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Uso da faixa de domínio – não onerosidade para agente do setor elétrico

19 de abril de 2013

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1. Breve intróito

A 1ª Turma do Superior Tribunal de Justiça – STJ, em maio de 2008, de forma unânime definiu um marco a respeito do embate no judiciário sobre a cobrança de taxa pela utilização da faixa de domínio das rodovias. A ação foi proposta por uma concessionária de gás em face de uma ferrovia, ambas do Rio de Janeiro.

A referida decisão – REsp 954.067 – é mais uma demonstração que o judiciário tem rechaçado a tentativa de algumas rodovias e ferrovias de cobrarem o acesso as faixas de servidão. Este caso se aplica as concessionárias de energia elétrica que estão sendo obrigadas em seus estados a ingressarem com ações buscando garantir o acesso não oneroso à faixa de domínio de rodovias, viabilizando, assim, a execução dos serviços e projetos a que estão adstritas a cumprir, por força do contrato de concessão e das determinações legais que se sujeitam.

É bom esclarecer que antes mesmo do contrato de concessão firmado entre a União Federal e distribuidoras, já existia limitação quanto à cobrança pela ocupação de faixas de domínio de rodovias por linhas de transmissão, subtransmissão e distribuição de concessionários de serviços públicos de energia elétrica determinada pelo próprio poder concedente (no caso a União Federal).

O contrato de concessão celebrado entre as distribuidoras e a União Federal, dispõe que estas podem utilizar-se, por prazo indeterminado e sem ônus, dos terrenos de domínio público e estabelecer sobre eles, estradas, vias ou caminhos de acesso e as servidões que se tornem necessárias à exploração dos serviços concedidos, com sujeição aos regulamentos administrativos.

Não há dúvida, portanto, de que as distribuidoras estão investidas do poder estatal como se ele fosse, ou seja, independente da característica privada da empresa, estas gozam de prerrogativas do Estado na prestação do serviço público.

2. A base legal para a não onerosidade

O Código de Águas (Decreto 24.643/1934) e o Regulamento dos Serviços de Energia Elétrica (Decreto 41.019/57), nos arts 151, “a” – do 1º e 108 “a” – do 2º e no Decreto nº 84.398/1980, por meio dos seus arts. 1º e 2º, estabelecem procedimento de ocupação de terrenos de domínio público e deixam claro que as autorizações serão por prazo indeterminado e sem ônus para os concessionários de serviços públicos de energia elétrica.

Assim, os arts. 1º e 2º do Decreto 84.398/80 (alterado pelo Decreto 86.859/82), regulamentam o Código de Águas, assegurando expressamente a ocupação gratuita de domínio público para a execução de seus serviços. Com isso, a União, poder concedente, criou direitos para as distribuidoras – direitos integrados ao contrato de concessão – e limitou – com relação a ela – o próprio direito de cobrar pela utilização da faixa de domínio das rodovias. Verifica-se que a legislação de energia elétrica é muito anterior aos contratos de concessão assinados pelas concessionárias de rodovia que participaram dos leilões a partir da Lei nº 8.987/95.

Buscando afastar a gratuidade prevista nos normativos acima referidos, as rodovias alegam que estão autorizadas a explorar fontes de receitas alternativas a fim de manter a modicidade do pedágio, com base no artigo 11 da Lei nº 8.987/95. Além disso, alegam que por força de lei, o uso comum do bem público pode ser retribuído, o que acontece com as rodovias que cobram pedágios.

Esse argumento cai por terra, uma vez que as distribuidoras também são concessionárias de serviço público, sujeitando-se ao mesmo artigo acima mencionado. Com a alegação de que buscam a modicidade de suas tarifas, as rodovias pretendem onerar as distribuidoras com encargos que integrarão a base de cálculo para a fixação das tarifas de energia elétrica, esquecendo serem elas também concessionárias de serviços públicos.

Se porventura obtivessem êxito em seus pleitos no judiciário, o que está longe de ocorrer, já que tanto legislação, doutrina e jurisprudência são amplamente favoráveis à tese das distribuidoras, impactado estaria o princípio da modicidade tarifária, ocasionando, deste modo, revisões de tarifas (conforme dispõe o artigo 9º da lei nº 8.987/95), que onerariam todos os usuários atendidos pelas distribuidoras.

Ademais, o contrato de concessão das rodovias não assegura expressamente o direito de obter receitas alternativas mediante cobranças feitas a outras concessionárias de serviços públicos, sendo certo que, também nesse contrato, as rodovias se obrigam a respeitar todas as normas legais e regulamentares em vigor, e isso inclui o Decreto 84.398/80, anteriormente mencionado.

Assim, de nada adiantaria – antes, violaria o princípio da razoabilidade – favorecer a modicidade das tarifas de rodovias em contrapartida à elevação das demais (telefone, gás, energia elétrica), pelo encarecimento resultante da cobrança.

Esta descabida exigência, caso não seja rechaçada pelo judiciário como, aliás, vem ocorrendo, acaba por oferecer sérios riscos ao setor elétrico, já que a exigência de pagamento de indevida remuneração pelo uso de faixa de domínio implica verdadeiro desequilíbrio na equação econômico-financeira do contrato de concessão, ocasionando uma necessária mudança na política tarifária e criando grandes dificuldades à garantia de modicidade dessas mesmas tarifas de energia elétrica.

Assim, não há qualquer impedimento a que as concessionárias de rodovias cobrem de particulares que se instalem na faixa de rodovia para exploração de atividades comerciais ou outros fins compatíveis, não havendo fundamento para cobrar pelo uso exercido por outras concessionárias de serviços públicos. As mesmas razões que justificavam a gratuidade antes da privatização das empresas estatais que prestavam serviços públicos permanecem agora quando os mesmos serviços são assumidos por empresas privadas que agem por delegação do poder público e recebem prerrogativas públicas semelhantes às do poder concedente. Além disso, seria irrazoável que as fontes de receitas previstas no artigo 11 da Lei nº 8.987/95 para permitir a modicidade da tarifa, viessem a provocar o aumento da tarifa de outras concessionárias públicas, como a de energia elétrica.

Patente, pois, que a malsinada cobrança, além de ilegal, atingiria, diretamente, todos os usuários do serviço prestado pela distribuidora, impactando, consequentemente, no princípio da modicidade tarifária, pressuposto fundamental para a prestação de serviço adequado.

3. A visão da doutrina

Doutrinadores de renome nacional já se pronunciaram a respeito do assunto tratado no presente artigo, mas entendemos oportuna a transcrição de entendimento da renomada e respeitada professora Maria Sylvia Zanella de Pietro1 que afirma, com total brilhantismo, que: “Essa cobrança de outras concessionárias pela utilização de faixas de domínio das rodovias contraria o art. 11 da lei nº 8.987, porque leva a resultado exatamente oposto ao interesse protegido pelo dispositivo, ou seja, o interesse dos usuários dos serviços públicos na observância do princípio da modicidade das tarifas. A conclusão é, portanto, no sentido de que não tem fundamento jurídico a cobrança de remuneração das concessionárias de serviços públicos que se utilizam das faixas de domínio das rodovias para a instalação de equipamentos indispensáveis á prestação de serviços públicos”.

Flávio Amaral Garcia, ilustre Procurador do Estado do Rio de Janeiro e, também, conceituado e renomado administrativista, em sua obra “Regulação Jurídica das Rodovias Concedidas” (Editora Lumen Juris, 2004) afirma que “a passagem pela faixa de domínio se assemelha a uma servidão administrativa, que apenas indeniza quando há efetivo prejuízo. Daí se entender que não cabe remuneração, como receita alternativa, devida à concessionária de rodovia”.Como demonstrado, a melhor doutrina adminis­trativista tem se manifestado no sentido de rechaçar a indevida cobrança pelo uso da faixa de domínio de rodovias

4. O entendimento do Judiciário

Na mesma linha, a jurisprudência pátria tem acolhido a tese da inexigibilidade da cobrança pelo uso da faixa de domínio pelas concessionárias de serviço público, conforme se pode verificar nos acórdãos proferidos pelo Tribunal Regional Federal da 3ª Região (Recurso de Apelação no 2000.5101019220-5, 3ª Turma, DJ 21/6/2005) Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro (Apelações Cíveis nº 16.561/2003 e 16.560/2003, 1ª Câmara Cível e Apelação Cível nº 2006.001.001, 12ª Câmara Cível), Superior Tribunal de Justiça (2ª Turma, AGRMC 9565, DJ de 13/6/2005) e Supremo Tribunal Federal ( RE 581947/RO, 27/5/2010), dentre outros.

5. Do posicionamento da Advocacia Geral da União – AGU

Como se não bastasse à legislação, doutrina e jurisprudência favoráveis ao entendimento da não onerosidade defendida pelas distribuidoras, cabe, a seguir, o posicionamento da AGU sobre o tema ora tratado, que, sem dúvida, coloca uma pá de cal nesta discussão entre concessionárias de energia e de rodovias, senão vejamos:

PARECER Nº 017/2011/JCBM/CGU/AGU
PROCESSO Nº 00407.002941/2009-51
INTERESSADO: CCAF
ASSUNTO: Cobrança de taxa pela utilização das faixas de domínio das rodovias federais – controvérsia a respeito da aplicação do Decreto nº 84.398/80 face à Lei nº 8.987/95.
Cobrança pela utilização das faixas de domínio de rodovias e de terrenos de domínio público federais. Isenção (Decreto nº 84.398/80). Divergência entre órgãos da Administração. Conciliação frustrada no âmbito da Câmara de Conciliação e Arbitragem da Administração Federal.
A cobrança pela utilização das faixas de domínio pelas concessionárias de serviços públicos de energia elétrica está afastada pelo Decreto nº 84.398/80 (art. 2º).
A Lei nº 8.987/95 não revogou as disposições do Decreto nº 84.398/80. A possibilidade de aferição de receitas alternativas pelas concessionárias de serviços públicos com vistas à modicidade tarifária não implicou em revogação do Decreto nº 84.398/80.
A modicidade prevista no art. 6º, § 1º, da Lei Geral de Concessões e Permissões (Lei nº 8.987/95) deve ser vista de forma conglobante. É inviável ao alcance da modicidade tarifária a obtenção de receita alternativa que onere as tarifas de um serviço em detrimento do outro.
As Agências Reguladoras – conquanto autônomas – não podem expedir normas que contrariem Decreto do Poder Executivo que dispunha contrariamente a respeito da matéria de forma geral.
No Brasil, remanesce com o Chefe do Poder Executivo o poder de regulamentar questões de natureza geral e de dirimir controvérsias entre as Agências Reguladoras e quaisquer órgãos integrantes da Administração Pública.
A faixa de domínio das rodovias e ferrovias é bem público de uso comum. Inviabilidade de cobrança pela sua utilização em proveito dos usuários de serviços públicos. (grifou-se)

Este brilhante parecer acabou por influenciar a elaboração de um Ofício da Agência Nacional de Transportes Terrestres – ANTT às concessionárias de rodovias, no sentido de isentar de pagamento de receita extraordinária as redes de energia elétrica a serem implantadas nas faixas de domínio das rodovias federais concedidas.

Como resultado dos posicionamentos acima trans­critos, foi publicado no Diário Oficial da União, Instrução Normativa nº 1, de 5 de julho de 2012, autorizando a não interposição e a desistência dos recursos já interpostos referentes a decisões judiciais que, em conformidade com o art. 2º do Decreto nº 84.398, de 16 de janeiro de 1980, autorizem a ocupação, sem ônus, pelas concessionárias de energia elétrica, das faixas de domínio de rodovias, ferrovias e de terrenos de domínio público federal.

6. Conclusões

Pelo exposto neste breve artigo, resta demonstrado a total impossibilidade de sufragar-se a cobrança pretendida pelas concessionárias de rodovia, por infringir o direito à não onerosidade do serviço de distribuição de energia elétrica, esbarrando, por conseguinte na legislação setorial, doutrina e jurisprudência predominante.

Não há dúvida de que as rodovias encontram-se desprovidas de qualquer fundamento jurídico para obterem êxito em sua tese, razão pela qual não é por acaso que suas ações judiciais têm se mostrado infrutíferas.

Deve-se deixar bem claro que a concessionária de rodovia não está impedida de cobrar e de receber pelo uso da faixa de domínio. Entretanto, quando for o caso de outras concessionárias de energia elétrica, a ocupação dessa área é feita sem ônus. Isso foi estabelecido pela Titular de ambos os serviços, ou seja, pela União, por intermédio do Decreto supracitado.

Por fim, mas não menos importante, a tese das concessionárias de rodovia, se acatada fosse, o que como vimos está longe de ser verdade, acabaria por consagrar um verdadeiro absurdo, uma vez que tanto o serviço público de transmissão e de distribuição de energia elétrica, quanto das ferrovias e as concessões de rodovias federais são, por expressa previsão Constitucional (art. 21, XII), de titularidade da União.

Notas _______________________________________________________________________________

1 Temas Polêmicos sobre Licitações e Contratos, Malheiros, 4ª Edição, pág. 318/320.