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80 anos da OAB

23 de outubro de 2012

Presidente do Conselho Editorial e Consultor da Presidência da CNC

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Desde os primórdios da nacionalidade existe uma estreita relação entre bacharel e o estado de Direito. Da mesma forma, entre o profissional do Direito e o Poder Legislativo, a instituição que tem por objetivo precípuo a elaboração do Direito positivo, uma vez que o Estado Constitucional nasceu dotado de uma visão específica sobre a formação da elite nacional. Tal perspectiva está perfeitamente consubstanciada na fundação dos Cursos Jurídicos no Brasil, aprovada pelo Poder Legislativo, Lei de 11 de agosto de 1827.

Por mais de trezentos anos, a Colônia havia pautado sua regulamentação legal pelo Direito português, através das
codificações Alfonsinas, Manuelinas e Felipinas. Paralelamente, os advogados que cuidavam da administração da Lei no Brasil eram formados pela Universidade de Coimbra, onde muitos brasileiros frequentaram as classes universitárias. Entre 1772, quando o Marquês de Pombal realizou sua importante reforma no ensino português, e 1822, nada menos de 816 brasileiros formaram-se em Coimbra, sendo 560 em Direito. Entre eles muitas figuras de relevo em nossa História, começando pelo poeta Gregório de Matos Guerra, o satírico Gregório de Matos, o primeiro brasileiro a bacharelar-se em Coimbra, duzentos anos antes de nossa independência, após ser submetido exaustivamente ao Processo dos Bacharéis. A frequência maciça dos estudantes brasileiros à Universidade de Coimbra é induvidosa, como ficou provado no momento em que Sebastião José de Carvalho e Mello iniciou a reforma universitária, quando apelou para um brasileiro: Francisco de Lemos de Faria Pereira Coutinho, o qual, por sua vez, convidou um outro brasileiro, da minha região, nascido em Macapá, de nome Valente do Couto, a quem incumbiu da reforma no ensino das matemáticas.

Quem pesquisa esse ângulo da vida luso-brasileira, verifica com muita facilidade que naquela oportunidade os brasileiros constituíam a parcela mais atuante da vida intelectual em Portugal, de tal forma que muitos deles, terminando o respectivo curso, eram proibidos de regressar ao Brasil, sob a alegação de “que eram necessários na península pelo muito que sabiam e pelo muito que poderiam servir na metrópole”.

Muitos eram de idéias avançadas e alguns foram perseguidos pelo Tribunal do Santo Ofício. Quando pesquisei a vida dos ancestrais de Afonso Arinos de Melo Franco – para dirigir-lhe a saudação pela entrega da Medalha Teixeira de Freitas, no IAB – encontrei o irmão do seu tetravô paterno, um mineiro de Paracatu – Francisco de Melo Franco, introdutor da pediatria em Portugal e no Brasil – às voltas com um processo instaurado pelo Santo Ofício, mal tinha iniciado o seu curso médico, em 1777.

Vale colocar em relevo – pelas voltas que o Destino dá – que já ao término dos seus estudos (conseguira permissão real para tanto) tirou Francisco de Melo Franco violenta desforra da velha Universidade de Coimbra.

Foi quando, sob a imposição de D. Maria, tentou-se destruir a reforma nos meios universitários, apavorados que se encontravam os círculos profissionais e governamentais – como costuma ocorrer em situações que tais, em todas as épocas – Francisco de Mello Franco, em rara ousadia, lançou sobre o austero templo da sabedoria lusitana a sua lança candente: deu a lume o panfleto famoso, consubstanciado no poema satírico “O Reino da Estupidez”, e para o qual recebeu a colaboração, segundo uns, do então calouro e aluno do curso jurídico: José Bonifácio de Andrada e Silva, mais tarde o Patriarca da Independência.

Criação das Universidades

A inteligência brasileira – e seria injusto negá-lo – só teve abertas as suas perspectivas com o desembarque de D. João, Príncipe Regente, quando criou ele a vasta série de atos que iniciaram a derrubada do sistema colonialista e, com isso, a ampliação dos diplomados em Coimbra.

É que, ao contrário da América Espanhola, nunca havia o governo português permitido a instalação no Brasil de instituições de ensino superior. Da mesma forma, os que se batiam por nossa emancipação política defendiam ardorosamente a necessidade de aqui criar-se uma Univer­sidade. Com o movimento pela independência, aumentaram essas pressões. José Feliciano Fernandes Pinheiro, o futuro Visconde de São Leopoldo, regressando ao Brasil para assumir sua Cadeira na Constituinte de 1823, recebeu apelo dos estudantes brasileiros em Coimbra para que atuasse em prol da criação de um curso jurídico em nosso país, recém independente.

Tal preocupação deu origem a projeto de lei apresentado por ele em julho de 1823, propondo a criação de um curso jurídico em nosso país, recém independente, propondo a criação de uma Universidade em São Paulo. Argumentava Fernandes Pinheiro que muitos dos formados em Coimbra não se haviam decidido voltar para o Brasil, onde sua contribuição era altamente necessária para o país nascente, em virtude da inexistência de instituições de ensino superior em nossa terra.

Feita a Independência – para a qual tanto concorreram – os diplomados em Coimbra puseram à prova os seus conhecimentos, redigindo os textos legais necessários, notadamente a Constituição de 1824.

Atualizados com as novidades democráticas e liberais que surgiam mundo a fora, os juristas verificaram que as necessidades do País não se detinham apenas na elaboração de textos legais, uma vez que a formação de suas elites, tanto em qualidade e quantidade, fazia-se imperiosa para a continuidade da Pátria.

Assim é que em nossa primeira Assembléia Constituinte, a maioria dos parlamentares era familiarizada com a literatura clássica, mas eram poucos os que tinham conhecimento das instituições políticas dos países que estavam na vanguarda do movimento liberal do início do século XIX. Uma das razões para isto, além da censura régia, havia sido o pouco conhecimento de idiomas estrangeiros. Vale lembrar, neste contexto, a figura de
Tiradentes, à procura de alguém que, em Ouro Preto, lhe pudesse ler a Constituição americana no original.

Apesar desta desvinculação cultural com as fontes do pensamento liberal, a ordem constitucional que se pretendia aqui estabelecer era liberal. Todavia, o era mais no sentido de opor-se ao absolutismo do que seguindo um programa específico de organização do Estado e da sociedade.

Entre as teses liberais que influenciaram decididamente nossos legisladores estavam a de que o homem realiza a sua felicidade terrena através do exercício político da liberdade. Trata-se do preceito, entronizado na Constituição americana, dos direitos fundamentais do homem à vida, à liberdade e à “procura da felicidade”.

A doutrina liberal havia sofrido a perseguição do poder político português, tanto dentro como fora da universidade.

A já mencionada reforma pombalina de 1772 havia posicionado a universidade no sentido da formação de novas elites modernizantes, mas sua ênfase era técnica e instrumental e não política e filosófica. As obras de John Locke, por exemplo, foram proibidas em Coimbra, embora conste que o próprio Pombal tinha escritos do pensador inglês entre os livros de sua biblioteca.

Outro cânone liberal, a noção da igualdade natural, embora estabelecido em textos legais, estava todavia em conflitos com nossa realidade de país escravocrata. Esta situação criava igualmente obstáculos à aceitação da idéia, tão cara aos liberais clássicos, da necessária inter-relação, entre a liberdade e a propriedade.

No Brasil da época da independência, um terço da população era composta de escravos, ou seja, pessoas que eram consideradas propriedades de outrem e para quem havia uma contradição evidente entre a liberdade e a propriedade.

A relação entre o Estado constitucional e a sociedade na qual se pretendia implantá-lo, entre o País legal e o País real, foi uma das principais tônicas do debate que se travou na Constituinte de 1823 sobre a criação dos cursos jurídicos. Para o Visconde de São Leopoldo, a universidade era necessária devido ao fato da instrução ser a “sólida base de um governo constitucional”. O Visconde de Cairú, igualmente deputado constituinte, argumentava que, sendo a defesa da nova Nação sua primeira prioridade, imediatamente depois teria de vir “a instrução superior do Império”. O argumento da maior parte dos liberais da época era ser impossível a instauração do Estado constitucional sem uma população culta. Ao mesmo tempo, outra corrente, conservadora, via no fortalecimento do Estado o pressuposto para o progresso material e social.

Neste contexto, a fundação dos cursos jurídicos é um primeiro passo para a formação da própria nacionalidade. Serviram eles uma dupla e importantíssima função para a construção da Nação brasileira. Eram ao mesmo tempo os guardiães do pensamento  liberal e instituições formadoras da burocracia estatal,  operacionalizando assim o projeto de Estado nacional de nossa elite política.

A Assembléia Constituinte de 1823 não pode efetivar a criação da Universidade, atropelada pela reação autocrática do Imperador. A tentativa liberal, todavia, como sói acontecer entre nós, deixou uma semente que germinaria mais tarde, com nossa primeira Legislatura ordinária, que tomou posse em 1826.

No novo Parlamento era predominante a presença de bacharéis em Direito: 44 entre os 106 Deputados e 25 entre os 50 Senadores eram advogados, o que permitiu, de imediato, fossem apresentados projetos no sentido de serem criados cursos jurídicos em nosso País.

Embora a idéia da necessidade de implantação do ensino superior fosse incontroversa, travaram-se acesos debates acerca de uma série de pontos, entre os quais a localização da escola e o curriculum a ser adotado. Quanto à localização, Francisco Gê de Acaiaba Montezuma defendia ardorosamente a Bahia como sede da futura Universidade.

Outros, como Campos Vergueiro, argumentavam da importância de mantê-la longe da Corte, já que a presença de estudantes poderia significar  pressões sobre o “bom andamento dos negócios de Estado”. Encontramos aqui ecos de que ocorreria mais tarde nos debates sobre a criação da Universidade de Brasília. A decisão final previa dois centros de estudos universitários, uma Faculdade em São Paulo e outra em Olinda.

Na importante questão do conteúdo a ser ensinado, o Visconde de Cairú defendia a posição de que a Assembléia deveria manter sob seu controle o curriculum, já que, segundo ele, idéias como as de Rousseau não deveriam corromper a juventude acadêmica. De qualquer forma, a lei de 11 de agosto de 1.827 previa que os professores teriam autonomia para escolher o material didático, desde que esse não opusesse a filosofia política aceita pelo Império.

A mesma ingerência do poder de Estado sobre a atividade acadêmica se pode identificar no cuidado como são definidos, na lei, tanto os cursos a serem ministrados nas duas faculdades, quanto à forma de sua organização administrativa. Descia a lei ao pormenor da distribuição das cadeiras por semestre, e dos títulos das disciplinas. Tínhamos no Brasil, então como agora, a busca do controle do governo sobre os pormenores da vida em sociedade.

Dentro desse quadro, inauguram-se os cursos jurídicos no Brasil. Em São Paulo a 1º de março de 1828, com uma aula intitulada “O Direito Divino do Povo” e proferida pelo Dr. José Maria de Avelar Brotero. Instalava-se a Faculdade no prédio da Província Franciscana da Imaculada Conceição.

Em Olinda, noutro convento, o Mosteiro de São Bento, abre-se a atividade acadêmica a 15 de maio do mesmo ano, com aula do Dr. Lourenço José Ribeiro.

Terminava assim a etapa da criação dos cursos jurídicos, mas a vinculação da profissão das leis às causas democráticas havia de permanecer. Não se tratará aqui, por falta de espaço, da longa história das lutas desta escola em prol das mais importantes bandeiras da Oposição ao arbítrio dos governantes. Esta narrativa se encontra cheia de momentos heróicos, da luta pela abolição da escravatura, pela República, pela democracia durante o estado Novo, contra o autoritarismo após 1964.

Faculdades e a Ordem dos Advogados do Brasil lideraram a defesa do Estado de Direito, apoiando a feitura de leis que não ferissem a dignidade humana. Estiveram sempre os bacharéis nas barricadas de defesa da democracia e essa tem sido uma luta permanente, profissional e política, dando prova de que a Ordem dos Advogados do Brasil vem sendo altaneira na sua missão de vincular os anseios da classe aos reclamos democráticos da sociedade civil, porque não se tem batido apenas nas pugnas que são possíveis – mas, e principalmente – por não ter nunca cedido no sustentar os princípios que lhe garantem a posição de estuário de todos os que lutam em favor do fortalecimento das instituições democráticas e a de vanguardeira na devolução do poder político à Nação.

É evidente que a OAB vem indicando que o País ainda mostra as marcas de grave deformação jurídica, em que não há regras estáveis, com a figura do Executivo cada vez mais forte, destruindo a harmonia e independência dos poderes, impondo a quebra da autenticidade da representação popular e dificultando a alternância do poder, características basilares do regime democrático.

Impõe-se o respeito à volta da dignidade do Parlamento, não para o uso abusivo por parte de quem o desvirtue, mas para sua real independência, uma vez que, sem a sua existência, ficará submetido à volúpia do Executivo.

A OAB tem defendido um Judiciário livre, não só para julgar o comportamento humano, os atos do Poder Legislativo e do Poder Executivo, mas, também, sua completa autonomia, compreendida esta na valorização dos seus quadros e na sua vida financeira, sem a intromissão que é feita pelo Executivo.

Claro que tais ânsias são entendidas sem manifestações de força – ou sem revanchismo – uma vez que constituem produto do pensamento obscurantista que outra coisa não visa senão o cerceamento da ação soberana do povo, única fonte de poder e que, sem o seu consentimento, jamais será legítimo.

É preciso lembrar, e aqui invoco a lição de Maurice Duverger (Ciência Política – Teoria e Método, p. 15, Editora Zahar, 1962):

O poder legítimo não tem necessidade da força para se fazer obedecer… Se a legitimidade é sólida, o poder pode ser suave e moderado.

Se não há necessidade de força, como atingir a legitimidade do poder e, e, decorrência, o indispensável reencontro conciliatório de governantes e governados?

Com uma simples reforma política?

Não pode a Nação ficar de joelhos… É imperioso que se levante… ponha-se de pé, uma vez que de pé terá mais condições de receber o abraço de legitimidade do povo brasileiro.

Por essa razão, quando o Brasil foi mobilizado para a tarefa de elaborar uma nova Carta Magna e reordenar o país após a ruptura da ordem constitucional, não se pôde ofuscar de que a independência política da Nação Brasileira complementou-se com a instalação dos Cursos Jurídicos em São Paulo e Olinda, porque neles os filhos dos grandes proprietários rurais, ainda os senhores do “baraço e cutelo” das decisões políticas, iriam fazer a sua formação e, consequentemente, preparando-se para o comando da nação.

Decorridos, pois, 183 anos de sua existência os Bachareis em Direito continuam defendendo a Ordem Constitucional, através do seu órgão de classe – a OAB – já que a análise dos atos dos governantes pelo povo, seja para aplaudi-los ou repudiá-los, representa verdadeiro estado democrático. E deste, sempre fiel às suas tradições, o verdadeiro Advogado  não se afasta.

Prova maior dessa assertiva é a consagração que registra o art. 133 da Constituição de 1988:

“O advogado é indispensável à administração da justiça, sendo inviolável por seus atos e manifestações no exercício da profissão, nos limites da lei”.