis sejam fulminadas em ações diretas, sob o império da competência exclusiva conferida ao Executivo para iniciar o processo legislativo. Aquilo que deveria ser a exceção, tornou-se regra. O Executivo, que deveria se curvar à lei, produto do Parlamento, é hoje o detentor de uma vasta atribuição de iniciar o processo legislativo, com alteração profunda da concepção original da separação de funções. Afinal, para que serve o Legislativo?
[2] JOHN GRECO, O que é epistemologia, in Compêndio de Epistemologia, JOHN GRECO/ERNEST SOSA, Organização, Edições Loyola, São Paulo, 2008, p. 60.
[3] GADAMER, Truth and Method, trad. Joel Weinsheimer, New York Crossroad, 1991, p. 277.
[4] GADAMER, Philosophical Hermeneutics, trad. David E.Linge, Berkeley: University of Califórnia Press, 1976, p. 9.
[5] MEROLD WESTPHAL, A Hermenêutica enquanto Epistemologia, in O que é Epistemologia?, cit., idem, p. 671.
[6] JACQUES DERRIDA, Of Grammatology, trad. Gayatri Chakravorty Spivak, Baltimore, Johns Hopkins Press, 1976, p. 158.
[7] JOSÉ RENATO NALINI, Ética para um Judiciário Transformador, São Paulo, Editora Revista dos Tribunais, 2012, p. 63.