Sobre a legalidade da importação de medicamentos sem registro na ANVISA – aspectos cíveis e criminais.

3 de novembro de 2015

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No último mês de junho, por decisão monocrática, foi provido o Recurso Especial 1.534.520, eximindo uma operadora de plano de saúde do fornecimento, ao segurado, de medicamento não registrado pela ANVISA.

Ocorre, no entanto, que a decisão trazida à baila, cujos termos não refletem o posicionamento majoritário das Cortes superiores, em especial, do Supremo Tribunal Federal, baseia-se em conclusão equivocada sobre a ilegalidade da importação de medicamentos sem registro no órgão sanitário competente. Deve-se destacar, inclusive, que a mencionada decisão não restou objurgada pela parte recorrida, uma vez que abrangia apenas a tutela antecipada concedida na origem e, àquela altura, já havia sobrevindo sentença de mérito, a qual julgara totalmente procedente a sua pretensão. Portanto, sem a interposição de agravo regimental, não houve confirmação ou reforma dessa tese pelo colegiado da Turma.

Em suma, sobre o dever dos planos de saúde, a decisão ora discutida aduziu que “essa obrigação não se impõe na hipótese em que o medicamento recomendado seja de importação e comercialização vetada pelos órgãos governamentais, porque o Judiciário não pode impor a operadora do plano de saúde que realize ato tipificado como infração de natureza sanitária, previsto no art. 66 da Lei nº 6.360/76, pois isso significaria, em última análise, a vulneração do princípio da legalidade previsto constitucionalmente”.

Tal fundamento, embora pareça legalista, não se sustenta diante da simples análise das regras atuais para importação de medicamentos sem registro na ANVISA.

Em 20 de novembro de 2014, motivada pela grande repercussão na mídia acerca da importação do “canabidiol” – um derivado da maconha usado para fins medicinais -, a ANVISA divulgou em seu sítio[1] na internet nota de esclarecimento sobre a importação de medicamentos sem registro. Destaca-se abaixo a transcrição do seguinte trecho:

“Com o objetivo de esclarecer sobre o procedimento de importação de medicamentos controlados sem registro, a Anvisa elaborou um tutorial disponibilizando as orientações gerais sobre como solicitar a autorização de importação. De acordo com a legislação nacional é possível importar produtos sem registro, desde de que seja para uso pessoal.

Na mesma nota, a agência detalhadamente informa todos os requisitos e documentos necessários à solicitação de importação de medicamento sem registro, eis que tal pedido necessita estar apoiado por uma prescrição e um laudo médico que indiquem a necessidade e benefício do medicamento para o paciente, hipótese em que caberá ao médico a responsabilidade pela indicação do produto.

Portanto, a importação de medicamentos não registrados na ANVISA pode ser feita desde que, para uso pessoal, com base em prescrição e laudo médico emitidos por profissionais habilitados, o que não implicará em qualquer violação de norma vigente do nosso ordenamento jurídico.

Especificamente com relação à Lei n.º 6.360/76, citada na decisão referida, necessários se fazem alguns esclarecimentos, a fim de demonstrar a sua inaplicabilidade na espécie.

Primeiramente, destacamos o seu artigo 10, segundo o qual “é vedada a importação de medicamentos, drogas, insumos farmacêuticos e demais produtos de que trata esta Lei, para fins industriais e comerciais, sem prévia e expressa manifestação favorável do Ministério da Saúde”.

Como se vê, a proibição em questão alcança tão somente a importação de medicamentos sem registro para fins industriais e comerciais, não englobando, por óbvio, os casos de importação para uso pessoal, baseada em laudo médico, sobretudo quando a sua prescrição, tal qual ocorre em muitos dos casos, apresenta-se como única e última alternativa de tratamento ao paciente.

Note-se que o artigo 12 da mesma lei, que encabeça o “TÍTULO II – Do Registro”, ao dispor que “nenhum dos produtos de que trata esta Lei, inclusive os importados, poderá ser industrializado, exposto à venda ou entregue ao consumo antes de registrado no Ministério da Saúde”, deve necessariamente ser interpretado à luz dos dispositivos anteriores.

Logo, o que os dois dispositivos acima destacados determinam é a vedação da industrialização e comercialização de medicamentos sem registro, incluindo aqueles importados. Isso, repita-se, nada tem a ver com a importação para uso pessoal, com base em prescrição médica, de produto ainda sem registro na agência sanitária.

Seja pela clareza das diretivas contidas no próprio sítio da ANVISA na internet, seja pela correta interpretação da Lei n.º 6.360/76, fato é que não existe qualquer infração de natureza administrativa decorrente da importação de produto sem registro, quando o mesmo se destina ao uso próprio.

Sob o ponto de vista criminal, também não se pode dizer que o ingresso no território nacional de medicamento não registrado na ANVISA sempre constituirá crime, notadamente o previsto no Art. 273, § 1º-B, I, do Código Penal Brasileiro, qual seja a importação de medicamento sem registro.

Isto porque, conforme posicionamento pacífico dos nossos Tribunais[2], quando o medicamento é destinado ao uso pessoal, mesmo ausente o respectivo registro na ANVISA, a conduta de importá-lo não representará lesividade à saúde pública, requisito indispensável à configuração do delito. O risco à saúde pública, bem jurídico protegido pela norma penal incriminadora, decorre da fabricação e venda indiscriminada de medicamento sem registro, hipótese diametralmente oposta àquela tratada na decisão que serve de mote ao presente artigo.

Tampouco há que se falar em crime de contrabando, eis que o procedimento de importação, tal qual informado pela própria ANVISA em casos de importação de medicamento para uso próprio, é necessariamente submetido às autoridades fazendárias, que aplicam as incidências tributárias cabíveis em cada caso. Ou seja, trata-se de um processo regular, lícito e público, sem qualquer risco de danos à saúde pública e, consequentemente, isento de conotação penal.

Caso houvesse alguma ilegalidade na importação de medicamentos sem registro na ANVISA, seus diretores haveriam de ser criminalmente responsabilizados, por incitação ao crime, na medida em que veiculam no sítio eletrônico da Agência, o passo a passo de como deve ser procedida essa importação.

A pretensa criminalização da importação de medicamento sem registro na ANVISA, para uso pessoal, toma dimensões ainda mais absurdas ao se constatar a maciça atuação estatal em torno desse procedimento. Isso porque, além das recomendações expressas promovidas pela Agência Reguladora, no âmbito da Receita Federal, em julho do presente ano, passaram a vigorar as novas regras que isentam de cobrança de impostos esses medicamentos importados por pessoas físicas, sem registro, o que acena, uma vez mais, não apenas à legalidade do procedimento, como, principalmente, o reconhecimento do Poder Público quanto à necessidade dessa prática.

Assim, a importação de medicamento sem registro, quando constitui único tratamento possível e eficiente ao paciente, traduz-se em obrigação decorrente de contrato firmado pelos planos de saúde, que se comprometem a fornecer tratamento integral aos seus segurados. A negativa de assim proceder, reflete, em verdade, interesses comerciais das grandes corporações de saúde, que jamais se teve notícia terem sido processadas ou responsabilizadas por garantir aos pacientes um tratamento prescrito por médico, com base em laudo médico fundamentado.

Sabe-se que o rápido avanço da medicina impede que as agências reguladoras mantenham seus registros atualizados na mesma velocidade em que surgem novos tratamentos nos centros de pesquisa de ponta existentes no exterior, razão pela qual a legislação pertinente, que remonta a década de 70, deve ser interpretada de modo a preservar a segurança e a saúde da população em geral – protegendo-a da comercialização ostensiva de produtos ainda não avalizados pelos órgãos competentes, e, ao mesmo tempo, preservando a dignidade da pessoa humana cuja vida depende de um tratamento sem registro, porém avalizado e prescrito por um médico habilitado.

Os constantes e crescentes avanços tecnológicos na área da saúde, somados ao também crescente acesso à Justiça pela população, fará com que o Judiciário se depare cada vez mais com essa questão, de modo que, muito em breve, espera-se a pacificação do tema pelos Tribunais Superiores, cujo deslinde inevitavelmente passará pelo enfrentamento das questões aqui aduzidas, não se olvidando, contudo, do impositivo sopesamento dos direitos tutelados, que, à conta dos demandantes que buscam por esses medicamentos, é o sagrado e consagrado direito constitucional à vida.