Ordem pública e as medidas provisórias_Entrevista com o pesquisador Júlio Aurélio Vianna Lopes

30 de abril de 2009

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A Editoria da Revista, considerando este um dos assuntos mais importantes apresentados perante a Câmara dos Deputados, ouviu o pesquisador em Direito da Casa Rui Barbosa e cientista político, professor Júlio Aurélio Vianna Lopes, que está lançando no dia 29 de abril corrente no Centro Cultural da Justiça Federal, com a presença do relator da Assembleia Nacional Constituinte, Dr. Bernardo Cabral, obra resultante das pesquisas que percorrem os temas debatidos e positivados durante a elaboração da atual Constituição Federal. O livro tem o título: “A Carta da Democracia”.
A matéria tratada pelo renomado pesquisador vem ao encontro da feliz e oportuna iniciativa do presidente Michel Temer de delimitar as medidas provisórias e pôr cobro ao absurdo da paralisação das votações legislativas, dada a enxurrada de medidas enviadas constantemente pelo Poder Executivo, que impedem e tumultuam o pleno funcionamento do Congresso Nacional.
Segundo o pesquisador Júlio Aurélio a iniciativa do Presidente da Câmara dos Deputados Federais está em sintonia com a principal conclusão das pesquisas contidas na obra “A Carta da Democracia”, que tem relevante prefácio do ex-senador Bernardo Cabral, partícipe principal da elaboração da Carta Magna de 1988.

Revista Justiça & Cidadania – Como foi a pesquisa sobre a formação da Carta de 1988?
Júlio Aurélio Vianna Lopes – À Casa de Rui Barbosa foram doados, pelo Senado Federal, os Anais Constituintes. Com todo o material à disposição, pude pesquisar os debates ideológicos e as decisões políticas dos vários temas constitucionalizados. O resultado é o livro “A Carta da Democracia – O processo constituinte da ordem de 1988”, publicado pela editora Topbooks.

JC – Como foi a elaboração constitucional?
JA – Foi um processo constituinte, em geral, por acordos entre suas duas maiores correntes: uma centro-esquerda, mais publicista e nacionalista, concentrada na Comissão de Sistematização da Assembleia (liderada por Mário Covas e Bernardo Cabral) e uma centro-direita, mais privatista e globalizante, concentrada no movimento intitulado “Centrão” (liderada por José Lourenço e Daso Coimbra, entre outros). Exceto algumas questões, como reforma agrária, juros bancários e sistema de governo, o entendimento político entre ambas as correntes definiu a dinâmica da Assembleia, impondo-a às esquerdas e, especialmente, à direita liderada por Amaral Netto. A administração da tensão ideológica entre os dois maiores grupos constituintes explica a proeminência assumida por Ulysses Guimarães (Presidente da Assembléia) e Bernardo Cabral (que, de relator da Comissão de Sistematização, passou a relator-geral da Assembleia).

JC – Quais temas poderiam ter sido melhor elaborados?
JA – Quando havia divisões internas nos blocos constituintes da Sistematização e do “Centrão”, como se deu em alguns temas — dentre os quais se pode destacar o conceito de produtividade de imóveis rurais, o regime dos juros bancários e, especialmente, o regime de governo (presidencial ou parlamentar) —, votações atabalhoadas por excessivos pedidos de esclarecimento dificultaram ou mesmo impediram a promoção mais abrangente dos debates pelas lideranças.
O caso mais intenso de dissociação entre as correntes constituintes, abortando tentativas de concessões mútuas entre elas, foi o encaminhamento do regime de governo. No “Centrão” era tamanha a divisão que sequer houve proposta coletiva do movimento sobre o assunto (embora ela também fosse significativa na Sistematização). As tendências parlamentaristas e presidencialistas, apesar das iniciativas de algumas lideranças neste sentido, não confluíram num sistema híbrido coerente que angariasse o consenso obtido em outros temas da ordem pública. Assim, o presidencialismo aprovado na sessão de 23 de março de 1988 continha ainda mais elementos do regime de gabinete que nosso atual formato institucional, de modo que conseguiu desagradar ambas as correntes nas críticas posteriores à decisão tomada, mas sem unificá-las no empenho de compatibilizá-los ao regime presidencial. Os alertas de lideranças, como do deputado Michel Temer e do próprio relator Bernardo Cabral, foram verdadeiros vaticínios sobre o desdobramento que adviria do modo como as medidas provisórias foram inseridas no sistema político.

JC – Isto explicaria as dificuldades políticas e jurídicas trazidas pela magnitude das medidas provisórias, desde a Carta de 1988?
JA – A pesquisa nos registros constituintes localizou a fonte dos problemas embutidos na medida provisória: ela galvanizou apoios parlamentaristas e presidencialistas por razões diversas (respectivamente, prestigiando a figura de eventual Primeiro-Ministro ou atualizando a tradição dos decretos-leis), mas não foi objeto, após a vitória do sistema presidencial, de uma ampla negociação para assentar sua operacionalidade; o que se fazia imprescindível, pois estávamos forjando um presidencialismo no qual se incrustavam institutos parlamentaristas. Esta adaptação continua tão imprescindível hoje quanto na época e sua necessidade não foi suprida pelo plebiscito de 1993, já que ele apenas ratificou o padrão presidencial do sistema, sem dispor de seus acessórios parlamentaristas. Em matéria de regime de governo, acessórios são igualmente essenciais.
A falta de uma discussão política ampla para coadunar a medida provisória no regime presidencial propiciou sua instrumentalização — dada sua indelimitação formal — de modo a obstaculizar o exercício legislativo e instabilizar o exercício jurisprudencial, pela sua edição, virtualmente, sem peias.

JC – Neste sentido, a proposta do atual Presidente da Câmara dos Deputados, Dr. Michel Temer, de restringir o escopo das medidas provisórias, contribui para aperfeiçoar nossa ordem constitucional?
JA – Mais do que aperfeiçoá-la, ela a completa. É a reforma constitucional de maior importância histórica para o nosso sistema político, pois assentar o regime de governo é condição fundamental para a coesão dos demais segmentos da institucionalidade, como o funcionamento do sistema eleitoral e partidário.
Estou absolutamente empolgado com a iniciativa do Presidente Michel Temer, pois a principal conclusão das pesquisas foi revelar a dificuldade constituinte de confluir nesta parcela da ordem constitucional. Merece o apoio de todas as forças políticas e da comunidade jurídica em geral, de onde sempre provieram críticas da banalização das medidas provisórias.
Fixar as matérias que possam ser objeto de medida provisória conferiria previsibilidade mínima ao instituto, a qual, ao contrário do que se poderia imaginar, prestigia o Presidente da República, já que os temas a serem explicitados seriam, obviamente, de acentuada relevância para o País. Propiciaria maior estabilidade à produção jurisprudencial do Judiciário, que exerceria, de modo mais concentrado, o cotejo entre matérias correlatas e legisladas. Restauraria o Legislativo no sistema de Poderes, ao favorecer maior equilíbrio na sua relação com o Executivo, para compartilhar o destino da ordem jurídica. Enfim, solidificaria as instituições básicas do presidencialismo semi-parlamentar brasileiro como experiência histórica. Todos precisamos apoiar a iniciativa do Presidente Michel Temer, pois seu sucesso fortalecerá a democracia brasileira.