Os sucessivos recordes de arrecadação tributária analisados à luz dos 20 anos da constituição federal

12 de julho de 2011

Compartilhe:

(Artigo originalmente publicado na edição 99, 10/2008)

Convidado pela Emarf para falar sobre a nova proposta de reforma constitucional do Governo Federal, ou seja, a futura 16ª Emenda Constitucional em matéria tributária, inevitavelmente, surgiu-me a seguinte indagação: para que reformar, mais uma vez, a Constituição?

Certamente não é para arrecadar mais. O Brasil vem batendo recordes de arrecadação, tanto é assim que, pós Constituição de 88, esses números foram subindo vertiginosamente. Iniciaram com 22% do PIB e, hoje, atingem a 38% (carga tributária), ou seja, um crescimento de 72%. Este é o fiel retrato do que foi arrecadado nos últimos 20 anos.

Malgrado o crescimento notório da economia brasileira, indaga-se: quais seriam os motivos, sob o ponto de vista constitucional, que acarretaram esse incremento da arrecadação?

Sinteticamente temos, de um lado, as sucessivas correções legislativas da jurisprudência do Supremo Tribunal Federal (STF). Do outro, a febre no sistema tributário brasileiro das “contributizações”. Explico.

Das correções legislativas da jurisprudência
A chamada correção legislativa da jurisprudência ocorre quando o Congresso reage e modifica, conscientemente, uma interpretação judicial. Nesse caso, a atividade do legislador implica no “radical repúdio à interpretação judicial, pela edição de norma intencionalmente contrastante com a jurisprudência e na retificação da norma anterior, que, por ambigüidade ou falta de clareza, tenha levado o Judiciário a adotar interpretação incompatível com os pressupostos doutrinários da matéria”.

Prima facie, pode parecer que a atividade do Congresso acarreta no controle ativo de um Poder do Estado sobre o outro. Para Canotilho, trata-se de combinação de Poderes. Para A. Hamilton, J. Jay e J. Madison, autores de “O Federalista, um verdadeiro sistema de pesos e contrapesos. O fato é que tivemos 56 emendas constitucionais, das quais 15 em matéria tributária, muitas promulgadas como instrumento que visa unicamente ao interesse fiscalista do Estado.

Para não me alongar, separei quatro notórios exemplos onde havia decisões unânimes do Supremo Tribunal Federal (STF), reconhecendo as inconstitucionalidades: a) da progressividade do IPTU/IPVA; b) do ICMS de pessoas físicas e jurídicas não contribuintes na importação; c) da taxa de iluminação pública cobrada dos proprietários de imóveis, inespecífica e indivisível.

O que fez o legislador constituinte derivado? Editou as emendas constitucionais n° 29 (IPTU), n° 33 (ICMS), n° 39 (CIP) e n° 42 (IPVA), tornando constitucional, doravante, tais incidências tributárias, apesar de inexistir jurisprudência contraditória, incompleta ou contrastante com os princípios gerais do Direito. Aumentou-se a arrecadação.

Sobre o tema, reporto-me ao artigo “O Limite das Reformas Constitucionais em Matéria Tributária”, (Princípios de Direito Financeiro e Tributário – Estudos em homenagem ao professor Ricardo Lobo Torres, páginas 691-718, Editora Renovar, 2006), em que pude enfrentar a orientação jurisprudencial brasileira, de que somente se declara inconstitucional uma norma se ela ofender uma cláusula pétrea (ADIn nº 939).

“Contributizações”
Neste 20º ano de CRFB, constata-se que as contribuições arrecadam muito mais do que os impostos federais. A COFINS, por exemplo, arrecada mais que o Imposto sobre a Renda Federal, todavia com uma grande vantagem para a União, a qual não necessita partilhá-la com estados e municípios, tal como é obrigada a fazer em relação a este imposto, por força da disposição constitucional de repartição das receitas tributárias (CRFB, art. 157, ss).

Fica fácil, entendermos o porquê dessa febre de contribuições.

A citada COFINS um dia já foi 0,5% do faturamento das empresas, sendo majorada sucessivas vezes (para 1%; 1,2%, 2%, 3%). Hoje, a alíquota é de 7,6%, todavia, sobre o total das receitas, independentemente da classificação contábil, com a adoção de um esdrúxulo regime cumulativo e não-cumulativo em que a própria Receita Federal do Brasil, dependendo da região fiscal que se consulte, esposa entendimentos divergentes sobre o que pode ser creditado da etapa anterior.

Maior perplexidade é causada, d.v., quando analisamos a jurisprudência construída no Supremo Tribunal Federal (STF), acerca dessa espécie tributária tupiniquim, desconhecida das legislações alienígenas.

Primeiro, foi chancelado pelo Guardião da Constituição, a ilegal e imoral “tredestinação”, ou seja, o desvio da arrecadação de determinada contribuição para finalidade diversa daquela que ela foi criada não afasta a sua exigibilidade, mas, tão-somente, acarreta na possível punição do administrador público!

A derradeira, pululam instituições de contribuições de intervenção no domínio econômico, que ficam, ano após ano, contingenciadas para fazer frente ao superávit primário. Um exemplo clássico dessa distorção é a contribuição FUST devida ao Fundo de Universalização dos Serviços de Telecomunicações, cujo objetivo é dar acesso aos cidadãos localizados em áreas que não há viabilidade econômica para as operadoras. Um verdadeiro subsídio legal.

Pois bem, o leitor, certamente titular de linha telefônica, paga mensalmente a contribuição FUST incluída na sua conta. Constitucionalmente deveria servir para intervir na economia, propiciando a acessibilidade; todavia, existem bilhões de reais contingenciados – aliás, desde que foi criada. O pior é que, segundo essa mesma jurisprudência, a legitimidade para suspender a exigibilidade ou requerer o ressarcimento é da operadora de telefonia, posto ser ela a contribuinte.

Registre-se que na seara das contribuições se observa essa perversa fixação do contribuinte nas grandes empresas (v.g., em relação aos combustíveis, na Petrobras), dificultando, quando não impossibilitando, o acesso ao Judiciário daquele que suporta o ônus tributário.

Conclusões
Lamentavelmente, no Direito brasileiro, a doutrina ficou presa, em grande parte, aos princípios formais do Estado de Direito, maxime a legalidade, preocupando-se casuisticamente com questões meramente formais.

Sou daqueles que luta para um dia ver julgados em que a interpretação extensiva seja utilizada na sua plenitude, da forma como o eminente autor português Jorge Miranda defende: seja afastada a exigibilidade de contribuições cujos recursos são desviados ou represados há vários anos; sejam exterminados os fundos de combate a alguma coisa social que desvincula receitas carimbadas, distorcendo o orçamento e, por fim, a não aplicação de leis legitimadas por emendas constitucionais casuísticas, anti-sistêmicas, fiscalistas, mesmo que por meio da interpretação conforme, sem redução de texto.

Leonardo Pietro Antonelli
Professor da Emerj e Uerj