Quando o juiz volta a ser advogado

4 de abril de 2021

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No final de 2019, fui convidado pelo Ministro Luis Felipe Salomão para escrever um artigo sobre minha experiência na atividade associativa para o livro “Magistratura do Futuro”. Acabei escrevendo um artigo que, por essas ironias que o destino acaba pregando em nossas vidas, acabou quase sendo profético, porque lhe dei o seguinte título: “Quando o juiz volta a ser advogado”.

Não poderia imaginar, naquele momento, que quase um ano depois de escrever aquele artigo me exoneraria de uma carreira na qual estava há 19 anos para retornar à advocacia privada. Naquele artigo busquei retratar dois pontos principais: o papel nem sempre compreendido e nem sempre fácil do presidente de uma associação de classe e a preocupação que tinha com a crescente desvalorização da carreira de magistrado.

O líder associativo enfrenta sempre um grande desafio: ao tempo em que se vê obrigado a se manifestar sobre os grandes temas de interesse público, o que demonstra a importância e o respeito que as associações de magistrados ganharam na sociedade, atuando como verdadeiro players políticos e formadores de opinião, se vê ao mesmo tempo obrigado, de maneira quase que diária, a explicar o porquê do juiz, como agente político que é, precisar ter um regime jurídico diferenciado dos demais agentes públicos, caracterizado por alguns bônus e por muitos ônus.

Quando se torna líder associativo, o juiz não mais tem poder de decisão. Tem de aprender a trabalhar com o poder de persuasão. O juiz é aquele que dá a última palavra, que decide, de forma definitiva, quem tem e quem não tem razão e põe fim às controvérsias em um modelo de Estado Democrático de Direito. Mas quando assume a representação associativa, volta a ser advogado: sua função passa a ser a de representar a classe e defender as pautas institucionais da carreira perante os demais Poderes da República e órgãos estatais.

Essa é uma grande dificuldade que nem todos os juízes entendem. Na associação, passamos a defender os interesses da classe em uma agenda em que há, no mais das vezes, diversos interesses contrapostos e conflitantes com os nossos. Não mais decidimos. Temos de convencer os demais atores com os nossos argumentos.

Outro ponto que procurei abordar naquele trabalho foi a crescente preocupação que tínhamos, como dirigentes de classe, com o processo de desvalorização contínuo pelo qual a carreira da magistratura vem passando. São muitos os problemas que vêm sendo enfrentados e um deles é o do regime remuneratório. Desde que os subsídios foram criados, em 2005, como modelo de pagamento em “parcela única”, sofreram uma defasagem de mais de 40% em razão do não cumprimento do direito constitucional da revisão anual desse valor (art. 37, X, da Constituição Federal – CF/1988).

Nos anos de 2017 e 2019, o Supremo Tribunal Federal sequer encaminhou proposta de revisão anual do valor dos subsídios, embora constitucionalmente obrigado a tanto. Aqui um esclarecimento é importante: não desconhecemos a grande crise orçamentária pelo qual passa o País, agora ainda mais agravada em razão da pandemia do coronavírus, mas a Justiça da União, desde 2016, vive a realidade da Emenda Constitucional nº 95, a que fixou o chamado teto de gastos nos Poderes da República, de forma que o encaminhamento de proposta de revisão poderia ter sido debatido dentro do parlamento brasileiro, que teria a competência para aprovar essa revisão, com a condição de que os limites orçamentários do Poder Judiciário da União não fosse ultrapassado. Mas isso não foi feito e esse debate foi interditado.

Ocorre que o problema da revisão dos subsídios dos ministros do STF, que são considerados o teto do serviço público, é o chamado efeito cascata que ele provoca. Milhares de servidores do Judiciário e de outros Poderes, não só da União, mas dos estados e dos munícipios, que estão no chamado “abate-teto”, passariam a ter um aumento automático, impactando as contas públicas dos demais entes federativos que hoje passam por um problema fiscal ainda mais grave que o da União.

Com os subsídios corroídos pela inflação, a partir de 2020, com a reforma da Previdência na União, houve um agravamento desse quadro em razão do estabelecimento da contribuição previdenciária progressiva, com alíquotas de até 22%. Resultado: o magistrado federal, nos últimos dois anos, teve uma redução salarial média efetiva de R$ 2.500, o que vai diretamente contra o princípio da irredutibilidade de subsídios (art. 95, III, CF/1988).

Esse é um tema que precisa ser debatido de maneira franca com a sociedade. Que Magistratura queremos para o Brasil? O ministro do Supremo Tribunal Federal tem, desde março de 2020, um subsídio líquido de R$ 24 mil.

É isso mesmo. E com as novas regras de aposentadoria, a grande maioria dos juízes federais e todos que entrarem a partir de agora vão se aposentar com o valor teto do Regime Geral de Previdência, aproximadamente R$ 6 mil. Essa é outro dado da realidade que a maioria da sociedade desconhece. Poucos juízes federais que entraram na magistratura antes de 1998, ou seja, há quase 23 anos, terão direito à aposentadoria integral, que virou exceção. A regra hoje é de que o juiz se aposentará com praticamente 25% do que ganha na ativa. Se considerarmos que durante a carreira de magistrado o juiz não pode exercer qualquer outra atividade, salvo a de professor, esse é o quadro futuro que se desenha e que tem de ser colocado em debate. Quem continuará querendo ser juiz, para viver uma carreira cheia de restrições e limitações, não poder exercer qualquer outra atividade remunerada e ter a expectativa de que um dia poderá se aposentar ganhando cerca de um quarto do valor que ganhava na atividade?

Mas foi por essas razões que deixei a Magistratura? Poderia dizer que sim e que não. Pode parecer contraditório, mas foi um pouco disso. Vou tentar explicar. Quando fui aprovado no X Concurso do TRF3, em 2002, e tomei posse como juiz federal imaginei, naquele momento, que meu futuro profissional estivesse definido. Tanto é que nesses 19 anos, até praticamente há um mês, nunca tinha pensado em sair da Justiça Federal, para advogar ou em razão de outros concursos, o que muitos colegas fizeram ao longo desses anos, pelas mais diversas razões.

Apesar das dificuldades da carreira e da preocupação com a sua desvalorização, estava pronto para passar mais 25 anos, até a aposentadoria compulsória, fazendo aquilo de que gostava e que me levou a fazer o concurso: ser juiz federal no Fórum Cível da Justiça Federal em São Paulo, o nosso famoso Fórum Pedro Lessa. Mas a vida às vezes nos prega surpresas e faz com que reavaliemos algumas certezas e optemos por novos desafios, novos caminhos. Recebi um convite profissional para voltar a advogar e acabei o aceitando, embora essa mudança de rumo não houvesse sido planejada.

É o que estou fazendo. E por que encarar agora essa mudança tão grande? Talvez seja aquela necessidade, tão bem resumida por Eduardo Galeano ao definir para que serve a utopia, para continuar a caminhada: “A utopia está lá no horizonte. Me aproximo dois passos, ela se afasta dois passos. Caminho dez passos e o horizonte corre dez passos. Por mais que eu caminhe, jamais alcançarei. Para que serve a utopia? Serve para isso: para que eu não deixe de caminhar”.

Agora, 25 anos depois, estou de volta a essa nova velha estrada, a advocacia privada, onde tudo começou em 1996.

Teria sido outra a minha decisão se não vislumbrasse esse processo contínuo de desvalorização da carreira? Talvez sim, talvez não. Não tenho como responder de forma hipotética. Acabei decidido sair porque me senti motivado a me reinventar profissionalmente e voltar a fazer aquilo que marcou o início da minha carreira profissional.

De toda forma, a reflexão é importante. Se a desvalorização da carreira pode não ser a única causa pela qual muitos colegas ao longo dos anos optaram pela mudança, certamente vai ser uma causa que levará, no futuro, a que muitos jovens estudantes – e que poderiam ser grandes magistrados – optem por outras carreiras, mais atrativas do ponto financeiro e sem um regime de tantas restrições como têm os magistrados. E isso será muito ruim para o futuro da magistratura brasileira.