Recurso repetitivo: A interpretação uniforme e a vinculação das decisões judiciais

22 de janeiro de 2019

Compartilhe:

O Direito brasileiro, apesar de preocupado com a uniformização da jurisprudência, não costuma vincular decisões judiciais. Como mecanismo de controle da aplicação dessa uniformização, pela nova perspectiva constitucional, foram admitidos recursos aos tribunais superiores em caso de divergência de interpretação ou negativa de vigência às decisões proferidas pelas cortes superiores.

A preocupação com a divergência jurisprudencial justificou substanciosa modificação na sistemática processual civil, a fim de garantir, por meio dos recursos extraordinários, a uniformização da jurisprudência quando houvesse divergência interpretativa, passando a Corte Suprema e o Superior Tribunal de Justiça (STJ) a terem a função de uniformizar a jurisprudência nacional, tendo em vista a unidade do Direito pátrio e a salvaguarda das leis federais e da Constituição pela melhor interpretação a ser dada pelos órgãos máximos do Poder Judiciário, constitucional e infraconstitucional.

Muito foi criticada a criação dos institutos, uma vez que a atividade interpretativa do juiz e a diversidade cultural tornariam impossível a missão de interpretação uniforme da norma jurídica em um país como o Brasil, marcado pela diversidade regional. Nas palavras de José Afonso da Silva, não há no nosso país diversidade de cultura, mas apenas “aspectos diversos do mesmo sistema cultural”.

Preocupava ainda a ideia de congelamento do Direito pátrio, bem como a submissão cega às decisões, com consequente engessamento da atividade interpretativa do juiz, limitado excessivamente por um sistema de precedentes. Contudo, o que se buscava na realidade era dar à norma jurídica um único sentido entre os vários que se lhe podem atribuir.

A fim de reduzir substancialmente o dilatado número de demandas judiciais que abarrotam o Judiciário, institutos como os recursos repetitivos e as súmulas vinculantes ganharam destaque na tentativa de dar maior efetividade à interpretação uniforme tão almejada pelo sistema recursal constitucional.

A preocupação em observar a jurisprudência pacificada no âmbito das cortes superiores fica clara pela simples leitura do art. 927 do novo Código de Processo Civil (CPC), que impõe aos magistrados respeito às decisões pelos juízes e tribunais nacionais.

Contudo, o que se denota é que foram criados mais institutos para reforma das decisões contrárias à jurisprudência dominante do que uma espécie de condução pelos órgãos inferiores ao entendimento do STJ e do Supremo Tribunal Federal (STF), o que aumentou substancialmente o número de recursos ao invés de diminuí-los.

Na tentativa de interromper o crescimento acelerado do volume de recursos, surgiu dentre outros institutos o recurso repetitivo, com natureza atípica dos demais recursos já conhecidos pela processualística civil.

O novo CPC tem como princípio a valorização e o respeito à jurisprudência e consolidou uma mudança de paradigma, de subjetivo para objetivo, no que toca à recorribilidade. A sistemática dos recursos repetitivos confirma a tendência das cortes superiores de assumir o papel de formadores e uniformizadores de teses que, uma vez fixadas, serão de observância obrigatória, inclusive pelos próprios julgadores.

No contexto da objetivação da recorribilidade, a intenção do recurso repetitivo é pacificar com eficácia erga omnes determinada tese, evitando a multiplicação e a tramitação conjunta de recursos sobre a mesma matéria. Nos termos da legislação, quando houver multiplicidade de recursos sobre o mesmo tema, poderá haver afetação de recursos representativos de controvérsias.

Parece, contudo, que a maior dificuldade enfrentada não está no destaque das teses repetitivas, mas sim na árdua tarefa de aceitação e aplicação da interpretação uniforme nas decisões judiciais posteriores. O que se observa é uma tendência repetitiva – se permitem o trocadilho – da negativa de efetividade ao que foi amplamente debatido e fixado pelas cortes superiores.

Tal situação gera sem dúvida um vazio jurídico, cuja insegurança põe em risco não só a sistemática, mas o próprio direito objeto de julgamento, uma vez que suas razões ficarão à sorte do momento recursal da tese tida como aplicável, indo diretamente contra a natureza do instituto.

O procedimento para o julgamento do recurso repetitivo demanda debate intenso e fundamentação profunda, suficiente à almejada uniformização que, após realizada, será aplicada ao infinito número de recursos sobrestados, cujo objeto se identifica com a tese firmada. Para que a sistemática funcione é imprescindível a certeza de que, pelo menos por razoável período, aquela regra continuará a viger.

Se assim não fosse, colocaríamos à sorte do tempo direitos idênticos que reclamam a intervenção judicial, tornando um desserviço o trabalho depreendido pelos magistrados, advogados e pelas serventias judiciais para aplicação do Direito ao caso concreto. O custo da máquina judicial é alto não só para as partes, mas principalmente para o Estado.

Negar vigência às teses fixadas em sede de recurso repetitivo, bem como alterá-las em curto espaço de tempo, causa situação de evidente insegurança jurídica e prejuízo aos jurisdicionados que, muitas vezes, só se socorreram da via judicial pelo conhecimento daquela interpretação uniforme sobre o tema, e da expectativa de vinculação das decisões judiciais às teses firmadas.

Há nessa objetivação da atividade dos tribunais uma necessidade de controle e efetividade para que sejam cumpridas com segurança as teses firmadas pelos tribunais superiores, sob pena de insubsistência do próprio instituto. Por essa razão, inclusive, é que as decisões vinculantes que espelham a objetivação são mais drásticas que uma jurisprudência vinculante, como a sumulada, fruto de debates e amadurecimento sobre cada questão específica. As decisões vinculantes em repetitivos podem ser tomadas a partir do julgamento de um único caso e serem aplicadas à multiplicidade de recursos imediatamente, incluindo casos futuros.

O novo CPC consagrou o microssistema de demandas repetitivas. É necessário dar força ao instituto a fim de afastar a ideia de terceira instância – ou, nas palavras de Osmar Paixão, “corte de varejo” – aos tribunais superiores. Ao contrário, que se reconheça finalmente o STJ e o STF como detentores da tarefa de apreciação de teses, leading cases, exercendo sua função jurisdicional de forma mais eficaz, como pretendia a Constituição Federal.

Outro não é o conteúdo do art. 926 do novo CPC, na medida que fala do dever de uniformizar a jurisprudência e mantê-la estável, íntegra e coerente. Em outras palavras, por segurança jurídica e razoabilidade as normas devem ser aplicadas com coerência e à integralidade.

É sabido que a afetação de recursos representativos de controvérsia no âmbito interno dos tribunais é uma realidade e, nos termos do art. 927, prestigia-se a imposição do novo CPC ao caráter vinculante e ao dever de observância das decisões tomadas por órgãos de jurisdição superior.

Pela clara vinculação entre a produção de efeitos em milhares de outros recursos é que se destaca a necessidade de efetivação do sistema, além da adequada utilização do distinguishing apenas para afastar determinado caso do sobrestamento ou da aplicação da tese, não havendo que se falar copiosamente em revisão de tese para casos idênticos posteriores, sob pena de sufragar o instituto.

A gravidade da negativa de vigência às teses firmadas pode ser observada claramente diante da atual jurisprudência do STJ e do STF no sentido de ser irrecorrível a decisão que determina aplicação de tese firmada em sede de repetitivo. Em outras palavras, não caberia agravo regimental contra despacho que se limita a remeter os autos ao tribunal de origem, para observância da sistemática prevista no art. 543-C, § 7°, II, do CPC, haja vista tratar-se de ato despido de conteúdo decisório e que não gera prejuízo às partes.

Diversos processos ficam suspensos, portanto, aguardando que seja definida tese em recurso representativo de controvérsia para, de maneira surpreendente, ver a mesma tese modificada meses depois após a apreciação de novo recurso. E o que dizer dos recursos que são indeferidos liminarmente com aplicação da tese repetitiva e, meses após, tem seu conteúdo substancialmente modificado, deixando a mercê do tempo a sorte ou revés da demanda judicial? Certamente, não se trata da natureza e dos objetivos da demanda repetitiva, cujos efeitos devem ser garantidos pelas cortes que fixam suas teses, até que haja eventual modificação.

Não havendo, portanto, a devida superação da tese por outra decisão futura, revisão ou revogação pelo próprio órgão, não há que se falar em negativa de aplicação, seja pelos juízes e tribunais, bem como pelos próprios integrantes das cortes superiores, sob pena da sistemática dos recursos repetitivos não alcançar sua finalidade, de racionalidade e segurança, e produzir os negativos efeitos da incerteza jurídica e da multiplicação de recursos na tentativa de modificação do revés obtido.

É necessária uma mudança cultural, para que seja valorizado o sistema de precedentes e abandonados os recursos protelatórios, desde que aos jurisdicionados seja garantida a segurança jurídica esperada de uma decisão vinculante proferida por uma corte superior.

Notas____________________________

1 SILVA, José Afonso da. Do recurso extraordinário no Direito processual brasileiro. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1963, p. 229.

2 CÔRTES, Osmar Mendes Paixão. Recursos repetitivos, sumulas vinculantes e coisa julgada. Brasília, Gazeta Jurídica, 2018, p. 274.

 

Artigos relacionados:
• Da jurisprudência aos precedentes
• O julgamento de recursos repetitivos no TST: conflito funcional