Poder Judiciário não é cobrador

16 de junho de 2014

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Rogerio-MedeirosFoi divulgado um contrato celebrado entre o Tribunal Superior Eleitoral e a Serasa, entidade que cadastra devedores inadimplentes (jornal O Estado de S. Paulo, edição de 7.8.2013). Na mesma data, diante do impacto da revelação, o TSE comunicou a suspensão imediata do acordo e posterior submissão do assunto ao plenário da Corte, para análise da legalidade do ato.

Em 1949, o escritor inglês George Orwell publicou o célebre livro “1984” (São Paulo: Companhia Editora Nacional, trad. Wilson Velloso, 29a ed. 2005). Descreve uma sociedade totalitária do futuro, dirigida pelo onipresente “Grande Irmão” (“Big Brother”). Nela, os indivíduos são meros instrumentos submetidos ao domínio total: até o pensamento e o idioma são controlados. Em cada casa é instalada a “teletela”, para permanente vigilância dos cidadãos pelo Estado.

A ficção orwelliana não está muito distante das sociedades contemporâneas. Com os avanços da informática, o mundo atual armazena incalculável quantidade de dados em alta velocidade. É o chamado “Big Data”.

Daí o interesse da Serasa no acordo com o TSE. A Justiça Eleitoral guarda dados pessoais de milhões de cidadãos brasileiros. É um instrumental de inestimável valor para localizar devedores inadimplentes e facilitar a cobrança de dívidas.

Cabe aqui importante indagação: o Judiciário, poder estatal, pode atuar como “cobrador de luxo” das entidades privadas?

São frequentes os pedidos de empresas e instituições financeiras para que juízes, em processos de cobrança de dívidas, enviem ofícios a diversos órgãos, públicos e privados, a fim de requisitar dados de devedores inadimplentes (endereço, patrimônio etc.).

O Tribunal de Justiça de Minas Gerais já decidiu a respeito:

… Sobretudo a partir da promulgação da Emenda Constitu­cional no 8/1995, redesenhou-se a ordem social e econômica do Estado brasileiro. O denominado ‘neoliberalismo’ provocou desregulamentação e privatizações. ‘Governo pequeno, impostos baixos, liberdade empresarial, respeito aos direitos de propriedade, fidelidade aos contratos, abertura a capitais estrangeiros, prioridade para a educação básica – eis as características do Estado desejável’ (Roberto Campos). Se são válidas as regras do livre mercado para as instituições financeiras auferirem lucros, as mesmas regras deverão valer quando sofrerem prejuízos. É dizer: se o Estado não pode intervir para lhes cercear os ganhos, também não poderá ser acionado para lhes minorar as perdas. É necessário que o credor comprove haver esgotado todas as diligências ao seu alcance para obter as informações almejadas, sem o que não é possível a expedição de ofícios aos órgãos públicos, visando à obtenção de informações sobre o executado… (Agravo de Instrumento no 1.0079.09.937840-2/001, relator desembargador Rogério Medeiros, julgado em 27.6.2013).

Ou seja, o Judiciário não deve atender requerimentos dessa natureza, ressalvadas algumas situações de relevante interesse público e social (por exemplo, localização de um criminoso foragido ou de um devedor de pensão alimentícia para filhos menores).

Sobretudo a partir da promulgação das Emendas Constitucionais números 6 e 8, de 1995, foi realizado um novo desenho da ordem social e econômica no Brasil.

Ao longo do século 20, o chamado Welfare State combinava democracia liberal na política com o dirigismo econômico do Estado. Nos anos 1980, esse modelo cedeu espaço para o “novo liberalismo”. Foram questionadas as políticas de benefício social até então praticadas. Estados Unidos e Inglaterra, sob os governos de Ronald Reagan e Margaret Thatcher, respectivamente, lideraram a implantação dessa nova política econômica. Baseava-se em importantes conceitos liberais: Estado “mínimo”, desregulamentação do trabalho, privatizações, funcionamento do mercado sem interferência estatal e cortes nos benefícios sociais.

Norberto Bobbio sintetizou:

Por neoliberalismo se entende hoje, principalmente, uma doutrina econômica consequente, da qual o liberalismo político é apenas um modo de realização, nem sempre necessário; ou, em outros termos, uma defesa intransigente da liberdade econômica, da qual a liberdade política é apenas um corolário. (…) Na formulação hoje mais corrente, o liberalismo é a doutrina do ‘Estado mínimo’ (o minimal state dos anglo-saxões). (in Liberalismo e Democracia. São Paulo: Brasiliense, trad. Marco Aurélio Nogueira, 1995, págs. 87-89).

Mudando a ideologia dominante, mudou a forma de se conceber o Estado e a administração pública. Não se quer mais o Estado prestador de serviços:

Quer-se o Estado que estimula, que ajuda, que subsidia a iniciativa privada; quer-se a democratização da administração pública pela participação dos cidadãos nos órgãos de deliberação e de consulta e pela colaboração entre público e privado na realização das atividades administrativas do Estado; quer-se a diminuição do tamanho do Estado para que a atuação do particular ganhe espaço; quer-se a parceria entre o público e o privado para substituir-se a Administração Pública dos atos unilaterais, a Administração Pública autoritária, verticalizada, hierarquizada. (DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Parcerias na Administração Pública. São Paulo: Atlas, 1997, págs. 11-12).

Nesse contexto, as instituições financeiras podem livremente obter lucros em suas operações. A jurisprudência do Supremo Tribunal Federal e demais cortes brasileiras autoriza a contratação de juros acima dos limites da Lei de Usura e a cobrança de outros encargos contratuais (comissão de permanência, tarifas bancárias etc.).

Se são válidas as regras do livre mercado para a obtenção de lucros pelos agentes financeiros, as mesmas regras deverão valer quando sofrerem prejuízos. Em outras palavras: se o Estado não pode intervir para lhes cercear os ganhos, também não poderá ser acionado para lhes minorar as perdas. É o que concluiu o tribunal mineiro.