“A vontade se impõe pelo voto_Entrevista com Roberto Wider

31 de agosto de 2006

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Não seria o caso, ante o clamor público pelo restabelecimento da moralidade na política, que a Súmula nº 13 do TSE fosse revogada e substituída por outra que se enquadre à atual realidade?

Como Juiz de Tribunal Eleitoral não posso e não devo me opor a uma Súmula do TSE. Nós temos relação hierárquica que nos obriga a cumprir e devemos cumprir as decisões do TSE. No entanto, considero que essa Súmula nº 13, que já tem dez anos de vigência (e desde então muitos fatos novos ocorreram na vida política do país), serviu para a realidade política daquele momento.

Então, para que não se criasse uma situação de que, a meio do caminho, alguém fosse processado em função de uma denúncia e já tivesse cassado seu direito político, é que se editou a Súmula nº 13 do TSE, que estabelece que só depois da decisão condenatória ter transitado em julgado é que ocorrerão os efeitos para o fim de obstar registro ou diplomação.

O tempo passou, as coisas mudaram, há mais conscientização. Nós precisamos e devemos dar o exemplo aos eleitores, e mostrar-lhes que eles têm uma força muito grande nas mãos e que não se apercebem disso. É preciso que eles sejam bem informados; só assim poderão mudar esse estado de coisas.

Nós não estamos tratando aqui de crimes e de ações penais pura e simplesmente, mas de uma forma de comportamento questionável para o homem público. Um comportamento que traz indícios veementes de uma conduta indevida, traduzindo uma hipótese diferente. Eu disse, em outra oportunidade, que vida pregressa (que é o que trata o parágrafo nono do artigo quatorze da CF) não transita em julgado, não precisa de uma ação penal: vida pregressa é aquilo que nós conhecemos em relação aos antecedentes da pessoa.

É o que se fala sempre: com qualquer funcionário público – por exemplo, um juiz quando presta um concurso, é feito desabonador às vezes até uma negativação num cartório, é suficiente para impossibilitar a sua inscrição no concurso para juiz. Isso é verdade, isso acontece. É então, dentro desta linha, que os chamados neoconstitucionalistas dão realmente uma ênfase muito grande à interpretação conforme as diretrizes da Constituição. E aí me parece que hoje poder-se-ia avançar em relação à Súmula nº 13, ultrapassar aquele óbice do trânsito em julgado, para poder indeferir registros de candidaturas ou impedir a diplomação de candidatos eleitos.

Nós não precisamos nem de processo; temos fatos públicos e notórios que são verificados, que estão sendo apurados nos tribunais de ética do Legislativo,  concluindo que parlamentares cometeram ilicitudes e há provas em relação a isso. Então nós temos aí elementos suficientes para, sem o julgamento a priori, podermos aplicar esse parágrafo nono, e evitar naturalmente que esses candidatos sejam registrados.

O TSE diz, em sua campanha educativa, que os eleitores vão contratar 1.627 servidores públicos nas próximas eleições. Por que a Justiça Eleitoral não se vale do parágrafo quarto do artigo 37 da CF para impedir o registro de candidatos ímprobos?

Na realidade, eu achei a campanha do TSE muito inteligente, muito bem feita. O que é que ela demonstra? Ela demonstra que nós outros, na verdade, somos servidores públicos. Então, no momento em que a Constituição afirma que todo poder emana do povo, delega aos deputados e, de uma maneira geral, aos dirigentes públicos, poderes para que em seu nome façam leis e para que em seu nome julguem os outros cidadãos, e não para agir em benefício próprio.

E em sendo servidores públicos, em verdade, poder-se-ia falar em aplicação desses princípios éticos, todos no sentido de que temos que guardar uma conduta conforme a delegação recebida. No entanto, essa indicação do parágrafo quarto do artigo trinta e sete da Constituição da República sofre aí uma interpretação consentânea com a letra da lei, quando diz “na forma da lei”, e a lei estabelece que toda condenação só produzirá os efeitos depois do trânsito em julgado. O processo de admissão de servidor público é diferente do legislativo. O processo legislativo tem normas próprias. E então, se nós seguirmos a linha de prevalência dos princípios maiores da Constituição, poderíamos entender que aquela norma está derrogada.

Nós não podemos nos pautar tão somente na letra fria da lei. A Constituição sinaliza princípios a serem observados e assim devemos fazê-lo. Ela sinaliza quais são as normas gerais, ela dá o balizamento do comportamento social ético. Para os casos específicos, são as leis próprias que estabelecem. Nós temos uma interpretação conforme a letra da lei e temos uma interpretação conforme os princípios; o que os neoconstitucionalistas querem é fazer prevalecer os princípios. E eu não afasto a razão de quem pensa assim, porque eu acho que tem um sentido muito amplo, mas aí nós estamos avançando muito em relação ao momento presente. Nós temos destes instrumentos em número suficiente para, bastando verificar que aquele candidato a determinado cargo não ostenta antecedentes bons, não tem uma vida pregressa boa, adequada para aquilo a que ele se propõe, possuirmos condições, isso ao meu sentir, para criar, para não deixar que ele prossiga no seu caminho de candidato.

“LAMENTAVELMENTE, TUDO QUE TRATA DE DINHEIRO PÚBLICO É UM ASSUNTO MUITO DELICADO, QUE TEM QUE SER LEVADO COM MUITO CUIDADO. MAS É PREFERÍVEL A PROIBIÇÃO DO QUE QUALQUER FORMA DE FINANCIAMENTO ÀS CAMPANHAS ELEITORAIS, SE NÃO PELO PRÓPRIO PODER PÚBLICO.”

Existe algum instrumento legal que proíba que entidades da sociedade civil organizada (OAB, ABI, Transparência Brasil, Instituto Ethos, etc.) possam lançar uma campanha esclarecedora, mostrando foto e nomes de parlamentares envolvidos em corrupção, e solicitando que o eleitor não vote neles?

Nós temos que separar o que é campanha eleitoral, o que é campanha política, do que é o atuar da sociedade civil; da maneira como a pergunta está colocada, eu não vejo óbice. Eu entendo que eles tenham o poder e o dever de fazer isso. Nós não vamos criar um cerceamento à liberdade de expressão, que é de todo odioso.  Aliás, a mídia já está fazendo isso. A gente abre um jornal, uma revista, e estão lá os nomes de todos os deputados envolvidos nesses escândalos. Só não existe um apelo específico para que não se vote neles, porque isso não faz parte da atividade jornalística, mas pode, dentro de um sentido amplo, ser feito pela sociedade civil organizada. Eu não vejo óbice a isso. Acho que tudo que leva a um bom esclarecimento da população, como um todo, é importante que seja feito, porque só assim a gente pode avançar.

A legislação eleitoral para as próximas eleições, sem dúvida, contempla alguns avanços, como o da preocupação com os gastos em campanha e normas rígidas de prestação de contas. Os números apresentados pelos partidos e candidatos, no entanto, cresceram absurdamente. A que o senhor atribui isso?

É o início de um processo de moralização, justamente através do controle mais efetivo dos gastos. Mas isso tem um fator, de um lado positivo, e, de outro, negativo. O lado negativo é a demonstração de um gasto milionário que não se explica: não é razoável que, para que o candidato consiga ser um deputado estadual, um deputado federal, enfim, qualquer uma dessas classes  de servidor público, necessite gastar tanto dinheiro. E, por outro lado, demonstra o seguinte: o medo que têm, e a forma como encaram o famoso caixa dois.

A elevação das previsões de gastos é uma maneira de se defenderem contra a utilização do caixa dois. Ela foi inflacionada para poder garantir: se o candidato, por acaso, tiver muitas doações é porque está muito bem nas pesquisas, etc., vai poder dispor de um numerário efetivo.

Nas eleições anteriores esses gastos eram escondidos, eram camuflados; era apresentado à Justiça Eleitoral um valor mínimo e, por fora, as despesas eram realizadas e praticadas através do famoso caixa dois (se fosse só caixa dois, mas eu acho que é até mais do que isso). Então isso está caminhando para uma transparência.

Se um candidato gasta oitenta milhões é um absurdo, concordo. Mas onde é que está o ingresso desse numerário? Agora o ingresso não pode mais ser em dinheiro vivo, tem que ser através de depósitos em contas identificadas, com CNPJ da empresa doadora; enfim, os métodos para essa transparência estão ocorrendo. Isso tem mais efeito positivo de transparência do que o absurdo dos valores declarados.

Qual a sua opinião sobre a questão do financiamento público de campanhas eleitorais?

A questão do financiamento público das campanhas eleitorais é tentativa que nós não fizemos até hoje. Não temos ainda a experiência que deveríamos ter. Lamentavelmente, tudo que trata de dinheiro público é um assunto muito delicado, que tem que ser levado com muito cuidado. Mas é preferível a proibição do que qualquer forma de financiamento às campanhas eleitorais, pelo próprio poder público. Neste ficam eliminadas as vantagens oferecidas para quem dá mais, quem oferece ajuda, etc., que obrigam o candidato a se vincular aos grupos de interesses de seus financiadores, àquelas doações. Isso acaba então se estabelece um valor dentro de um orçamento de cada partido, em função da sua representatividade, para fazer sua propaganda, e isso é feito por financiamento público. Espero que não se descubram aí formas de burlar isso, mas eu pessoalmente sou favorável a que se promova essa experiência inédita na vida pública brasileira. Sou plenamente favorável a isso.

Qual a sua opinião sobre a aplicação da cláusula de barreira no próximo pleito eleitoral?

Essa questão da cláusula de barreira acho muito útil. Li recentemente que na Alemanha, por exemplo, existem quarenta partidos. A França também tem um número muito grande de partidos. Nos Estados Unidos, embora não apareçam, são vários partidos.

É do direito da cidadania, da representação dos cidadãos, poder se reunir e resolver criar um partido. Não é esse o problema. O problema é a utilização desse sistema, que deveria ser uma atividade de cidadania, para criar partidos, mesmo que pequenos, com o intuito de fazer deles um balcão de ofertas e contra-ofertas, um balcão de negócios, para poder ter espaço na televisão, para poder ter algum dinheiro de fundo partidário, para poder fazer uma troca de partidos.

Eu, por exemplo, dentro dessa linha, sou inteiramente contra coligação nas eleições proporcionais; isso é um malefício que ocorre muito. Faz-se uma coligação: o eleitor está votando em um candidato, pensando que o está ajudando a se eleger. No entanto, o voto vai repercutir e eleger um outro qualquer.  Agora, vamos imaginar um pequeno partido coligado com outros partidos. Como é que seria, em termos, na realidade, a legitimidade da representação desses eleitos? Eu não vejo qual. Então, sobre esse aspecto, não somente a atuação legiferante, mas a atuação do poder judicante da Justiça Eleitoral, é que tem que inibir isso.

O princípio que deve prevalecer é o da fidelidade partidária: com a cobrança efetiva da fidelidade partidária, esses aspectos começariam a desaparecer. Nos países mais desenvolvidos nessa área, por exemplo, nos Estados Unidos, é inadmissível a idéia de que alguém seja eleito pelo partido A e transite para o partido B, C ou D durante aquele mandato. Ele está traindo exatamente a vontade daqueles que deram seu voto e o elegeram para o cargo. Assim, eu acho que a fidelidade partidária seria um instrumento para evitar os malefícios decorrentes desses chamados partidos de aluguel.

O foro privilegiado não é um instrumento de incentivos para que os que estejam envolvidos em corrupção venham a se candidatar e possam “vestir essa armadura”?

Tenho para mim que, historicamente, ele foi criado visando a dar mais garantias e mais independência para aqueles que foram designados para servir ao povo.

Representantes do povo devem ter imunidade para em nome do povo falarem, e não serem de qualquer forma perseguidos ou limitados. A idéia mais ampla é essa: a garantia de nossos representantes de defender interesses contrários aos grandes empresários ou ao partido dominante, ou de defender o direito das minorias, e de poder fazê-lo sem que nada possa prejudicá-los ao agir assim.

Na realidade, no entanto, o foro privilegiado, lamentavelmente, no sistema brasileiro, se transformou numa forma de entocar aqueles que cometem delitos, atos ilícitos e atos de toda sorte desviantes da sua função, criando verdadeiras armaduras para eles poderem ficar escondidinhos e não serem atingidos por aquilo que fazem. É um absurdo, vimos aqui um quadro público e notório: deputados que foram indiciados na comissão de ética do Congresso e rapidamente renunciaram a seus mandatos, para poderem voltar justamente, para garantirem privilégios e não serem processados pela Justiça comum.

Nós tivemos casos de membros do Poder Executivo que saíram e buscaram, através dessa norma maléfica, uma forma de se protegerem. E não é esse o objetivo do instituto da imunidade; não foi para isso que ele foi criado. No final do governo Fernando Henrique, a Lei 10.628, se não me falha o número, levou todas as autoridades a terem foro privilegiado, mesmo depois de terem deixado o cargo. Foi uma forma de fechar a porta para a atuação do Ministério Público, em primeiro lugar, e mais adiante também do Poder Judiciário, em relação àquilo que fosse apurado de negativo.

“NA REALIDADE, NO ENTANTO, O FORO PRIVILEGIADO, LAMENTAVELMENTE, NO SISTEMA BRASILEIRO, SE TRANSFORMOU NUMA FORMA DE ENTOCAR AQUELES QUE COMETEM DELITOS, ATOS ILÍCITOS E ATOS DE TODA SORTE DESVIANTES DA SUA FUNÇÃO.”

Recentemente, o Supremo Tribunal Federal derrubou essa lei e declarou-a inconstitucional, felizmente. Mas não há como defender esse instituto do foro privilegiado, da imunidade parlamentar, se não for para garantir a esses homens públicos o direito de utilizá-lo em função do bem público ou de minorias. Para esse efeito a imunidade é válida; para os demais, absolutamente não o é.

A reeleição também é um ponto que não é uma novidade só nossa. Nos Estados Unidos ela já existe há muitos anos, mas aqui demonstrou que tem mais aspectos negativos do que positivos, porque o governante passa o último ano de seu governo atuando somente com a preocupação de ser reeleito. Em função da reeleição, faz uma série de acordos espúrios e abre mão de princípios (o que não poderia fazer de forma nenhuma) para governar; enfim, todos os males se criam. Há uma confusão muito grande entre a pessoa do governante e a pessoa do candidato, e isso é explorado sem nenhum critério, sem nenhum tipo de preocupação. É dramático.

Como o senhor vê a descrença dos jovens na política?

Muitos jovens ainda procuram os cartórios para retirar o título, a fim de fazer parte do processo eleitoral.

Mas muitos já se encontram desiludidos e mostram-se alheios ao processo eleitoral.

Muitos até buscam na anulação do voto a sua opção de participação.

O que mais impera nessa frustração é a descrença em mudanças possíveis no quadro do cenário político, permeado atualmente de escândalos.

Queixam-se esses jovens de que educação, segurança e saúde são áreas que encontram-se deficitárias, por abandono dos dirigentes (políticos).

A atuação dos jovens no processo eleitoral definirá certamente o futuro político do país.

Esperamos que os que vão tirar o título, para participar com o voto válido, contaminem com seu otimismo e esperança aqueles que se afastaram do destino o País, por culpa de condutas errôneas de políticos e partidos.

Não podem eles (não podemos nós) esquecer que é através da participação efetiva dos jovens hoje que poderemos coibir amanhã o espaço para a corrupção. Cabe a nós trazê-los para essa luta agora.

O senhor pretende lançar no Estado do Rio de Janeiro a campanha pelo “voto consciente”. Em que se resume essa campanha?

Resume-se na conscientização do povo sobre o valor e o poder do voto por escolha. O povo, desgastado com a  política atual, está induzido a reagir e agredir pela omissão do voto, seja ele nulo ou em branco; seu comportamento seria não o da ação da escolha, mas o da ação da omissão.

A campanha seria utilizada como incentivadora do voto consciente como a real forma de protesto e decisão. O programa da campanha visa a uma tentativa rápida e eficaz de fazer entender à sociedade que a omissão não atinge nenhuma finalidade, que a grande arma de protesto é a escolha: a vontade só se impõe pelo voto consciente.

Existe uma crença de que o voto nulo anularia o candidato. Não é verdade. Tudo o que o voto nulo anula é a vontade do próprio eleitor; anula ele mesmo perante o processo eleitoral.

O mesmo acontece com o voto em branco: tudo o que faz é que o eleitor passe em branco pelo seu direito de mudar o país com seu voto.

Os votos nulos e em branco não são computados. Logo, o eleitor tem o trabalho de ir ao local, entrar na cabina, para praticar uma ação que se resume em um nada, que nada faz ou modifica. É como se o eleitor não tivesse respeito pelo próprio tempo, pelo seu próprio poder de ação. É trabalho em vão.

Não existe protesto sem ação; não existe protesto sem escolha.

Se o eleitor quer mudar, tem que agir; se quer protestar, tem que votar.

O uso do número de um candidato, escolhido com critério, é a única saída, é a única opção para a mudança drástica que se quer realizar no campo político.

Fora isso, é o nada.