Patriarcado, discriminação e atuação do CNJ nas políticas judiciárias para o acesso da mulher à Justiça

8 de março de 2021

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Neste mês em que celebramos o Dia Internacional da Mulher, vale ressaltar que a discriminação de gênero é secular, sobretudo em culturas construídas de forma patriarcal como a nossa, que escondem as violências e não efetivam substancialmente os direitos dos mais vulneráveis.

O dia 8 de março é uma data instituída para provocar na sociedade a reflexão acerca dos avanços e desafios que ainda persistem no campo da defesa dos direitos da mulher. O objetivo da data é discutir o seu papel na sociedade e nas instituições, reafirmando a sua história de luta. O esforço é para tentar diminuir e, quem sabe um dia extinguir, o preconceito, a desvalorização e a violência.

Com efeito, a luta tem sido expressiva no sentido de dar voz às vítimas silenciadas pela exclusão, trazendo para as mulheres maiores oportunidades para uma vida digna e efetividade de direitos.

Nesse ponto, verifica-se que o gênero tem relevância como categoria política e não apenas biológica, na medida em que consiste em identidades atribuídas aos sexos feminino e masculino, por meio de comportamentos e expectativas que decorrem da cultura em determinada sociedade.

O patriarcado seria então uma estrutura de poder em que as mulheres estariam submetidas à autoridade dos homens, dentro e fora das famílias, devendo ser destacado que embora os homens sejam beneficiados pelo sistema patriarcal, o que caracteriza a inferiorização da mulher é a lógica desta organização, e não a simples existência do sexo masculino.

E por qual motivo é tão difícil vencer tal inferiorização? Sabe-se que a subjugação das mulheres já foi apropriada e naturalizada pela sociedade, razão pela qual o processo de enfrentamento à desigualdade de gênero é sempre complexo. Tal trabalho vem sendo realizado pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ) desde a sua criação. O órgão é responsável por liderar o processo de aperfeiçoamento do Poder Judiciário brasileiro, capacitando-o para as exigências de eficiência, transparência e responsabilidade que os novos tempos impõem. Nesse contexto, foi criada a Comissão Permanente de Democratização e Aperfeiçoamento dos Serviços Judiciários, que tenho a honra de presidir e que tem competência para, dentre outros, propor estudos que visem à democratização do acesso à Justiça e propor ações e projetos destinados ao combate à discriminação, ao preconceito e a outras expressões da desigualdade de raça, gênero, condição física, orientação sexual, religiosa e de outros valores ou direitos protegidos ou que comprometam os princípios insculpidos na Constituição Federal de 1988.

Destaque-se  que o CNJ, em seus 15 anos de história, vem com afinco e determinação trabalhando pauta relativa à temática da diversidade, devendo ser ressaltada a recente criação do Observatório Nacional de Direitos Humanos.

Questão vital, neste processo, é o enfrentamento da  violência doméstica contra a mulher, uma das violações mais frequentes dos direitos humanos, em nível global. Com efeito, a ideologia do patriarcado mantém o processo de dominação como um dos seus eixos, fazendo com que mulheres permaneçam protagonizando processos de subjugação e dinâmica familiar violenta.

O enfrentamento à violência de gênero é desafiador, demandando discussões sobre novos instrumentos de proteção e a construção de uma realidade verdadeiramente inclusiva. No Brasil, o Painel de Monitoramento da Política Judiciária Nacional de Enfrentamento à Violência contra as Mulheres do CNJ possui diversos dados que podem ser consultados livremente pela sociedade e que podem servir para o embasamento de inúmeras políticas públicas locais preventivas, já que é dividido em diversos itens e permite um panorama por estado da Federação.

A compreensão das peculiaridades da violência contra a mulher requer a construção de espaços diferenciados de fala e escuta para as vítimas, os quais ainda encontram muita resistência. Muitas vezes, elas são até acusadas de cumplicidade, pois não denunciam seus agressores, mas tudo precisa ser compreendido dentro de um contexto cultural já referido. Daí a necessidade da observância da perspectiva de gênero não só nos julgamentos, mas na atuação de todo o Sistema de Justiça.

O CNJ tem tradicional atuação no campo do enfrentamento à violência doméstica. A Resolução 254/2018, considerando a importância de se assegurar tratamento adequado aos conflitos decorrentes de prática de violência contra a mulher, especialmente quanto aos crimes enquadrados na Lei Maria da Penha,  instituiu a Política Judiciária Nacional de Enfrentamento à Violência contra a Mulher, definindo diretrizes e ações de prevenção e combate à violência contra as mulheres e garantindo a adequada solução de conflitos que envolvam mulheres em situação de violência física, psicológica, moral, patrimonial e institucional.

Também digna de destaque é a Resolução Conjunta nº 5, firmada em 2020 pelo CNJ e pelo Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP), que instituiu o Formulário Nacional de Avaliação de Risco de Violência Doméstica, no âmbito do Poder Judiciário e do Ministério Público.

Dentro do contexto da violência doméstica, merece especial atenção a questão do feminicídio. A segurança pessoal é um direito humano fundamental, insculpido na Declaração Universal de 1948, mas sabe-se que o simples fato de se nascer mulher já é um fator majorado de risco para violências, em qualquer de seus tipos, no âmbito familiar ou não. A verdade, porém, é que muitos casos de feminicídio são registrados como de homicídio, dificultando a percepção do tamanho real do problema.

A assimetria entre os gêneros reforça a invisibilidade de fenômeno da violência doméstica e compromete o seu real enfrentamento pela sociedade, em especial no contexto da pandemia da covid-19. Segundo registros do espelho da pandemia divulgado pela ONU em 2020, estima-se que a violência doméstica tenha aumentado em 30% na França, 25% na Argentina, bem como no Canadá, Alemanha, Espanha, Inglaterra, Austrália e Estados Unidos. Em que pese a luta pela visibilidade da violência contra a mulher, a subnotificação dos crimes é uma realidade no Brasil e no mundo, em especial em períodos de quarentena.

Tendo em mira este cenário de subnotificação no contexto pandêmico, em 2020  o CNJ e a Associação dos Magistrados Brasileiros contaram com a indispensável atuação de inúmeras associações e órgãos que compõem as redes protetivas institucionais ou da sociedade civil para a criação da campanha “Sinal Vermelho contra a Violência Doméstica”, com a ideia de facilitar os canais de denúncia e viabilizar que mulheres tragam para os olhos do Poder Estatal a violência por meio de um X vermelho na sua própria mão, apresentado em balcões de farmácias conveniadas.

Destaque-se, por fim, a questão da interseccionalidade de raça, orientação sexual e identidade de gênero. Com efeito, as mulheres negras e as mulheres trans são ainda mais vitimizadas, merecendo, por isso, especial atenção da sociedade e dos poderes constituídos. Muito embora o País não disponha de dados detalhados e abrangentes, estima-se que cerca de  75% das mulheres assassinadas em 2020 tenham sido negras e, dentre a comunidade LTBTQIA+, as maiores vítimas de violência, em seus diversos tipos, foram as mulheres trans.

Neste aspecto, a Comissão Permanente de Democratização dos Serviços Judiciários do CNJ procura abordar o tema em seus diversos vieses, buscando que, em anos vindouros, possamos não apenas ter o dia 8 de março como data marcada no calendário comercial, mas que efetivamente celebre a igualdade material em nosso País.