25 anos da Lei da Arbitragem no Brasil

30 de agosto de 2021

Presidente do Conselho Editorial/Ministro do Superior Tribunal de Justiça/Corregedor-Geral da Justiça Eleitoral

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O árbitro e sua atuação no procedimento arbitral

Introdução
A Lei da arbitragem (LAB) está prestes a festejar um quarto de século e desde sua promulgação enfrenta desafios, solidifica-se e torna-se valioso instrumento de solução de disputas.

Seu primeiro e maior desafio, talvez por trazer conteúdo liberal e inovador, foi suplantar resistências para adaptar-se ao novo, traduzidas pela arguição da pretensa inconstitucionalidade de alguns de seus dispositivos, em face do disposto no Art. 5º, inciso XXXV da CRFB/88, suscitada incidentalmente no AgRg na SE nº. 5.206-7.

Aguardou-se, então, cinco anos para que a LAB fosse declarada constitucional pelo Supremo Tribunal Federal, decisão que conferiu importante passo à consolidação do instituto; complementado, em 2002, com a ratificação pelo Brasil da Convenção de Nova Iorque de 1958; com a edição da Emenda Constitucional 45/2004, que alterou o art. 105 da CFRB/88 e atribuiu ao Superior Tribunal de Justiça (STJ) competência para homologação das sentenças arbitrais estrangeiras; e com o advento da Lei nº 13.129/2015 que atualizou e ampliou a LAB, cujo projeto foi elaborado por Comissão de Juristas que tive a honra de presidir.

A partir daí, diante de sua especificidade, eficácia, celeridade e flexibilidade, iniciou-se uma verdadeira revolução, prestigiando-se a arbitragem, tendo o Poder Judiciário – sobretudo a jurisprudência firme do STJ – contribuído significativamente para o seu desenvolvimento, garantindo segurança jurídica e previsibilidade, intervindo, quando necessário, para ratificar decisões ou corrigir eventual erro, deslize, desvio de conduta ou violação aos deveres e obrigações de seus atores – árbitros, auxiliares, partes e advogados.

A escolha do árbitro

Tratando-se de jurisdição privada, a autonomia da vontade desempenha papel relevante no instituto da arbitragem, traduzida pelo consentimento das partes – elemento voluntário – para decidir a forma de composição do conflito que melhor lhe aprouver.

Essa autonomia também possui destaque na escolha do árbitro, pessoa capaz e que detém a confiança das partes, que cumprirá sua missão jurisdicional, mediante a investidura de que o Direito lhe atribui, manifestada pela confiança nele depositada, critério que desempenha papel fundamental no seu poder discricionário de escolha.

A figura do árbitro é singular no procedimento arbitral – homem-chave da arbitragem – e sua atuação deve invariavelmente se pautar pela retidão, lisura, integridade, de modo que sua decisão seja estreme de dúvida. 

O árbitro é um terceiro, um juiz privado eleito pelas partes, submetido a um regime jurídico que tem por origem fonte contratual – contrato de arbitragem – e uma fonte jurisdicional – missão constitutiva de julgar – quando o árbitro assume o papel de juiz natural de fato e de direito; o que caracteriza a natureza mista da arbitragem – meio contratual e meio jurisdicional.

Diante disso, surge invariavelmente a indagação sobre qual profissional indicar para atuar como árbitro em cada arbitragem instaurada. A rigor, esse é o primeiro e mais delicado questionamento que circula em torno do tema e vem à mente das partes e advogados frente a uma disputa que está em vias de eclodir.

Com efeito, a resposta certamente não é fácil, dado o grande número de elementos que hão de ser conjugadamente sopesados.

Como afirma Lalive, chegar à resposta desejada é “uma das tarefas mais delicadas de todas as que cabem aos praticantes da arbitragem internacional”.

A responsabilidade do árbitro é tal, visto que é esperada pelas partes, além de sua expertise, diligência, discrição, mas o mais importante: independência e imparcialidade, como deveres fundamentais.

Seja como for, não se pode jamais perder de vista que a independência é a primeira das qualidades exigidas de um Juiz, incluindo-se aí o árbitro, afigurando-se valiosas as lições de Alexandre Kojève: “Por mais inteligente, enérgico, prevenido, bom ou qualquer outra coisa, um homem não será escolhido se se presumir que seja parcial […] Inversamente, se sabemos que é “justo”, podemos fechar os olhos para todas as suas outras falhas” .

No mesmo sentido, J. D. Bredin afirma que “a independência não é em si uma virtude”, mas “uma condição de liberdade de julgamento” .

Independência e imparcialidade são, portanto, a um só tempo, as condições indispensáveis para qualquer árbitro, e das quais decorre o seu dever de revelação às partes, a fim de dirimir todas as suspeitas ou indícios capazes de gerar indagações quanto à habilitação do profissional para exercer, no caso específico, o múnus de árbitro, a fim de pronunciar uma sentença justa e válida.

Dever de revelação – aspectos recorrentes

Neste contexto, o dever de revelação, que nasce desde a fase pré-contratual – antes da investidura do árbitro – e desenvolve-se no curso de todo o processo arbitral, durante o qual este assume a obrigação de informar as partes acerca de qualquer nova circunstância da mesma natureza suscetível de afetar o seu julgamento.

Inclusive, tanto mais imprescindível é o dever de revelação, considerando que o princípio do duplo grau de jurisdição na lei de arbitragem é uma exceção. Assim, por esse consistente motivo, além de outros, é que o dever de revelação do árbitro precisa ser adequadamente satisfeito.

Sob este enfoque, o árbitro não está obrigado a tudo revelar, devendo, na realidade, detalhar todas as informações aptas, em tese, a provocar dúvida justificada e razoável acerca de sua absoluta isenção para apreciar e julgar a vexata quaestio.

De todo o modo, não é da falta de revelação que resulta a anulação de uma sentença arbitral, mas daquele fato que, omitido, teve – ou teria – o condão de influenciar o julgamento.

A obrigação de revelação se aprecia, igualmente, em relação a notoriedade da situação criticada, de sua vinculação com a controvérsia e seu impacto no julgamento do árbitro, isto porque a notoriedade da informação – àquelas facilmente acessíveis às partes – está isenta de revelação.

Assim posta a questão, o dever de revelação do árbitro tanto é um divisor de águas no procedimento arbitral que, diferentemente da norma processual brasileira (artigos 134 e 135), a LAB (§ 1º do artigo 14) não tratou da questão da imparcialidade de forma taxativa, mas de maneira mais ampla, em razão das suas próprias características, criando a oportunidade para um exame in concreto.

Ademais, sem contar as regras definidas em Lei, o árbitro pode igualmente se valer da aplicação das soft law, com suas diretrizes, recomendações (IBA Guidelines), todas facultativas, sem força cogente e, ainda, dos regulamentos das instituições de arbitragem, todos contribuindo para com o árbitro no seu dever de revelação.

A obrigação de divulgação do árbitro não deve, no entanto, ir além do objetivo proposto, caso contrário criará insegurança e desconforto no desempenho da sua missão.

Sendo assim, avulta-se a regra de ouro no mundo da arbitragem – mais atual que nunca – o adágio segundo o qual “tão vale o árbitro, tão vale a arbitragem”. É que,  afinal, “se a arbitragem não oferece mais garantias de uma boa justiça, para que serve?” 

A responsabilidade civil do árbitro – algumas considerações

A questão da responsabilidade civil dos árbitros e eventualmente das próprias cortes arbitrais, assim também a responsabilidade das partes por dano processual, são matérias que vem recebendo intensos estudos pela doutrina.

Se, por um lado, um erro de julgamento ou um erro de direito ou de fato cometido pelo árbitro (no exercício da atividade stricto sensu) não compromete sua responsabilidade civil, por outro lado, o descumprimento de sua obrigação de divulgação e de seu dever de independência e imparcialidade, é possível que o envolva, a depender das provas e do caso concreto. 

Destarte, uma distinção há de ser feita entre a missão jurisdicional do árbitro – àquilo que está relacionado com o ato de julgar e suas obrigações contratuais e àquilo que está relacionado com a condução do processo – em matéria de responsabilidade.

A obrigação de independência do árbitro está intimamente ligada à sua missão, que decorre do contrato de árbitro – intuito personae – e qualquer incumprimento desta obrigação constituirá em falta, de forma a pôr em exame a sua responsabilidade civil.

É então um verdadeiro princípio geral de direito, amplamente compartilhado tanto na arbitragem interna e internacional, e está presente na maioria das regras de arbitragem, explícita ou implicitamente, e sua inobservância poderá, se for o caso, afrontar à soberania nacional ou a ordem pública, oferecendo, excepcionalmente, oportunidade para que a jurisdição estatal brasileira intervenha, afinal a imparcialidade é pressuposto para que a relação processual se instaure validamente, não estando sujeita à preclusão. 

Nesse passo, bem pontuou a Ministra Nancy Andrighi quando da prolação de seu voto-vista nos autos da sentença estrangeira contestada nº 9.412, precedente multicitado nesta matéria e mecionado na nota de rodapé, “a sentença proferida com comprovada parcialidade ou sob forte suspeita de parcialidade não é legítima manifestação de jurisdição, é qualquer outra coisa, menos administração de Justiça. A descrença na imparcialidade do juiz é a vitória do arbítrio, da barbárie, a falência do Judiciário e de qualquer outra forma alternativa de jurisdição, afinal como afirmou Rui Barbosa, ‘A esperança nos Juízes é a última esperança’”.

Deste modo, pode ocorrer óbice à homologação da sentença arbitral quando ofender a ordem pública brasileira, nos termos do inciso II do art. 39 da LAB, em razão da sua incompatibilidade com o § 1º do art. 14 da mesma Lei e com o art. 1º caput e inciso I e incisos I, XXXV, XXXVII e LII do art. 5º, todos da CRFB/88.

Em caso de anulação da sentença por culpa comprovada do árbitro, a indenização deve ser integral, consistindo nas custas incorridas, despesas suportadas e eventuais danos (material e/ou imaterial) sofridos pelas partes, além da eventual responsabilidade penal, nos termos do art. 17 da LAB.

É necessário, então, que o motivo da anulação seja sério, a prova seja incontestável, que a falta de revelação do árbitro seja claramente configurada e, como tal, represente uma falta grave de independência e imparcialidade e cause prejuízo às partes.

Conclusão

A propósito, a jurisprudência do STJ aperfeiçoa-se e consolida-se graças ao enfrentamento de novos procedimentos que à Corte são submetidos, com o aprimoramento da doutrina e alinha-se com a experiência internacional que há muito se depara com situações das mais variadas, contribuindo para o desenvolvimento do instituto, mas sempre com a independência intelectual que lhe é própria. 

Outrossim, a meu ver, neste tema relacionado a atuação dos árbitros, deve prevalecer sempre um equilíbrio entre, de um lado, a confiança das partes no árbitro e, de outro, a boa-fé no procedimento arbitral, como pratos de uma precisa balança, realçando-se a importância da arbitragem que, no decorrer destes últimos 25 anos, se reafirma como adequado e necessário método de resolução de conflitos no Brasil. 

Notas__________________________

1 SE 5206 AgR/EP – Rel. Min. Sepúlveda Pertence, j. 12.12.01, DJ 30.04.04.

2 CLAY, Thomas. “L’arbitre”. Dalloz. Nouvelle Bibliothèque de Thèses, 2001, p. 12.

3 Civ. 1, 17 nov. 2010, Ver. arb. 2011, p. 943, note Ch. Jarrosson ; D. 2010, p. 2935, obs. Th. Clay ; LPA 2011, nº 225-226, p. 120, note L. Degos. 

4 CLAY, Thomas. “L’arbitre”. Dalloz. Nouvelle Bibliothèque de Thèses, 2001, p. 805.

5 RACINE, Jean-Baptiste. Droit de l’arbitrage. Puf. 1e édition. France : 2016.

6 LALIVE, Pierre. « Le choix de l’arbitre », in Mélanges J. Robert, Montchrestien, 1998, p. 353, spéc., p. 363.

7 A. Kojève : Esquisse d’une phénoménologie du droit. Gallimard, coll. Bibliothèque des idées, 1943, éd. Posthume, 1981, spéc. nº 27, p. 194, extrait de CLAY, Thomas. L’Arbitre. Éd. Dalloz. 2001, nº 274, p. 231.

8 BREDIN. Jean Denis. Qu’est-ce que l’indépendance du juge ? Justices. Revue générale de droit processuel n. 3, janvier-juin 1996. p. 161-166.

9 Th. CLAY. L’arbitre. Dalloz. Nouvelle Bibliothèque de Thèses, France : 2001, p. 806.

10 STJ, Corte Especial, SEC 9412-Estados Unidos da América, rel. orig. Min Felix Fischer [vencido], rel. p/ac. Min. João Otávio de Noronha, j. 19.4.2017, m.v., DJUe 30.5.2017