Edição

Tribunal do Júri – Legislação necessita de reformas

5 de setembro de 2001

Compartilhe:

Independente das perguntas históricas sobre quando começou o fascínio pela Tribuna do Júri, os anos de beca, o exercício religioso da pura advocacia sem outras atividades profissionais, teríamos que analisar a Legislação atual e as modificações necessárias para a reforma da maior das Tribunas, aquela que julga o ser humano na sua verdadeira essência, no momento em que ele implode ou explode, demonstrando a sua fragilidade

Afirmei que a Legislação atual sobre o Tribunal do Júri está distante da realidade, necessitando de algumas reformas. Não aceito que Estudiosos e Juristas, por mais competentes que o sejam, possam opinar sobre o tema sem que tenham por ali passado e dedicado parte do seu tempo a acusar, defender ou julgar crimes dolosos contra a vida. Se por ali não tiverem passado não têm condições de falar sobre o que não conhecem. Seria apenas a teoria divorciada da realidade.

O Direito, fenômeno cultural para realização de valores, sente o reflexo das transformações. Vai ficando longe a concepção do direito como expressão normativa meramente formal. A interpretação deixa de ser considerada simplesmente declaratória. Confere-se ao intérprete a dignidade de expressar o significado histórico da norma. Da lógica formal passou-se a lógica existencial. Em sendo assim, a Legislação terá que ser sensível aos reclames para não sacrificar a sua eficácia.

A Ciência Penal, mais que nunca, preocupada com o homem, desenvolveu teorias, buscando realizar conceitos, debatendo também o significado do próprio Direito Penal. A concepção de crime, deliqüente, pena, sem olvidar a vítima, deve estar a sinalizar para que o texto legal não fique em mora com a realidade nacional ao legislador.

Já existem propostas oficiais de modificação do Tribunal do Júri, que foi objeto de análise vertical de Juristas como Tubenchlak.

O Projeto de Lei nº 1655-B, de 1983, aprovado pela Câmara dos Deputados em 26 de junho de 1984, instituiria novo Código de Processo Penal, sendo originário de um anteprojeto de Frederico Marques elaborado em 1970. Inacreditável que um trabalho de qualidade realizado exaustivamente pelo Mestre, tenha demorado 14 anos para ser aprovado, e até hoje não esteja em vigor. É claro e admissível que o anteprojeto deveria receber emendas e propostas, mas o mais importante é que a Justiça reclama a atualização dos processamentos.

Naquele trabalho, no Título IX, que trata dos procedimentos especiais, dedica todo o Capítulo III – arts. 564 usque 629 ao “Procedimento das causas de competência do júri.

Como principais inovações, ganhariam realce ao fases postulatória e instrutória, em relação às quais o art. 597 elegeria as normas do procedimento ordinário, constante do Título II (arts. 209 e s.). Lá estariam previstas duas espécies de julgamento conforme o estado do processo: julgamento antecipado da causa (art. 252) e extinção do processo sem julgamento de mérito (art. 253).

Consoante o art. 235, o Juiz, inicialmente, não receberia a Denúncia ou a Queixa, limitando-se a deferir seu processamento e ordenando a “citação do acusado para responder ao pedido”.

julgamento conforme o estado do processo, o Magistrado proferiria despacho saneador, quando então receberia a peça inicial, designando audiência de instrução e julgamento (cf. Arts. 343 a 351).

A decisão de pronúncia seria prolatada, desde que houvesse “fundamento razoável para a acusação” (art. 580). Nessa peça, o Juiz marcaria data para a realização do julgamento pelo Júri (art. 582).

Como se vê, o anteprojeto tornaria mais rápido o procedimento. A previsão legal seria de uma só audiência, quando praticamente todas as provas seriam realizadas, na seguinte forma:  I – interrrogatório do acusado; II – esclarecimentos dos peritos; III – declarações do ofendido; IV – inquirição das testemunhas de acusação; V – inquirição das testemunhas de defesa; VI – acareações; VII – reconhecimento de pessoas ou coisas; VIII – outras provas (art. 347).

As alegações finais seriam produzidas oralmente, a não ser que a causa apresentasse questões complexas. Nesse caso, o debate oral seria substituído por alegações escritas, no prazo de cinco dias (art. 348, §§ 3º e 7º).

Quanto à decisão de pronúncia, também teria a audiência como seu momento. Não se sentindo o Juiz habilitado a prolatar a decisão, poderia fazê-lo no prazo de dez dias (art. 349, caput e parágrafo unico).

A acusação e a defesa, uma vez intimadas da designação da data do julgamento, poderiam, no prazo de cinco dias, requerer diligências, inquirição de testemunhas e “esclarecimentos dos peritos em plenário” (art. 584), não afastando a apresentação de documentos, cabível em qualquer fase do procedimento (art. 305).

Nesse momento, não podemos concordar com o anteprojeto. Realizar um interrogatório, as declarações do ofendido, a inquirição das testemunhas de acusação e de defesa, no mesmo momento, tornaria a defesa violada em seus direitos, pois tomando conhecimento da acusação no mesmo dia em que teria que apresentar testemunhas para contraditar o afirmado por aquelas elencadas pelo Ministério Público, não existiria espaço nem tempo para o raciocínio necessário e posicionamento para ilidir o que existisse contra o acusado.

Também, as alegações finais feitas de forma oral, anteciparia o julgamento, pois o Ministério Público e o Advogado de Defesa exporiam suas teses com antecedência ao julgamento, o que também cercearia de alguma forma pela antevisão dos fatos o direito de defesa. Digo isso, com relação às questões mais controvertidas e não simplesmente a um processo em que se nega a autoria do crime. Soubesse o Ministério Público que a tese da defesa seria a coação moral irresistível por parte da vítima, ou inexigibilidade de conduta diversa, ou legítima defesa de princípios, e legítima defesa da honra, e a inteligência do acusador se faria presente no dia do julgamento, prevenido, estudado, sem surpresas.

O tempo dos debates, no plenário, voltaria a ser o estabelecido antes da reforma de 1973. Três horas para cada parte, “e de uma hora para a réplica e outro tanto para a tréplica” (art. 608); havendo mais de um réu, “o tempo para a acusação e para a defesa será, em relação a todos, acrescidos de uma hora, e elevado ao dobro o da réplica e o da tréplica” (§ 2º).

Discordo em parte do retorno ao tempo disponível. Isto porque, os Jurados raramente suportam uma acusação ou uma defesa menos vibrante durante três horas. A réplica torna-se uma agonia. E não se pode exigir que todos os membros do Ministério Público e todos os advogados sejam brilhantes para que não ocorra o tédio que prejudica em muito a Defesa ou a Acusação. O prazo atual de duas horas tem sido, na prática, suficiente. Havendo mais de um réu o tempo passa a ser de três horas. Como no caso do General Newton Cruz, quando tivemos a honra de defendê-lo e a mais um companheiro de denúncia, quando pude utilizar as três horas, necessárias e importantíssimas, para absolvê-los de forma unânime. Por isso, repilo que teóricos, por mais estudiosos e competentes que o sejam, opinem sobre aquilo que nunca fizeram, acusar, defender ou julgar no Tribunal do Júri.

Importantíssima, entretanto, é a criação através do artigo 612 da simplificação da formulação dos quesitos. O “Princípio da Simplificação”, conforme defende Afrânio Jardim (Estudiosíssimo e Vivente do Tribunal do Júri) permitiria um julgamento mais justo e consciente. Isto porque, quando a defesa sustenta, por exemplo, a inexigibilidade de conduta diversa, até mesmo os Juízes Togados têm dificuldade em equacionar a tese defensiva com os quesitos. Da mesma forma, quando a defesa sustenta – legítima defesa da honra – o Magistrado tem dificuldade em explicar aos jurados, leigos em princípio, o que pretende o advogado da defesa. Discuto isso, porque no julgamento histórico em que pela primeira vez no mundo o júri afirmou a “legítima defesa da honra da prostituta”, o Eminente Juiz Presidente à época, hoje Eminente Desembargador José Carlos Watzl, cuidadosamente, se viu obrigado a explicar o significado da legislação relativa à legítima defesa e a possibilidade da sua expansão humana a um sentimento íntimo. O caso, IV Tribunal do Júri, 1978, tornou-se exemplo de como os Jurados necessitam da simplificação dos quesitos. Da mesma forma, “legítima defesa de princípios” tese defendida no julgamento de Ana Barbosa, receberia o mesmo cuidado do Eminente Desembargador Paulo Roberto Leite Ventura à época Juiz Presidente do IV Tribunal do Júri para com a quesitação defensiva, fazendo com que o Eminente Magistrado explicasse aos Jurados que a legítima defesa expressa no Código Penal poderia ter vertentes, como a honra e princípios.

Quando a defesa sustenta teses diferenciadas, criadas pela sensibilidade e inteliência do advogado, a quesitação se torna mais difícil. Mesmo os Magistrados mais experientes, com pleno conhecimento da matéria, cultos e inteligentes, têm dificuldades para equacionar a tese que através de perguntas mais simples, e que possibilitariam a que o Júri (geralmente leigos) pudesse compreender e votar com consciência.

Por esses motivos acolho a tese de que a formulação dos quesitos deve ser simplificada, evitando que o Magistrado ou as partes tenham que justificar (como numa aula) aquilo que desejam para condenar ou absolver o acusado. Essa simplificação equilibraria muito mais o julgamento e daria aos Jurados o direito de equacionar numa única resposta aquilo que conscientemente gostaríamos de responder – culpado ou não culpado.

Relativamente ao tradicional recurso – Protesto por Novo Júri – o anteprojeto suprimiu de forma inconstitucional esse direito existente na Lei Atual. Esse recuso, “remédio irrecusável e impostergável” no dizer de Fernando da Costa Tourinho Filho (1987, v.4, p.343), “para tornar mais límpida a garantia individual, como uma providência de maior valia e cuja finalidade é a de permitir ao réu nova oportunidade de ser julgado pelos seus co-cidadãos”. Lamentável portanto que se faça constar de uma modernização das questões relativas ao Tribunal do Júri, que se negue ao homem o direito de ser reexaminada a questão, seja pelo excesso de condenação (mais de 20 anos), seja por equívoco dos Jurados, seja pelo talento do Ministério Público, que teria conseguido uma vitória que, com armas iguais (talento, cultura, credibilidade e inteligência), seria duvidosa. Nesse aspecto, ter-se-ia que analisar a discutida decisão por quatro votos a três relativamente ao mérito, o que demonstra uma dúvida dos Jurados, seja o resultado favorável à defesa ou à acusação. Talvez, a necessidade de que a Lei exija uma definição maior de culpabilidade, pena de novo julgamento.

A discricionariedade do Juiz togado, quanto à aplicação da pena, é inequivocamente extraordinária. Tomando-se o exemplo do homicídio simples, por assim dizer o único delito a aflorar no Tribunal do Júri, reparamos que a pena máxima de vinte anos, é superior ao triplo da pena mínima, de seis anos; no homicídio qualificado, a pena máxima eleva-se a trinta anos, duas vezes e meia maior do que a pena mínima, de doze anos.

Não deixa de ser razoável, portanto, o critério atual, submentendo a aplicação da pena, pelo Magistrado, ao voto dos Jurados, responsáveis, afinal, pela condenação do réu.

Por derradeiro, no que toca aos pontos nevrálgicos da instituição do Júri, tudo será como antes, até melhor estudo. A lista anual de Jurados prosseguirá a ser elaborada nos moldes atuais, sem a necessária democratização (cf. Capítulo VI, item 2, supra). Entretanto, repetimos, seria de melhor alvitre, que o jurado sorteado em determinado ano não pudesse funcionar mais durante aquele mesmo ano, só participando da listagem no ano seguinte, com o objetivo de evitar que um jurado possa funcionar três ou quatro vezes no mesmo calendário. Proibido também deverá ser que um jurado faça parte da lista de outro Tribunal, como tem ocorrido, com o desconhecimento muitas vezes dos Magistrados.

Sobre o tema por iniciativa do Ministério da Justiça, a presidência da Escola Nacional da Magistratura designou, em 10.06.1992, uma Comissão de Juristas “para promover estudos e propor soluções visando à simplificação da legislação processual penal”.

Optou a Comissão por exames setoriais do Código de Processo Penal, do que resultaram vários anteprojetos de lei,  publicados no DOU em 30.06.1993, à guisa de receberem sugestões do universo jurídico nacional.

Um desses anteprojetos, relativo ao Tribunal do Júri (o que nos interessa), fez-se acompanhar de longa exposição de motivos assinada por René Ariel Dotti, na qualidade de Relator, enfatizando, entre outras inovações, a extinção da “sala secreta” nos julgamentos e a impossibilidade de recurso versando o mérito, em atenção às decisões unânimes dos Jurados. No dizer do professor Dotti, os princípios constitucionais da publicidade e da soberania do Júri inspiraram tais avanços. Conforme se verá mais adiante, as inovações em tela não lograram vingar na redação final do texto. Sobre as duas inovações já concedemos a nossa opinião, de que não poderá ser negado ao condenado recurso, que busca demonstrar a existência condenatória “contra a prova dos autos”. Talvez, se possa referendar a impossibilidade de recurso quando a Decisão for unânime relativamente ao mérito, determinando a Soberania dos Jurados.

Nesse resumo justifico a minha presença junto ao Museu da Justiça, quando pude, de maneira mais detalhada, justificar os pontos positivos do Tribunal do Júri, sua Legislação atual e a necessidade de uma reforma que permita à sociedade, representada pelos Jurados, buscar de uma forma mais consciente o seu conceito de Justiça.

Esses comentários representam a síntese do que foi exposto aos Eminentes Desembargadores que, pacientemente, ouviram e gravaram as memórias desse advogado que, pela benevolência dos mesmos, ficará eternamente no acervo da Instituição para consulta dos futuros advogados que militarão no Tribunal do Júri.”

No dia 19 de julho de 1978, Clóvis Sahione participou, como advogado de defesa, de um
julgamento quando, contrariando velhos preconceitos conseguiu absolver uma prostituta provando para os Jurados que prostituta tem honra conforme publicou o jornal O Globo no dia 24 de julho daquele ano, reportando-se a brilhante defesa do advogado dizendo, inclusive, que “estava sendo aberta uma das mais bonitas páginas da literatura criminal em todo mundo”.

Para o Dr. Clóvis Sahione, “o Júri é emoção com lógica, ou a lógica com emoção”.

O Fato

Quando o Jornal “O Globo” do dia 24 de julho de 1978 publicou em página inteira, principal do Segundo Caderno sob o título de “A Queda de um Antigo Preconceito” e como subtítulo “Prostituta tem Honra”, estava sendo aberta uma das mais bonitas páginas da literatura criminal em todo o mundo. Pela primeira vez na história da humanidade a Justiça, na hipótese, o Tribunal do Júri, decidiu que “Prostituta tem honra”.

O julgamento ocorreu no IV Tribunal do Júri, presidido pelo Magistrado José Carlos Watzl, hoje Desembargador e Presidente da Primeira Câmara Criminal do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro. A acusação estava representada pelo Promotor de Justiça Dr. Gil Castelo Branco.

Entre os jurados se encontrava um ator da TV Globo, também advogado, Luiz Gaetano Magnelle.

A Decisão foi unânime, embora houvesse réplica e tréplica, tendo os assistentes, quando do resultado, batido palmas de pé, fazendo com que o magistrado afirmasse no microfone que, “não se bate palmas em Tribunal do Júri”, “mas eu também vou bater palmas” e o fez.

O fato aconteceu no dia 22 de dezembro de 1977, quando a prostituta Lucia Helena da Silva, 23 anos, se encontrava no Restaurante “Saveiros”, na Praça Mauá, fora do “trotoir”. O dia era uma sexta-feira, e pela data, “véspera de Natal”. Ela estava jantando sozinha quando adentraram quatro homens engravatados, que começaram a provocá-la fazendo comentários à distância, sentados que estavam no restaurante, que possuía um balcão redondo, onde todos os comensais ali sentados faziam refeições. Lucia Helena, reagindo às brincadeiras inaceitáveis, embora prostituta da Praça Mauá.

Um deles, Carlos Fernando Pinto de Almeida levantou-se e dirigiu-se a ela, sentando ao seu lado e dizendo frases que, mesmo prostituta não as aceitariam. Pediu que parasse, não foi aceita, e ante a agressão verbal continuada que lhe, mesmo prostituta, a ofendia, principalmente por não estar “trabalhando”, fez com que reagisse, ameaçando o contendor com uma garrafa de refrigerante. O homem engravatado, deu-lhe uma bofetada no rosto, violentíssima, que a fez por momentos tontear-se. Rapidamente meteu a mão entre as pernas e tirou o canivete espanhol e lhe enfiou na camisa engravatada, a altura do peito, do ofensor. Era um policial que tomava posse na primeira Delegacia da Praça Mauá.

Presa pelos outros policiais, foi levada à carceragem da Praça Mauá, pelo crime terrível de ter esfaqueado um policial.

Colocada nua numa cela, véspera de natal.

Processada, o processo foi distribuído ao IV Tribunal do Júri que estava sendo presidido naquela época pelo já citado Desembargador José Carlos Watzl.

O júri, repeto, se realizou no dia 19 de julho de 1978. Entre as testemunhas do Julgamento, na memória que começa a fraquejar, se encontra a Eminente Defensora Pública, Cecy Santoro, que eu a chamo de “a testemunha”.

Esse processo deu início a uma série de outros júris, culminando com o da atriz Dorinha Duval que tomou conhecimento desse julgamento pelas páginas do Jornal “O Globo”. Não se pode deixar de citar que Dorinha Duval havia sido prostituta também o que faria uma ligação neurótica. Esta afirmação de que Dorinha teria sido prostituta se encontra nos autos do processo que respondeu por ter matado seu marido. O fato foi confessado pela própria e publicado no jornal “O Globo” página inteira, antes do seu julgamento.

A Defesa

Acredito que o ponto alto da defesa, e que fez com que os jurados, chorando, absolvessem por legítima defesa da honra da prostituta, foi a maneira como se desenvolveu o julgamento. A acusação violentíssima, feita por um promotor experiente e talentoso como Gil Castelo Branco, buscava colocar a prostituta como uma figura inaceitável, que vende o seu corpo, e traria consigo o sentimento pejorativo.

A defesa, precisou, ante a distância fria e calculada dos jurados e a prostituta acusada, fazer ver aos juízes que ali não se encontrava uma profissional, mas antes de tudo um ser humano. E assim buscou aproximação:

“Se nós fossemos julgar hoje, um médico, seria mais fácil entrosá-lo com os fatos do processo? Sim, pois sempre temos um médico na família, seja nosso pai, irmão, filho, ou mesmo aquele médico que atende quando nós precisamos.

Quando a palavra Médico surge, imediatamente, na computação eletrônica de nosso cérebro ligada ao inconsciente e ao coração, surge a imagem do mesmo, que pode ser em forma de santo homem, semi-deus, charlatão, curandeiro, de acordo com a experiência que nós tivemos. E assim, de acordo com essa experiência, seria mais fácil fazer o julgamento ligando a figura do nosso médico ao processo.

Se nós fossemos julgar um advogado, da mesma forma temos um advogado na família, seja pai, irmão, ou filho ou ainda, o advogado que todos nós precisamos por estarmos sempre discutindo relações jurídicas. E rapidamente, a palavra advogado surge do inconsciente trazendo fatos à tona, fazendo uma figura humana, defensora dos pobres, defensor das leis, ou estelionatário, de acordo com a experiência que nós tivemos. E aí, seria mais fácil que nós ligássemos a figura do acusado na hipótese advogado, da mesma forma que anteriormente médico, com os fatos do processo.

E assim por diante, surgiriam nas nossas mentes a figura dos engenheiros, do professor, do dentista, seja qual for a profissão daquele que fosse ser julgado, pois sempre teríamos em nossas vidas a presença desses profissionais.

E se nós fóssemos julgar uma prostituta? Os jurados tem mãe prostituta? Irmã prostituta? Filha prostituta? Amigas Prostitutas? Se seria fácil, ligar o perfil do homem que vai ser julgado ao processo, e se fosse alguém que de alguma forma conhecêssemos, tornaria o trabalho mais fácil. Mas se fosse alguém que não conhecêssemos, nem pelo seu modo de viver, seria muito mais difícil, o que acontece com a prostituta, por não termos intimidade, nem familiar, nem sentimental, nem por afinidade, àquele ser humano.

1978, tão longe, e tão perto.

E se não tem maiores intimidades com as prostitutas, seja através de laços familiares ou laços de amizade, permitam que eu fale da minha prostituta, para que assim o fazendo, se aceitarem, façam a ligação desse ser humano aos fatos do processo e aí seria mais fácil ou será mais fácil nós chegarmos a um ato de Justiça.

“A minha prostituta não foi a mulher que eu possui pagando. Não. A minha prostituta surgiu na minha vida quando eu tinha 12 anos de idade. Eu era magro, pálido, esquálido, feio, e estudava no colégio grande chamado Instituto Lafayette na Tijuca. Perpendicular à rua Hadock Lobo uma rua chamada Aristides Lobo. Nessa rua o número 34, a Casa das Protitutas. Eu tinha 12 anos de idade, estava no segundo ano ginasial, e a minha turma era formada por colegas mais altos, mais desenvolvidos, mais saudáveis ou mais velhos, não me lembro. O que eu me lembro é que no sábado, quando as aulas acabavam mais cedo, 2 hs. da tarde, esses colegas mais saudáveis ou mais repetentes, em vez de irem para a casa, se dirigiam à rua Aristides Lobo e ali ficavam horas, num encontro que à eles já parecia familiar. Na segunda-feira estavam todos no pátio em círculos, ouvindo as histórias extraordinárias que eles contavam, de uma mulher que os fazia alcançar os orgasmos sem que por ela tivessem amor, sentimentos, sequer afinidades. Essa é a mulher chamada de prostituta. Nesse momento eu comecei a idealizar a minha prostituta, essa mulher extraordinária, capaz de fazer com que meus colegas alcançassem o maior prazer físico do homem, sem sequer saber o seu nome, seu caminhar, sem ter amor, sentimentos, afinidades, repetimos.

Não sei porque a idealizei loura, louríssima. Vestida de dourado. Perfumadíssima. Teria que sê-lo, para embriagar os meus colegas através do perfume generoso. Jóias. Sapatos altos. E os cabelos em forma de coque. Era a minha prostituta, meu sonho de mulher, a minha fantasia.

Um sábado as aulas acabaram mais cedo, o professor faltou,  atravessei a rua Hadock Lobo, na igreja dos Capuchinhos para esperar meu bonde chegar. Ao meu lado outros colegas também esperavam a sua condução. De repente, começou o zum-zum-zum –

– “lá vem a prostituta” –

– “la vem a prostituta”.

Perdi um, dois ou três bondes. Não sei quantos. Estava emocionado, porque iria encontrar a minha fantasia ou a mulher dos meus sonhos. Acho que até me escondi embaixo dos ombros mais altos dos colegas para senti-la quando chegasse primeiro pelo perfume, embriagador. Quando ela chegou não havia sentido nenhum perfume. Quando a olhei não vinha vestida de dourado, mas de chita, amarela. Não tinha sapatos altos, eram sandálias franciscanas. Não vi o brilho de jóias. Na mão uma sacola de feira e os cabelos não eram louros, estavam em forma de coque mas eram preto e branco como os da minha mãe. Nesse dia eu compreendi que uma prostituta é apenas uma mulher igual a qualquer outra mulher, apenas vende seu corpo. Aprendi muito mais com a vida, aprendi com a própria solidão, porque nenhum homem pergunta – “qual o seu nome?”, “De onde vens?”, “Para onde vais?” Apenas perguntam: “Quanto custa?” “O que fazes?”

Essa é a mulher que os senhores irão julgar e não outra mulher, fruto de um sentimento pejorativo causado por livros, histórias, mal contadas, televisão punitiva.

Daí para frente, senti que os jurados aceitaram o perfil que eu fiz da mulher – prostituta – aceitaram e julgaram os fatos de acordo com esse mesmo perfil, fazendo ser absolvida por LEGÍTIMA DEFESA DA HONRA DA PROSTITUTA, PELA PRIMEIRA VEZ NO MUNDO, FAZENDO CAIR PRECONCEITOS.