Tutela da saúde e da segurança no local de trabalho – Aspectos gerais

7 de agosto de 2019

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Em 1690-1691, Bernardini Ramazzini, pai da Medicina do Trabalho, iniciou no curso de Medicina em Módena suas aulas sobre a matéria que denominou de morbis artificum – as doenças dos trabalhadores. Suas observações e apontamentos de aula, mais tarde constituidores do tratado De Morbis Artificum Diatriba, resultaram da amalgamação de sólida bagagem de erudição na literatura histórica, filosófica e médica disponível com observações colhidas em visitas a locais de trabalho e em entrevistas com trabalhadores. (…)

Não obstante os relevantes ensinamentos de Ramazzini, foi apenas com a Revolução Industrial, em meados do Séc. XVIII, que questões relacionadas às doenças dos trabalhadores passaram a ser vistas como problema social que reclamava políticas públicas. (…) Um dos marcos da legislação internacional relativa à proteção do trabalho foi a aprovação, pelo parlamento britânico, a partir de 1802, de várias leis conhecidas como Leis das Fábricas (Factory Acts). (…)

Com a criação da Organização Internacional do Trabalho (OIT) em 1919, logo após a I Guerra Mundial, houve acentuado crescimento na tutela da Saúde e da segurança do trabalhador. Agência da Organização das Nações Unidas (ONU), a OIT tem estrutura tripartite, na qual representantes de governos, organizações de empregadores e trabalhadores de 183 estados membros participam em situação de igualdade das diversas instâncias. Desde sua criação a OIT já editou inúmeras Convenções Internacionais de Trabalho e Recomendações, que devem ser observadas pelos países membros que as ratificam, tornando-se a maior referência mundial sobre o assunto. O Brasil está entre os membros fundadores e participa da Conferência Internacional do Trabalho desde a primeira reunião. (…)

Em 1948, a Organização Mundial da Saúde (OMS) estabeleceu o conceito de Saúde como o “completo bem-estar físico, mental e social, e não somente a ausência de afecções ou enfermidades”, bem como que o “gozo do grau máximo de saúde que se pode alcançar é um dos direitos fundamentais de todo ser humano”.

Ainda em 1948, a Assembleia Geral da ONU aprovou a Declaração Universal dos Direitos Humanos, que constitui fonte de princípios na aplicação das normas jurídicas, assegurando, entre outros, o direito ao trabalho, à livre escolha de emprego, a condições justas e favoráveis de trabalho, à proteção contra o desemprego; ao repouso e ao lazer; à limitação de horas de trabalho; a férias periódicas remuneradas, além de padrão de vida capaz de assegurar a si e a sua família saúde e bem-estar.

A noção de que Saúde constitui direito humano fundamental, passível de proteção e tutela pelo Estado, ensejou que, em 1950, a OIT se reunisse com a OMS para estabelecer os objetivos da saúde ocupacional, restando determinado que, mesmo com as diferenças existentes entre os países, as medidas relacionadas à saúde e à segurança do trabalhador deveriam seguir alguns princípios básicos, entre eles, o de que um serviço médico instalado em estabelecimentos de trabalho configura saúde ocupacional.

Em 1998, a Conferência da OIT aprovou a Declaração dos Princípios e Direitos Fundamentais no Trabalho, que estabelece quatro princípios fundamentais: liberdade sindical e reconhecimento efetivo do direito de negociação coletiva; eliminação de todas as formas de trabalho forçado; abolição efetiva do trabalho infantil; eliminação de todas as formas de discriminação no emprego ou ocupação.

Em face da globalização e do déficit de políticas em matéria de crescimento e emprego, a OIT instituiu o Trabalho Decente como o objetivo central de todas as suas políticas e programas. (…) O Trabalho Decente constitui eixo central para o qual convergem os objetivos estratégicos da OIT: respeito às normas internacionais do trabalho; promoção do emprego de qualidade; extensão da proteção social; e fortalecimento do diálogo social

No Brasil, as primeiras regulamentações de segurança do trabalho surgiram por volta de 1930, juntamente com a expansão industrial. O então Presidente Getúlio Vargas iniciou o processo de direitos trabalhistas individuais e coletivos com a criação da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), em 1943. As normas protetivas da saúde e segurança do trabalho estão dispostas no art. 54 e seguintes da CLT. Há capítulo específico referente à segurança e medicina do trabalho (artigos 189 a 192). No art. 200, há delegação de competência ao “Ministério do Trabalho” para expedição de normas concernentes à saúde e segurança do trabalhador.

A partir daí a segurança do trabalho evoluiu gradativamente. Em 1972, o então Ministério do Trabalho editou a Portaria nº 3.237, na qual foi estabelecida a obrigatoriedade dos serviços especializados em segurança, higiene e medicina do trabalho nas empresas. Posteriormente foi editada a Portaria nº 3.214/1978, com a regulamentação das disposições complementares contidas na CLT sobre segurança, higiene e saúde do trabalho, a qual, em razão de sua abrangência, foi desmembrada em normas regulamentadoras (NRs) específicas. Por expressa delegação legal, essas normas têm eficácia jurídica equiparada à lei ordinária e são de observância e cumprimento obrigatório por parte dos empregadores.

A tutela da saúde e segurança do trabalhador ganhou status de direito social de natureza constitucional na Carta de 1988, que garante a obrigatoriedade de redução dos riscos inerentes ao trabalho (art. 7º, XXII); e incumbe ao Estado a promoção, proteção e recuperação da saúde e segurança do trabalho, inclusive a redução dos riscos de doenças e outros agravos (art. 196). Garantiu-se, também na Constituição, o direito à negociação coletiva e à representação sindical (art. 7º, XXVI).

A Lei nº 13.467/2017, intitulada reforma trabalhista, inseriu na CLT o art. 611-A, no sentido de que a convenção coletiva de trabalho terá prevalência sobre a lei, acerca de certos direitos trabalhistas. Entende-se que tal dispositivo deve ser analisado, com relação a matérias atinentes à saúde e segurança do trabalhador, à luz dos princípios da dignidade da pessoa humana, da vedação ao retrocesso social e da intrínseca correlação entre a fundamentação legal das normas de saúde e segurança do trabalho e a intenção do legislador de manter e aprimorar o trabalho seguro e saudável.

Desse modo, o direito à negociação coletiva, como direito constitucionalmente assegurado, não goza de caráter absoluto visto que encontra limites legais e formais a serem seguidos, entre os quais o rol de direitos sociais, também assegurado constitucionalmente – no qual está inserido o direito ao trabalho saudável e seguro, que possui a característica de evolução sistematicamente benéfica, constituindo-se, também, o princípio da progressividade um dos limites à negociação coletiva, conforme se infere do disposto no art. 4º da Convenção nº 155 da OIT, ratificada pelo Brasil, que prevê a busca sucessiva da redução dos riscos inerentes ao meio ambiente de trabalho.

No Brasil, diversos órgãos públicos são responsáveis pela efetiva tutela da saúde e da segurança do trabalhador: a Secretaria de Inspeção do Trabalho (SIT), do Ministério da Economia; o Ministério Público do Trabalho (MPT); a Advocacia Geral da União (AGU); e o Poder Judiciário Trabalhista. São órgãos da Justiça do Trabalho, nos termos do art. 111 da Constituição: o Tribunal Superior do Trabalho (TST); os Tribunais Regionais do Trabalho (TRTs); e os Juízes do Trabalho. A competência da Justiça do Trabalho encontra-se prevista no art. 114 da Constituição que prevê, dentre outros, o processamento e julgamento de ações de indenização por dano moral ou patrimonial, decorrentes da relação de trabalho. 

As ações judiciais e seus efeitos têm sido importantes para os trabalhadores. Os desdobramentos da questão acidentária vêm refletindo na jurisprudência brasileira cada vez com mais frequência, no sentido de prevenir os acidentes, porquanto judicialmente tem se adotado responsabilização objetiva do empregador nas atividades de risco, nos termos do art. 927, parágrafo único, do Código Civil, ou subjetiva, quando presentes o dano causado ao empregado, a culpa do empregador e o nexo causal entre a atividade e o fato danoso. Diante do descumprimento das normas da saúde e segurança do trabalho, o TST tem firmado entendimento no sentido de que a reparação pode ocorrer tanto individual quanto coletivamente.

A despeito de sua competência jurisdicional, outras importantes ações, de caráter preventivo, vêm sendo praticadas pelo Poder Judiciário do Trabalho brasileiro, na busca da efetiva tutela da saúde e segurança do trabalhador. Entre elas, cite-se o Programa Trabalho Seguro. (…)

No Brasil foram registrados, nos últimos cinco anos, 611 mil acidentes de trabalho por ano, em média. Destes, 14 mil com sequelas permanentes e 2,3 mil fatais. As estatísticas demonstram que os números vêm se reduzindo e isso pode refletir o avanço das medidas preventivas. Contudo, especialistas acreditam que essa redução também está associada à queda nos níveis de atividade econômica. A taxa de incidência de acidentes caiu de 21,64/mil trabalhadores, em 2009, para 13,74/mil, em 2017. A taxa de mortalidade também diminuiu, de 7,55 para 5,24/mil trabalhadores. A despeito da redução, os números continuam preocupantes.

Diversas regulamentações foram editadas na busca de melhores condições no ambiente do trabalho, buscando intervir diretamente nas causas e não apenas nos efeitos a que estão expostos os trabalhadores. Verifica-se, todavia, que, não obstante todo o arcabouço normativo, o Brasil é um País com índice expressivo de acidentes do trabalho, sendo um dos maiores pontuados quanto ao número de acidentes ocorridos na área da construção civil. Esse fato sugere, ou mesmo demonstra, que os normativos não têm sido observados em sua plenitude. Portanto, o aprimoramento do sistema de inspeção do trabalho, das causas e consequências de problemas de doença ocupacional e de acidentes de trabalho, revela-se medida de muita utilidade na verificação da efetividade das ações que têm sido adotadas para prevenir esse tipo de problema.

Verifica-se, em conclusão, que houve no último século, no cenário mundial e nacional, grande avanço na tutela da saúde e da segurança do trabalhador. O novo conceito de Saúde não se relaciona mais à inexistência das doenças e sim à plena saúde física, mental e social. (…)

As normas legais passaram a amparar um ambiente de trabalho saudável, sem preocupação unicamente com a existência de agente nocivo à saúde ou fatores de risco, mas com a eliminação desses agentes e fatores e com a prevenção de qualquer fator negativo do ambiente de trabalho. Os procedimentos, antes adotados apenas para atendimento de formalidades legais, caracterizam atualmente parte da gestão das empresas que passam a adotar medidas assecuratórias de segurança nas diversas atividades laborais e ambientes de trabalho. Os trabalhadores passaram a ter maior acesso às informações, bem como a garantia de participação nos processos de elaboração das normas por meio de representantes. O empregador passou a ter responsabilidade pela não aplicação das normas.

Não obstante todo esse avanço, o mundo do trabalho se encontra em processo de mudança, impulsionado por várias forças de transformação (evolução das tecnologias, impacto das mudanças climáticas, mudanças na produção e no emprego, etc.). É cediço que se vive hoje uma fase de transição entre o fim de uma era industrial e o início de uma era pós-industrial, na
qual se encontra em latente discussão o sistema de regras voltadas ao modelo anterior e em crescente formulação regras para um novo modelo. Portanto, ante verificação de que as regras industriais não mais se encaixam e as pós-industriais ainda estão em gestação, esse é um momento crucial para se pensar o futuro do trabalho e o conjunto de regras que pode ou deve ser estabelecido para os próximos anos.

Não se afastando dessa realidade, na celebração do 100º aniversário, a OIT adotou a Iniciativa do Centenário sobre o Futuro do Trabalho, instituindo a Comissão Global sobre o Futuro do Trabalho, para realizar investigações aprofundadas e fornecer base analítica para garantir a concretização da justiça social no Séc. XXI, com foco na relação entre trabalho e sociedade, no desafio de criar empregos decentes para todos, na organização do trabalho e da produção e na governança do trabalho.