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Sentença assegura empresa do ramo de tabaco a manter livre atividade econômica

31 de março de 2006

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EMENTA

CONSTITUCIONAL. ADMINISTRATIVO. TRIBUTÁRIO. INDÚSTRIA DE TABACOS. DECRETO-LEI 1593/77 COM A REDAÇÃO DADA PELA  LEI 9.822/99. INCONSTITUCIONALIDADE.

A Constituição Federal de 1988 no seu art. 170 prescreve os princípios regentes da ordem econômica, fundada expressamente na livre iniciativa, e a todos assegurando o livre exercício de qualquer atividade econômica independentemente de autorização de órgãos públicos, salvo os casos expressos em lei.

Dívida tributária deve ser cobrada na forma da lei através da Execução Fiscal.

A jurisprudência do Supremo Tribunal Federal é no sentido de não admtir imposição de restrições, destinadas a compelir o contribuinte inadimplente a pagar o tributo, em decorrência do caráter gravoso e indireto da coerção, por inviabilizar o livre exercício da atividade econômica.

O Decreto-lei 1593/77 não foi recepcionado pela vigente Constituição Federal, porque se contrapõe ao disposto no seu art. 170.

Procedência dos pedidos, para assegurar a autora o direito de continuar funcionando.

SENTENÇA

RELATÓRIO

AMERICAN VIRGÍNIA INDÚSTRIA, COMÉRCIO, IMPORTAÇÃO E EXPORTAÇÃO DE TABACOS LTDA, devidamente qualificada na petição inicial, propôs a presente demanda do rito ordinário, com pedido de antecipação dos efeitos da tutela, em face da UNIÃO FEDERAL, objetivando assegurar o direito ao livre exercício da atividade econômica lícita, afastando a aplicabilidade do disposto no art. 2º, inciso II do Decreto-lei nº 1.593/77, com a redação dada pela Lei nº 9.822/99, que autoriza o cancelamento de registro especial, declarando, ainda, a inexistência de relação jurídica que permita à ré a cassar os dois registros especiais da autora, bem como, declarar a inexistência de relação jurídica entre a pessoa jurídica (autora) e a pessoa física do sócio.

Alega que é empresa do ramo de tabaco, autorizada a fabricar, comercializar, importar e exportar produtos derivados do tabaco, com capital 100% nacional, atuante no mercado de tabaco, desde meados do ano de 1996, sendo que, para o exercício dessa atividade, exige-se pelo Decreto-lei nº 1.593/77 o registro especial a ser concedido pela Secretaria da Receita Federal. Sustenta que o ato configurador do justo receio da aplicação da mencionada lei decorre da intimação feita pela Delegacia da Receita Federal, datada de 1º de setembro de 2005, pela qual a autora foi compelida a regularizar a situação fiscal em relação ao disposto na Representação Fiscal que deu origem ao PA nº 10735.002379/2005-74, no prazo de dez (10) dias, sob pena de cancelamento do registro especial, com fundamento no art. 2º, inciso II do Decreto-Lei nº 1.593/77, motivo pelo qual ajuizou ação cautelar, sob o nº 2005.5110005830-5, distribuída a este Juízo.

Diz ainda, que o dispositivo supramencionado do Decreto-lei, já indicado, não foi recepcionado pela Constituição Federal de 1988, e que a sua inconstitucionalidade já foi reconhecida pelos nossos Tribunais Federais.

O pedido veio instruído com os documentos essenciais à propositura da ação (fls. 48/1.508).

Decisão deste Juízo, indeferindo o pedido de antecipação dos efeitos da tutela, uma vez que foi deferida a liminar na ação cautelar e prolatada a sentença de mérito, julgando procedente o pedido (fls. 1.511).

Citada, a União Federal contestou o pedido, argüindo, preliminarmente, a litispendência, e requerendo, no mérito, a sua improcedência (fls. 1.514/1.530).

Réplica (fls. 1.551/1.573). A peça veio instruída com documentos (fls. 1.574/1.639).

Providências preliminares a tempo e modo.

É o relatório com a síntese das principais ocorrências processuais.

DECIDO

Fundamentação

O processo encontra-se suficientemente instruído, possibilitando o seu julgamento, por dispensar a produção de qualquer prova ulterior, enquadrando-se a hipótese na fase de julgamento antecipado da lide, prevista no art. 330, inciso I, do Código de Processo Civil.

Preliminarmente

Prima facie, rejeito a preliminar de litispendência.

Nas palavras do ilustre processualista Moacyr Amaral Santos, “litispendência significa lide pendente em juízo. Proposta a ação, pela qual o autor formula uma pretensão, e citado o réu, configura-se uma lide pendente de decisão. As partes estarão sujeitas ao processo e ao que nele for decidido. Dessa sujeição das partes ao processo resulta o princípio da unicidade da relação processual pelo qual se vedam dois processos sobre a mesma lide, entre as mesmas partes. E se vedam a fim de evitar sentenças contraditórias”.

Assim, a litispendência ocorre sempre que se propõe ação idêntica a outra que já esteja em curso. Configurar-se-á, pois, sempre que o autor, invocando o mesmo fato, deduzir contra o réu o mesmo pedido já formulado em outra ação, pendente de decisão judicial. Desse modo, ambas as ações deverão ter as mesmas partes; a mesma causa de pedir, tanto próxima quanto remota; e o mesmo pedido, mediato e imediato.

A ré, em sua peça de bloqueio, alegou a litispendência em razão da impetração de Mandado de Segurança, autuado sob o nº 2005.34.00.027391-4, em curso na 9ª Vara Federal do Distrito Federal.  No caso sub examine, não ocorreu a litispendência. Nesta demanda do rito ordinário, postula-se que a ré, Fazenda Nacional, abstenha-se de proceder ao cancelamento do registro especial, bem como, declare-se a inexistência de relação jurídica entre a pessoa jurídica (autora) e a pessoa física do sócio, enquanto no indigitado mandado de segurança, impetrado em face do Coordenador-Geral de Fiscalização Tributária da Receita Federal, alega-se justo receio de que ocorra violação de seus direitos com o cancelamento do aludido registro, disposto na legislação infraconstitucional pertinente. Este foi, inclusive, o entendimento do Egrégio Tribunal Regional Federal, na decisão monocrática proferida nos autos do Agravo de Instrumento nº 2005.02.01.012734-8, colacionada aos autos da ação cautelar, às fls. 623/625.

No tocante à alegação de litispendência em relação às demais ações, não merece prosperar, também, vez que a ré, em sua peça de resistência, não juntou aos autos cópias das petições iniciais das referidas ações.

Por outro lado, para que não haja qualquer dúvida, a autora juntou aos autos cópia da sentença homologatória de desistência do Mandado de Segurança ajuizado na 9ª Vara Federal da Seção Judiciária do Distrito Federal.

Sendo assim, encontrando-se presentes as condições da ação e os pressupostos processuais necessários ao desenvolvimento válido e regular do processo, passo a analisar o mérito da presente demanda.

NO MÉRITO

A controvérsia que constitui o objeto desta demanda é – a rigor, matéria de Direito e de Fato, este provado documentalmente, consistindo a sua solução na inteligência dada aos preceitos constitucionais e legais, na espécie, considerados violados.

Com efeito, a autora objetiva provimento jurisdicional, no sentido de assegurar o direito ao livre exercício da atividade econômica lícita, afastando a aplicabilidade do disposto no art. 2º, inciso II do Decreto-lei nº 1.593/77, com a redação dada pela Lei nº 9.822/99, que autoriza o cancelamento de registro especial, bem como, objetiva a declaração de inexistência de relação jurídica entre a pessoa jurídica (autora) e a pessoa física do sócio.

No presente caso, a autora se insurge em razão da intimação oportunizada, no prazo de 10 (dez) dias, para que ela regularizasse sua situação fiscal em relação ao disposto na Representação Fiscal que originou o processo administrativo nº 10735.002379/2005-74 ou apresentasse seus esclarecimentos cabíveis, sob pena de cancelamento do registro especial de fabricante de cigarros, conforme o disposto no art. 2º do Decreto-lei nº 1.593/77, com redação dada pela Medida Provisória nº 2.158-35/2001. Para tanto, alega que não houve recepção do dispositivo supramencionado, tratando-se, ainda, de inconstitucionalidade material e de forma de cobrança indireta de tributos, completamente repudiada pelos Tribunais Superiores.

Ora, a questão do caso em tela, tal como ventilada, é bem clara.  O entendimento da autora é dissonante com a exigência, disposta no Decreto-lei nº 1.593/77, do prévio registro especial perante a Secretaria da Receita Federal, condicionante para que a autora possa exercer a sua atividade econômica: fabricação e comercialização de cigarros, dentre outros, conforme se depreende do objeto social (contrato social, às fls. 51 e 55), o que contraria a ordem constitucional vigente.

Com efeito, no caso dos fabricantes de cigarro, o registro especial é exigido pelo Decreto-lei nº 1.593/77, dele decorrendo a constatação de que o registro se constitui em verdadeira condição para o exercício da atividade econômica ligada à fabricação e comercialização de cigarros, porque, sem ele, não se fornecem os selos de controle e, sem selagem, os produtos sequer podem sair dos estabelecimentos industriais, ou a estes equiparados, muito menos serem vendidos, expostos à venda ou, mesmo, mantidos em depósito, o que acarretará, inegavelmente, o fechamento da sociedade empresária. Desta forma, não se pode olvidar que tal registro tem natureza de verdadeira autorização, concedida pelo Estado, para que as empresas que fabricam e comercializam cigarros possam funcionar.

Contudo, o art. 170, da Constituição da República, prescreve os princípios regentes da ordem econômica, fundada expressamente na livre iniciativa (caput) e a todos assegurando o livre exercício de qualquer atividade econômica, independentemente de autorização de órgãos públicos, salvo os casos expressos em lei. Tal exceção não contempla o dispositivo do Decreto-lei nº 1.593/77.

Neste passo, extravasar esses limites, importa em negação ao princípio da livre iniciativa. Neste sentido, trago à colação o elucidativo aresto do Tribunal Regional Federal da 1ª Região, verbis:

“CONSTITUCIONAL E ADMINISTRATIVO. INDÚSTRIA CIGARREIRA. REGISTRO ESPECIAL. DECRETO-LEI 1.593/77. INCONSTITUCIONALIDADE.

1. Não é lícito à lei fazer depender de autorização de órgão público atividades não sujeitas à exploração pelo Estado nem a uma especial regulação por parte do Poder de Polícia.

2. É inconstitucional o Decreto-lei 1.593/77 na parte em que condiciona o funcionamento das fábricas de cigarros a prévio registro especial, a ser efetuado pela Secretaria da Receita Federal, em razão de evidente colisão com o cânone do art. 170, parágrafo único.

3. Apelação e remessa desprovidas”.

(AMS 94.01.00235-5/DF; Relator Juiz José Henrique Guaracy Rebêlo (Conv.); Primeira Turma Suplementar; DJ Data 25.02.2002; pág. 104)

Em adição, cabe sopesar que a Constituição Federal (art. 170) estabelece que a atividade econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social.

A Constituição Federal, ao proclamar o princípio da livre iniciativa como fundamento da ordem econômica, atribui à iniciativa privada o papel primordial na produção ou circulação de bens ou serviços. A livre iniciativa, dessa forma, constitui a base sobre a qual se constrói a ordem econômica, cabendo ao Estado apenas uma função supletiva, porque a Constituição determina que “(…) a exploração direta da atividade econômica pelo Estado só será permitida quando necessária aos imperativos da segurança nacional ou a relevante interesse coletivo (…)” (art. 173).

Assim, por exemplo, a tentativa da ré, no caso em questão, de impor que o sujeito passivo da obrigação tributária quite qualquer débito, que aquela considere existente, através de expedientes administrativos, que impeçam o seu regular funcionamento, viola direitos consagrados pela Constituição Federal brasileira.

Remeta-se, por seu turno, à lição do eminente Professor Ives Gandra Martins, “in” Repertório IOB de jurisprudência, ementa nº 1/2555:

(…)

“Por outro lado, o art. 170, parágrafo único, interdita a criação de obstáculos ao exercício de qualquer atividade, ofertando, no máximo à lei, condições de capacitação.

Ora, as sanções impostas administrativamente representam verdadeira vedação ao exercício de qualquer atividade às pessoas elencadas na lista da ‘opinião oficial’. A Receita Federal violenta o art. 170, parágrafo único, representando o Decreto referido, clara, cristalina, indiscutível e inequívoca inconstitucionalidade à luz da Carta Máxima”.

Seguindo a linha de raciocínio acima exposta, ensina o Prof. José Afonso Da Silva, que:

“A Constituição declara que a ordem econômica é fundada na valorização do trabalho humano e na iniciativa privada. Que significa isso? Em primeiro lugar, quer dizer precisamente que a Constituição consagra uma economia de mercado, de natureza capitalista, pois a iniciativa privada é um princípio básico da ordem capitalista. Em segundo lugar, significa que, embora capitalista, a ordem econômica dá prioridade aos valores do trabalho humano sobre todos os demais valores da economia de mercado. Conquanto se trate de declaração de princípio, essa prioridade tem o sentido de orientar a intervenção do Estado, na economia, a fim de fazer valer os valores sociais do trabalho que, ao lado da iniciativa privada, constituem o fundamento não só da ordem econômica, mas da própria República Federativa do Brasil (art.1o, IV).”

Não pode assim, a Administração Pública, pretender impedir o exercício de atividade econômica por razões outras que não a estritamente ligadas à própria qualificação profissional. Pelo que, deve ser imediatamente afastada a pretensão do ente tributante, de ingressar naquela seara.

O Supremo Tribunal Federal, analisando questão que envolvia a discussão em torno da possibilidade constitucional de o Poder Público impor restrições, ainda que fundadas em lei, destinadas a compelir o contribuinte inadimplente a pagar o tributo e que culminava, em decorrência do caráter gravoso e indireto da coerção utilizada pelo Estado, por inviabilizar o exercício, pela empresa devedora, de atividade econômica lícita, DECIDIU serem indevidas tais sanções políticas ou indiretas em matéria tributária.

Na ocasião, foi posto em destaque o exame da legitimidade constitucional de exigência estatal que erigiu a prévia satisfação de débito tributário em requisito necessário à outorga, pelo Poder Público, de autorização para a impressão de documentos fiscais. Assim, ficou consignada a ementa do RE 37.4981-RS, julgamento 28/03/2005, cujo relator foi o ministro Celso De Mello, verbis:

EMENTA: “Sanções políticas no direito tributário. Inadmissibilidade da utilização, pelo poder público, de meios gravosos e indiretos de coerção estatal destinados a compelir o contribuinte inadimplente a pagar o tributo (súmulas 70, 323 e 547 do STF). Restrições estatais, que, fundadas em exigências que transgridem os postulados da razoabilidade e da proporcionalidade em sentido estrito, culminam por inviabilizar, sem justo fundamento, o exercício, pelo sujeito passivo da obrigação tributária, de atividade econômica ou profissional lícita. Limitações arbitrárias que não podem ser impostas pelo Estado ao contribuinte em débito, sob pena de ofensa ao “substantive due process of law”. Impossibilidade constitucional de o estado legislar de modo abusivo ou imoderado (RTJ 160/140-141 – RTJ 173/807-808 – RTJ 178/22-24). O poder de tributar – que encontra limitações essenciais no próprio texto constitucional, instituídas em favor do contribuinte – “não pode chegar à desmedida do poder de destruir” (Min. Orosimbo Nonato, RDA 34/132). A prerrogativa estatal de tributar traduz poder cujo exercício não pode comprometer a liberdade de trabalho, de comércio e de indústria do contribuinte. A significação tutelar, em nosso sistema jurídico, do “Estatuto Constitucional do Contribuinte”. Recurso Extraordinário conhecido e provido”.

As chamadas sanções políticas, para HUGO DE BRITO MACHADO (Sanções Políticas no Direito Tributário. Revista Dialética de Direito Tributário. nº 30. p. 46/47), correspondem às restrições ou proibições impostas ao contribuinte como forma indireta de obrigá-lo ao pagamento do tributo, tais como a interdição do estabelecimento, a apreensão de mercadorias, o regime especial de tributação; a recusa de autorização para imprimir notas fiscais; a inscrição em cadastro de inadimplentes com as restrições daí decorrentes; a recusa de certidão negativa de débito quando não existe lançamento consumado contra o contribuinte; a suspensão e até o cancelamento da inscrição do contribuinte no respectivo cadastro, entre muitos outros.

Procede anotar, com base no entendimento do ministro Celso De Mello, acima, já exposto, que o Supremo Tribunal Federal, tendo presentes os postulados constitucionais que asseguram a livre prática de atividades econômicas lícitas (CF, art. 170, parágrafo único), de um lado, e a liberdade de exercício profissional (CF, art. 5º, XIII), de outro – e considerando, ainda, que o Poder Público dispõe de meios legítimos que lhe permitem tornar efetivos os créditos tributários -, firmou orientação jurisprudencial, hoje consubstanciada em enunciados sumulares (Súmulas 70, 323 e 547), no sentido de que a imposição, pela autoridade fiscal, de restrições de índole punitiva, quando motivada tal limitação pela mera inadimplência do contribuinte, revela-se contrária às liberdades públicas ora referidas (RTJ 125/395, Rel.min. Octavio Gallotti).

O teor destes enunciados sumulares está assim disposto, verbis:

70.  É inadmissível a interdição de estabelecimento como meio coercitivo para cobrança de tributo.

323. É inadmissível a apreensão de mercadorias como meio coercitivo para pagamento de tributos.

547. Não é lícito à autoridade proibir que o contribuinte em débito adquira estampilhas, despache mercadorias nas alfândegas e exerça suas atividades profissionais.

Nota-se assim, que as chamadas sanções políticas constituem verdadeira afronta ao livre exercício da atividade econômica (art. 170, parágrafo único da CF), bem como a liberdade de exercício profissional (art. 5º, XIII da CF), revelando-se um abuso do poder de tributar, que vem sendo repudiado com todas as forças pelo Supremo Tribunal Federal.

Daí a necessidade de rememorar, sempre, a função tutelar do Poder Judiciário, investido de competência institucional para neutralizar eventuais abusos das entidades governamentais, que, muitas vezes deslembradas da existência, em nosso sistema jurídico, de um “estatuto constitucional do contribuinte”, consubstanciador de direitos e garantias oponíveis ao poder impositivo do Estado (Pet. 1.466/PB, Rel. Ministro CELSO DE MELLO, in “Informativo STF” nº 125), culminam por asfixiar, arbitrariamente, o sujeito passivo da obrigação tributária, inviabilizando-lhe, injustamente, o exercício de atividades legítimas.

Não se pode perder de perspectiva, neste ponto, em face do conteúdo evidentemente arbitrário da exigência estatal ora questionada, o fato de que, especialmente quando se tratar de matéria tributária, impõe-se, ao Estado, no processo de elaboração das leis, a observância do necessário coeficiente de razoabilidade, pois, como se sabe, todas as normas emanadas do Poder Público devem ajustar-se à cláusula que consagra, em sua dimensão material, o princípio do “substantive due process of law” (CF, art. 5º, LIV), eis que, no tema em questão, o postulado da proporcionalidade qualifica-se como parâmetro de aferição da própria constitucionalidade material dos atos estatais, consoante tem proclamado a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal (RTJ 160/140-141 – RTJ 178/22-24, v.g.):

“O Estado não pode legislar abusivamente. A atividade legislativa está necessariamente sujeita à rígida observância de diretriz fundamental, que, encontrando suporte teórico no princípio da proporcionalidade, veda os excessos normativos e as prescrições irrazoáveis do Poder Público”.

Enfim, sempre que houver a possibilidade de se impor medida menos gravosa à esfera jurídica do indivíduo infrator, cujo efeito seja semelhante àquele decorrente da aplicação de sanção mais limitadora, deve o Estado optar pela primeira, por exigência do princípio da proporcionalidade em seu aspecto necessidade.

DA NÃO RECEPÇÃO DO DISPOSITIVO DO DECRETO-LEI Nº 1.593/77 (art. 2º, inciso II)

Com efeito, todas as leis ordinárias e demais normas infraconstitucionais derivam a sua validade na própria Constituição. “O fundamento de validade de uma norma apenas pode ser a validade de uma outra norma” (Teoria Pura do Direito – Hans Kelsen). Com o surgimento de nova ordem constitucional, as leis ordinárias perdem o suporte de validade que lhes dava a Constituição anterior ao mesmo tempo que recebem novo suporte, expresso ou tácito, na Constituição nova. Este é o fenômeno da recepção. Trata-se de um processo abreviado de criação de normas jurídicas, pelo qual a nova Constituição adota as leis já existentes, com elas compatíveis, dando-lhes validade.

Em sendo incompatível com a nova ordem constitucional, ocorre o fenômeno da não recepção, cessando a sua eficácia, uma vez que incompatível com seu fundamento de validade.

Assim, entendo que o dispositivo do Decreto-lei nº 1.593/77, suso mencionado, combatido pela autora, não foi recepcionado pela ordem constitucional vigente, pois viola, inegavelmente, o livre exercício da atividade econômica, consubstanciado no art. 170, parágrafo único, da Constituição Federal de 1988.

Por outro lado, exemplo de sanção tributária claramente desproporcional em sentido estrito é a interdição de estabelecimento comercial ou industrial motivada pela impontualidade do sujeito passivo tributário relativamente ao cumprimento de seus deveres tributários. Embora contumaz devedor tributário, um sujeito passivo jamais pode ver aniquilado completamente o seu direito à livre iniciativa em razão do descumprimento do dever de recolher os tributos por ele devidos aos cofres públicos. O Estado deve responder à impontualidade do sujeito passivo com o lançamento e a execução céleres dos tributos que entende devidos, jamais com o fechamento da unidade econômica.

Ademais, no caso em tela, conforme já fundamentado na ação cautelar nº 2005.5110005830-5, em sentença por mim prolatada, a cessação da atividade econômica da sociedade empresária poderá prejudicar 780 (setecentos e oitenta) empregados com carteira assinada e 1.697 (um mil e seiscentos e noventa e sete), ligados a seus revendedores, e sem falar no abalo familiar, e com a relevante função social que possui na cidade de Duque de Caxias – RJ.

O povo necessita de empregos para que com os salários possam satisfazer suas necessidades. O governo, por sua vez, necessita de tributos e também de empregos. Sem tributos, a máquina administrativa não funciona, e sem empregos para o povo, o governo tem que investir ainda mais para evitar as privações daquele.

Ora, uma sociedade empresária fechada significa desemprego e não arrecadação de tributos, dentre outras péssimas conseqüências. Nesta ordem, vem a tendência da diminuição da coercibilidade, visando à recuperação da empresa, conforme um processo pré-estabelecido pela lei. Este é o escopo com a nova lei de falências.

Inquestionável é a importância de uma empresa para a economia de uma sociedade, sendo que, nos dias atuais, grande parte dos empregos e da produção das riquezas são criadas pela atuação das empresas no contexto regional e mundial.

Tal importância da empresa na economia foi notada pelo Direito Falimentar, detectado que a liquidação de uma empresa provocaria graves conseqüências para a sociedade e o Estado, o Direito Falimentar foi chamado a auxiliar de alguma forma para possibilitar que a empresa fosse mantida em atividade através da elaboração de um plano hábil a reerguê-la economicamente. É a diretriz do Princípio da preservação da Empresa.

No tocante ao pedido de declaração de inexistência de relação jurídica entre a pessoa jurídica (autora) e a pessoa física do sócio, o mesmo merece prosperar. Conforme fls. 56, do contrato social colacionado aos autos, há cláusula consignando que os sócios não respondem subsidiariamente pelas obrigações sociais.

Não há que se falar, no presente caso, na teoria da desconsideração da personalidade jurídica da empresa (teoria que teve origem na jurisprudência norte-americana, lá denominada disregard of legal entity ou lifting the corporate veil), no presente caso, a incidir responsabilidade patrimonial à pessoa física do sócio. Ela não encontra guarida no Direito Tributário.

O Código de Defesa do Consumidor prevê, para o direito do consumidor, hipótese expressa de autorização para desconsideração da personalidade jurídica da empresa (art. 28), quando haja abuso de direito, excesso de poder, infração da lei, fato ou ato ilícito, violação do estatuto ou contrato social, e, nos casos de má administração, falência, estado de insolvência, encerramento ou inatividade da empresa, desde que, em todos os casos, haja detrimento do consumidor. Vale dizer, a personalidade jurídica da sociedade pode ser desconsiderada, quando for obstáculo para o ressarcimento de prejuízos causados aos consumidores. Não é a hipótese dos autos.

Por sua vez, o art. 50, do novel Código Civil, assim dispõe: “em caso de abuso  da personalidade jurídica, caracterizado pelo desvio de finalidade, ou pela confusão patrimonial, pode o juiz decidir, a requerimento da parte, ou do Ministério Público quando lhe couber intervir no processo, que os efeitos de certas e determinadas relações de obrigações sejam estendidos aos bens particulares dos administradores ou sócios da pessoa jurídica”.

Podemos identificar, rapidamente, do exposto, três grandes princípios que devem nortear a aplicação da desconsideração: a) utilização abusiva da pessoa jurídica, no sentido de que a mesma sirva de meio, intencionalmente, para escapar à obrigação legal ou contratual, ou mesmo fraudar terceiros; b) necessidade de se impedir violação de normas de direitos societários; e c) evidência de que a sociedade é apenas um alter ego de comerciante em nome individual, ou seja, pessoa física que age em proveito próprio por meio da pessoa jurídica. Também, não é o caso dos autos.

Desse modo, em outros ramos do Direito, a falta de norma legal expressa poderá ser causa de impedimento da aplicação da desconsideração, como é o caso do Direito Tributário, por exemplo.

O nosso ordenamento jurídico pátrio, por muito tempo, consagrou a doutrina da personificação da sociedade, segundo a qual, a partir do registro do ato constitutivo da sociedade, esta passa a ser uma unidade autônoma inobstante formada por várias pessoas físicas, de forma que a característica principal da pessoa jurídica reside, exatamente, na independência entre e ela e seus componentes, conforme o tradicional princípio da “universitas distat a singulis.” Daí porque, estabelecia o “caput” do art. 20 do Código Civil Brasileiro, de 1916, que:”as pessoas jurídicas têm existência distinta da dos seus membros.”

Decerto, a personalidade da pessoa jurídica não constitui um direito absoluto, por estar sujeita à teoria da fraude contra credores e abuso de direito. Foi para coibir a excessiva personalização das pessoas jurídicas, potencialmente acobertadoras dos abusos e irregularidades perpetradas pelas pessoas dos sócios, que o mundo jurídico elaborou teorias como a da despersonalização da pessoa jurídica.

É relevante registrar o entendimento de Fábio Ulhoa Coelho: “O instituto da pessoa jurídica e, especialmente, o princípio da autonomia patrimonial representam elementos típicos de um direito inserido no sistema de livre iniciativa, de importância basilar para a ordem jurídica do capitalismo. Todavia, essa autonomia patrimonial pode dar ensejo à realização de fraudes, em prejuízo de credores ou de objetivo fixado por lei. Em tais casos, a teoria da desconsideração suspende a eficácia episódica do ato constitutivo da pessoa jurídica, para fins de responsabilizar direta e pessoalmente aquele que perpetrou um ato fraudulento ou abusivo de sua autonomia patrimonial”. No meu entender, entretanto, não vislumbro qualquer ato fraudulento ou abusivo de autonomia patrimonial a ensejar responsabilidade patrimonial da pessoa física do sócio.

Isto porque, a se estabelecer essa teoria está, na verdade, tornando ilimitada a responsabilidade dos sócios (que, neste caso, é limitada, consoante fls. 56) ou acionistas das sociedades para com as dívidas destas, já que a simples ausência de patrimônio da sociedade poderá gerar o alcance do patrimônio dos sócios. E como não poderia deixar de ser, tornar a responsabilidade dos sócios ilimitada, principalmente em sociedades para cujos sócios a lei expressamente atribui limitação ao montante investido, acarretará um custo social imensamente maior do que o prejuízo causado aos credores da sociedade, ainda que trabalhistas, que não tiverem seus créditos honrados, quando do insucesso desta.

Por derradeiro, devo dizer que a Fazenda Pública Federal, por seus nobres e cultos Procuradores da Fazenda, deve agilizar com a maior rapidez possível as Ações de Execução Fiscal que diz haver sido propostas em face da autora, penhorando bens e os levando a leilões ou praça, a fim de receber os seus créditos.

Tudo isto analisado e sopesado, a conclusão é pelo acolhimento dos pedidos.

Com estas considerações, dispendidas fundamentalmente ao disposto no art. 93, inciso IX, da Constituição Federal, nada mais, a meu sentir, precisa ser acrescentado.

DISPOSITIVO

Do quanto ficou exposto, JULGO PROCEDENTES OS PEDIDOS, para o fim especial de afastar a aplicabilidade do art. 2º, inciso. II do Decreto-lei nº 1.593/77, com a redação dada pela Lei nº 9.822/99, uma vez que não foi recepcionado pela Constituição Federal de 1988, assegurando à autora o direito de sua livre atividade econômica, entendimento este já explicitado na ação cautelar nº 2005.5110005830-5, em sentença por mim prolatada, e, para declarar a inexistência de relação jurídica entre a pessoa jurídica (autora) e a pessoa física do sócio, na forma da fundamentação supra.

Declaro extinto o processo com julgamento do mérito, na forma do art. 269, inciso I, do Código de Processo Civil.

Condeno a ré ao pagamento de honorários advocatícios, que fixo em R$ 1.000,00 (hum mil reais), com fulcro no art. 20, § 4º, do Código de Processo Civil.

Custas ex lege.

Publique-se. Registre-se. Intimem-se.

São João de Meriti – RJ, 25 de janeiro de 2006.

 

 

 

 

SÍDNEY  MONTEIRO PERES

Juiz Federal Titular da 4ª Vara