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Prescrição pela pena perspectiva

5 de fevereiro de 2003

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Doutrinariamente, prescrição é a perda de um direito pelo decurso do tempo sem que seja exercido, tanto no direito material, quanto no instrumental.

A prescrição penal faz desaparecer o direito de punir do Estado (pretensão punitiva), ou seu direito à execução da pena imposta.

Na lição doutrinária de JOSÉ FREDERICO MARQUES, in Curso de Direito Penal, ed. Saraiva, vol. III, 1956, p.412, “a prescrição penal é a perda do direito de punir pelo não uso da pretensão punitiva durante certo espaço de tempo. É da inércia do Estado que surge a prescrição. Atingindo ou ameaçado um bem jurídico penalmente tutelado, é a prescrição uma decorrência da falta de reação contra o ato lesivo ou perigoso do delinqüente. Desaparece o direito de punir porque o Estado, através de seus órgãos, não conseguiu, em tempo oportuno, exercer sua pretensão punitiva”.

Para ANÍBAL BRUNO, a prescrição penal é a “ação extintiva da punibilidade que exerce o decurso do tempo, quando inerte o poder público na repressão do crime” (Direito Penal, 4ª ed., ed. Forense, 1984, p.209).

No nosso ordenamento jurídico penal, o instituto da prescrição está contemplado como uma das causas de extinção de punibilidade, consoante se vê no art. 107, inciso IV, do Código Penal.

Há duas espécies de prescrição:

1) prescrição da ação penal, que corresponde à prescrição da pretensão punitiva. Sua incidência dá-se antes da sentença definitiva transitar em julgado e representa a cessação do direito do Estado à persecução penal;

2) prescrição da condenação, ou seja, prescrição da pretenção executória, que surge após a sentença definitiva (CP, art. 110, caput).

Assim, com a ocorrência da prescrição da pretensão punitiva até o trânsito em julgado da sentença penal condenatória, fica extinto o poder-dever do Estado de obter uma decisão denifitiva acerca de um crime ou de uma contravenção e, após este marco, pode ser reconhecida a prescrição da pretensão executória, que consiste na perda, por parte do Estado, do direito de executar a pena ou a medida de segurança imposta.

A prescrição da pretensão punitiva possui três espécies: a) prescrição da pretensão punitiva propriamente dita, a qual é disciplinada no art. 109 do Estatuto Repressor e calculada pelo máximo da pena privativa de liberdade cominada para a infração penal, referindo-se, portanto, à pena abstratamente considerada; b) prescrição subseqüente (ou intercorrente, ou superveniente), a qual opera-se entre a sentença condenatória que tenha transitado em julgado para a acusação e seu trânsito em julgado para a defesa, regulando-se pela pena concreta, utilizando-se a tabela prevista no art. 109 do CP, bem como quando houver recurso da acusação, a que se negou provimento, a teor do que dispõe o § 1º do art. 110 do Código Penal e; c) prescrição retroativa, sendo baseada na pena concretizada na sentença, encontrando-se disciplinada nos §§ 1º e 2º, do art. 110 c/ c art. 109 do CP, quando ocorrer o trânsito em julgado para a acusação ou o improvimento de seu recurso, contando-se da sentença condenatória “para trás”, ou seja, da sentença condenatória até a causa interruptiva que a antecedeu (sentença ou acórdão condenatório ao recebimento da denúncia ou queixa; recebimento da denúncia ou queixa à data do crime).

Consideremos que, diante de uma decisão judicial que rejeitou denúncia, sob o fundamento de que a prática delituosa narrada na inicial não constitui infração penal e que há ausência de cumprimento de ato tido como condição de procedibilidade da ação penal, antes do oferecimento da denúncia, o Ministério Público, inconformado, interpõe recurso em sentido estrito.

Em tese, para melhor análise da questão, vamos imaginar que o crime seria de apropriação indébita previdenciária, e que os fatos narrados tenham ocorrido no período de novembro de 1990 a agosto de 1995 e, até esta data, não houvesse recebimento da denúncia oferecida, que seria causa de interrupção da prescrição (CP, art. 117, inciso I).

Em 15/10/2000, teve início a vigência da Lei nº 9.983 que, ao revogar o art. 95, caput, suas alíneas e § 1º, da Lei nº 8.212/ 91, acresceu dispositivos ao Código Penal, estabelecendo, no tocante aos delitos de apropriação indébita previdenciária, que:

“APROPRIAÇÃO INDÉBITA PREVIDENCIÁRIA

Art. 168-A – Deixar de repassar à previdência social as contribuições recolhidas dos contribuintes, no prazo e forma legal ou convencional:

– Pena – reclusão, de 2(dois) a 5(cinco) anos, e multa.

§ 1º – Nas mesmas penas incorre quem deixar de:

I – recolher, no prazo legal, contribuição ou outra importância destinada à previdência social que tenha sido descontada de pagamento efetuado a segurados, a terceiros ou arrecadada do público;

II – recolher contribuições devidas à previdência social que tenham integrado despesas contábeis ou custos relativos à venda de produtos ou à prestação de serviços;

III – pagar benefício devido a segurado, quando as respectivas cotas ou valores já tiverem sido reembolsados à empresa pela previdência social;

§ 2º – É extinta a punibilidade se o agente, espontaneamente, declara, confessa e efetua o pagamento das contribuições, importâncias ou valores e presta as informações devidas à previdência social, na forma definida em lei ou regulamento, antes do início da ação fiscal.

§ 3º – É facultado ao juiz deixar de aplicar a pena ou aplicar somente a de multa se o agente for primário e de bons antecedentes, desde que:

I – tenha promovido, após o início da ação fiscal e antes de oferecida a denúncia, o pagamento da contribuição social previdenciária, inclusive acessórios; ou

II – o valor das contribuições devidas, inclusive acessórios, seja igual ou inferior àquele estabelecido pela previdência social, administrativamente, como sendo o mínimo para o ajuizamento de suas execuções fiscais”.

A eficácia da lei penal no tempo subordina-se à regra do tempus regit actum, isto é, aplica-se a lei vigente quando da realização do fato.

Por seu turno, a Carta da República, em seu art. 5º, inciso XL, estabeleceu, juntamente com o disposto no art. 1º, parágrafo único, do Código Penal, no tocante à sucessão de leis penais que regulem, no todo ou em parte, as mesmas questões, a irretroatividade da lei penal posterior, a não ser para favorecer o agente, o qual se dá em dois casos: a) o fato não ser mais considerado crime pela nova lei (abolitio criminis) (CP, art. 2º, caput); b) lei nova que, de alguma forma beneficiar o agente (lex mitior) (CP, art. 2º, parágrafo único).

Como a pena máxima da lei nova, ao fixar em 05 (cinco) anos, seria mais benéfica aos agentes impor-se-ia sua aplicação.

Se, do período dos fatos (1990 a 1995), passaram-se até o ano corrente (2002) 12 anos e, da última conduta, 07 (sete) anos, sem que houvesse o recebimento da denúncia (causa interruptiva da prescrição), é certo que, levando-se em consideração a pena máxima de 05 (cinco) anos, aplicar-se-ia o art. 109, inciso III, do CP, que fixa o lapso temporal para reconhecimento da prescrição em 12 (doze) anos.

Ocorre que se mostra notória a demora na instrução criminal em crimes desta espécie, levando-se em consideração, ainda, o estigma e os constrangimentos que geram nos agentes que têm contra si instauradas ações penais, ressaltando-se que a grande maioria dos acusados como incursos nos crimes de não recolhimento das contribuições previdenciárias tem sua pena fixada no mínimo legal e inexistindo, no caso concreto, elementos que demonstrem que a pena dos acusados ficaria acima desse patamar (CP, art. 68 c/c art. 59), atentando-se aos princípios da economia processual, da dignidade da pessoa humana e da intrumentalidade das formas, é dever do julgador reconhecer, de ofício, a prescrição retroativa da pretensão punitiva do Estado.

Por outro lado, não há falar em violação aos princípios do devido processo legal (CF, art. 5º, inciso LIV) e de presunção de inocência (CF, art. 5º, inciso LVII), como argumentam alguns magistrados, haja vista que o reconhecimento da prescrição penal retroativa, ao extinguir a punibilidade, inadmite posterior discussão acerca do mérito da ação penal, pelos efeitos amplos que produz, extinguindo toda e qualquer conseqüência jurídica desfavorável ao acusado, assumindo o status quo de primário para todos os efeitos legais.

O reconhecimento da prescrição da pretensão punitiva in concreto opera como se o crime não houvesse sido praticado (TRF-4ª Região, RBBCCr 2/240; TACrSP, RJDTACr 20/139).

Ora, se o Estado, que possui poder-dever de punir os agentes violadores da lei penal, não exerceu o jus persequendi no tempo próprio, não pode a sociedade arcar com o custo da movimentação da máquina judiciária (citações, intimações, interrogatórios, depoimentos, perícias, recursos etc), despendendo tempo e trabalho inúteis a um provimento jurisdicional que não teria efeito prático algum. Em outras palavras, seria inócuo o provimento de uma sentença.

Impende, na atualidade, a modernização do processo penal de modo a permitir uma maior efetividade da prestação jurisdicional, tornando a Justiça mais célere e eficaz, sem que sejam afetados a segurança jurídica e o Estado Democrático de Direito, este proclamado pela Constituição, “que tem na dignidade da pessoa humana seu primeiro e mais valioso fundamento. Após mais de meio século de vigência do Código de Processo Penal, surgem justificados reclamos da sociedade e novos instrumentos de política processual penal, em correspondência aos novos tempos sociais, políticos, econômicos e culturais”. (SALVIO DE FIGUEIREDO TEIXEIRA, Revista Consulex, índice acumulado de 2000, em matéria intitulada O Processo Penal Brasileiro e o novo impulso pela sua modernização).

Assim, pelos elementos constantes dos autos, eventual aplicação de pena in concreto, cuja prescrição retroativa se imporia, de ofício, não ensejaria nenhuma utilidade e efetividade à tramitação longa e dispendiosa do processo.

Prosseguir-se com ação penal cuja prescrição é irremediável, no caso concreto, constitui, a nosso ver, verdadeira ausência de condição da ação, qual seja, interesse de agir (CPC, art. 267, inciso VI c/c CPP, art. 3º).

Cabe referir, neste ponto, o autorizado magistério de LIEBMAN, para quem “A existência do interesse de agir é, assim, uma condição do exame do mérito, o qual seria evidentemente inútil se a providência pretendida fosse, por si mesma, inadequada a proteger o interesse lesado ou ameaçado, ou ameaça que é denunciada, na realidade, não existe ou não se verificou ainda. É claro que reconhecer a subsistência do interesse de agir não significa, ainda, que o autor tenha razão quanto ao mérito; isto tão-só quer dizer que pode tê-la e que sua pretensão se apresenta digna de ser julgada(Corso de Direitto Processuale Civile,  Instituições de Direito Processual Civil, v.II/34, FREDERICO MARQUES, 1ª ed., Forense, p.49).

Na preciosa lição de FABBRINI MIRABETE, Processo Penal, 13º ed. Atlas, 2002, p.103, “o legítimo interesse ou interesse de agir consiste na formulação de uma pretensão necessária e adequada à satisfação do interesse contido no direito subjetivo de que se diz titular. Por isso, se diz que dois são os requisitos para a existência do interesse de agir: a necessidade e a adequação. (…) Mas o interesse de agir pressupõe, além dos dois requisitos, a utilidade do provimento jurisdicional, ou seja, só existe quando a decisão pode interferir em algo que possa ter algum relevo para o autor. O interesse de agir é considerado um interesse secundário instrumental, subsidiário e de natureza processual, tudo em confronto com o direito material”.

A propósito do tema, merece destaque trecho do voto proferido pelo em. Desembargador aposentado WALTER THEODOSIO, nos autos do HC 204.272-1, j. 26/02/1991, TACrSP, “O Processo Penal, por exigências processuais, mostra-se jornada árdua, envolvendo um complexo trabalho do magistrado, do Ministério Público, da defesa, dos funcionários, numa atividade de tal porte que não se justifica sem um objetivo: dar resposta jurisdicional à pretensão punitiva estatal, sob feição final da coisa julgada. Estando fora de perspectiva tal resultado, eis que a prescrição acenada irá desintegrar a própria ação penal, porque aponta, em face da pena a ser concretizada, inevitavelmente não superior a dois anos, que a pretenção punitiva estatal não podia ter sido intentada, não se vislumbra interesse de agir, hic et nunc. O exame do interesse de agir, no caso, leva à recomendação do não dispêncio de recursos numa ação penal fadada ao destino descrito, aliviando-se o Poder Judiciário da carga de um processo com prognóstico visível de resultado estéril, anódino”.

Em julgamento anterior, o referido Magistrado já havia observado que “Conquanto se admita que a utilização da via jurisdicional, no ato de acusar, não leva, inexoravelmente, à imposição de pena, cabe averbar-se que o exercício da ação sob indiscutível tom de falência quanto à aplicação concreta da reprimenda revelar-se-ia atividade sem qualquer utilidade, eis que o provimento jurisdicional, se procedente a ação, desembocaria na prescrição da pretensão punitiva estatal, ante a pena concretizada. No exame do interesse de agir não se pode arredar a verificação da utilidade do provimento jurisdicional. Se inútil o provimento jurisdicional, ainda que procedente a ação, é de reconhecer-se a ausência do interesse de agir. A máquina estatal, movimentada pelo autor da ação, busca atingir um objetivo concreto, util, afastada a idéia de seu uso em mera atmosfera abstrata. O mundo do direito não pode postular-se em tom fenomênico inteiramente dissociado do mundo concreto” (TACrSP, SER 589.413-0, j. 12/03/1990, RT 668/289).

E, como já ressaltado, o reconhecimento da prescrição retroativa, ao erigir o agente à condição de inocente, prevalecendo a tutela de liberdade do indivíduo, ao apagar todos os efeitos da ação ou da condenação, constitui avanço e fortalecimento do Estado Democrático de Direito.

Vê-se que a instauração do processo penal já atinge o chamado “status dignitatis do imputado” (Direito Processual Penal, Estudos e Pareceres, Forense, 1987, p.70) e a pena, como conseqüência lógica do crime, tornar-se-ia inócua, ante a ineficácia do Estado.

A respeito, para ilustrar a questão levantada, partes do artigo extraído da monografia apresentada no Curso de Especialização (Latu Sensu) em Direito Penal promovido pelo Centro de Estudos Judiciários e a Universidade de Brasília, em junho de 1999, pela MM. Juíza Federal da Seção do Rio Grande do Sul, Dra. SALISE MONTEIRO SANCHOTENE,

(…) forçoso concluir que a interpretação das normas processuais penais deve ser feita sempre a partir dos princípios e regras contidos no ordenamento constitucional, tendo-se em conta que o processo não é um fim em si mesmo, porém é o meio pelo qual se apura a existência de um fato tipo como criminoso. (…) Ada Pellegrini Grinover destaca que, para assegurar um processo penal democrático é mister que seja reservada ao magistrado moderno a função de garantista. O juiz deverá zelar, na fase preparatória, pelos direitos do investigado e, na fase judicial, pelos direitos do réu. Fazuzi Hassan Choukr assevera com muita clareza que o apego à forma, no novo processo penal, não se coaduna com as aspirações sociais democráticas e, portanto, deve prevalecer o princípio da “instrumentalidade”. (…) Também conhecido como princípio da simplificação, o princípio da economia processual recomenda que deve haver proporção entre fins e meios no processo, para viabilizar a relação custo-benefício. Assim, considerando a instrumentalidade do processo, eve ser mínimo o emprego de atividades processuais, evitando-se o desperdício tanto de tempo quanto de dinheiro para os sujeitos processuais. (…) Weber Batista alerta que o exame das condições da ação ou de outro pressuposto necessário à validez do processo não pode ser relegado para a sentença, depois de já haver sido percorrido todo o inter procedimental, pois isso iria frontalmente contra o princípio econômico. (…) Considerando-se que é medida de exceção – aplicada quando outro mecanismo não for suficiente para satisfazer a sociedade – o processo penal, por obediência constitucional, deverá ser conduzido de forma a, humana e juridicamente, produzir o menor sacrifício ao acusado. Tornar-se sujeito passivo de uma ação penal pode marcar de modo irreversível a vida de uma pessoa”.

No mesmo sentido, decisões emanadas do eg. TRF da 4ª Região:

“PROCESSO PENAL. EXTINÇÃO DA PUNIBILIDADE. PRESCRIÇÃO PELA PENA EM PERSPECTIVA. CABIMENTO

1-A prescrição pela pena em perspectiva pode ser reconhecida, em face do caráter finalístico do processo e da utilidade do seu resultado. Estando demonstrado nos autos que as circunstâncias judiciais do art. 59 do Código Penal são inteiramente favoráveis ao acusado, sendo lícito pressupor que a pena não será fixada no seu máximo abstratamente previsto, pode ser reconhecida antecipadamente a extinção da punibilidade.

2-Prescrição e extinção da punibilidade reconhecidas. Recurso prejudiciado”.

(TRF 4ª Região, RCR 1999.04.01.006707-0/SC, 2ª Turma, Rel. Des. Fed. JOÃO PEDRO GEBRAN NETO, v.un., DJ 07/02/ 2001)

CRIMINAL. PRESCRIÇÃO. PROCESSO PENDENTE.

1-O exercício é condição da ação penal, porque não se haverá de exercer jurisdição, inutilmente.

2-Se as circunstâncias reveladas pela prova demonstram que a única pena viável, teria sua aplicação neutralizada pela prescrição, ao juiz incumbirá extinguir o processo, porque indiscutível, causa extintiva da punibilidade.

3-Apelação improvida”.

(TRF-4ª Região, ACR 93.04.18839-3/RS, 3ª Turma, Rel. Des. Fed. FABIO BITTENCOURT DA ROSA, v.un., DJ 10/11/1993)

Verifica-se, portanto, que, através da instrumentalidade do processo, se buscará a efetividade da tutela jurídica, aproximando-se cada vez mais o processo e o direito material, e, como bem observa HUMBERTO THEODORO JUNIOR, em sua obra O Processo Civil Brasileiro no Limiar do Novo Século, ed. Forense, 2002, p.07, “se o processo foi concedido para solucionar conflitos e fazer atuar, em favor de quem tem razão, a vontade concreta da lei, será tanto mais eficaz quanto mais rapidamente conseguir fazer com que prevaleça, de maneira mais completa, o direito subjetivo da parte que dele se vê injustamente privado ou que sofre ameaça de agressão em sua esfera jurídica. O Processo, na história da jurisdição, evoluiu de simples meio de declarar o direito, para eficiente instrumento de sua real concretização”.