O supremo tribunal federal e os direitos emergenciais

30 de abril de 2012

Membro do Conselho Editorial / Professor Titular Emérito da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UniRio)

Compartilhe:

 A tutela jurisdicional dos novos direitos não tem ocupado o espaço exigível nas revistas jurídicas técnicas, mas, com frequência, tem ocupado o quotidiano dos jornais, normalmente porque provocam inquietações no seu reconhecimento processual ou desestabilizam a leitura clássica dos fenômenos jurídicos. Todavia, a dinâmica da sociedade moderna, em ritmo significativo, demonstra que esses fenômenos se não podem escapar da ação compreensiva do direito, também não podem ser reduzidos à compreensão processual tradicional ou esquecidos como fatos sociais novos e infensos ao alcance jurídico.
Politicamente, essas questões, enquanto matéria determi­nante da vida política, têm sido enfrentadas mais pela iniciativa das medidas provisórias criadas pela Constituição de 1988 (art. 62)  – como iniciativa do Poder Executivo – do que como projetos de lei do Poder Legislativo, sempre determinado pelas regras de suas funções tradicionais, comprometidas com a produção das leis gerais. Atualmente, alega-se que as medidas provisórias que não seguirem o rito legislativo do § 9o do artigo citado para se converterem em lei chegaram a mais de 500 (quinhentos) e não apenas atravessaram 6 (seis) ou 7 (sete) governos, um período médio de 20 (vinte) anos, como também são, não apenas em tese, mas a própria ordem jurídica brasileira sobre assuntos emergenciais, nas áreas de meio ambiente, direito econômico, inclusão social, enfrentamento da miséria, impostos sociais, ensino universitário e técnico, moradias, alimentação e sobrevivência familiar de baixo extratos da população.
No contexto geral desta situação, ao contrário, a tradição jurídica brasileira sempre esteve presidida por decisões apoiadas no estrito direito positivo de alcance emergencial insignificante. Ainda, até muito recentemente, o princípio do dura lex, sed lex subsidiou o processo de formação acadêmica e instruiu as demandas judiciais, servindo mesmo como princípio indicador da segurança jurídica, abrindo-se em condições especialíssimas para o summum jus, summa injuria, que se explica no mesmo contexto das normas positivas.
A Constituição brasileira de 1988 abriu juridicamente este quadro, a ponto do próprio ex-presidente José Sarney entendê-la como inviável, mas os seus efeitos são principalmente notados na definição das garantias dos direitos fundamentais, o que tem viabilizado a transformação das decisões de mérito e também do encaminhamento processual final da definição do direito concreto em juízo. Neste contexto, temos assistido sucessivamente decisões que caminham no sentido de constitucionalizar o direito civil, o direito penal e, em dimensão incomum, o direito processual.
Este quadro, cada vez mais baliza seus procedimentos e suas apreciações casuísticas, apoiado no princípio do devido processo legal, rompendo o direito às resistências do quotidiano burocrático dos tribunais. Este fato, de qualquer forma, tem provocado grandes aberturas legais, ampliando o poder discricionário dos juízes, incomum na tradição jurídica brasileira, mas, muitas vezes, servindo-se das leis de regulamentação específica das aberturas constitucionais.
Ocorre, todavia, que apesar dos sucessivos sinais de rompimento de órgãos da estrutura judiciária com o saturado legalismo, como ocorreu, por exemplo, no caso do acórdão sobre a lei da ficha limpa – ou mesmo no caso das competências do Conselho Nacional de Justiça –, a decisão do Supremo Tribunal Federal sobre a criação do Instituto Chico Mendes, tomou uma natureza marcante, e não apenas divisória. Esta decisão do Supremo, não se restringiu apenas a uma decisão sobre direito novo, mas numa reversão incontinente de matéria decidida imediatamente antes, criando um precedente não propriamente determinado em lei, mas, pelo constrangimento da extensão fática de leis originárias da conversão de medidas provisórias.
Admitindo como dispensável, até aquela data, a apreciação parlamentar prévia das medidas provisórias, anteriormente à sua aprovação plenária por Comissão Mista da Câmara e do Senado, tornou-se a mais inédita abertura do processo de decisões da Suprema Corte brasileira, deixando visível uma ampla faixa da vida legislativa vigente, cuja vigência não se instalou necessariamente a partir de absoluto descumprimento de regra legislativa. Esta decisão, aliás, não propriamente deve ser considerada de uma perspectiva modificativa, mas, demonstra os esforços da Suprema Corte para implementar uma percepção mais razoável dos impositivos limites da interpretação tradicional, abrindo-se para o seu novo papel na construção da sociedade brasileira emergente, como tem demonstrado, buscando, semelhantemente, alcançar, senão os parâmetros criativos da Corte Suprema americana, uma certa adaptabilidade a situações impositivas dos fatos novos juridicamente relevantes, como se antevê no caso do projeto em apreciação sobre o aborto anencéfalo.
Neste contexto, é bem verdade que a fundamentação pública da decisão é imprescindível à preservação da segurança jurídica para se evitar os sucessivos transtornos colaterais, sendo razoável que assim o seja, porque se preserva o Direito como referência de organização da sociedade. Não há como desconhecer, todavia, que, prescrevendo-se a validade do dispositivo constitucional saneador, a comissão mista do Congresso para apreciar Medida Provisória a partir do reconhecimento de constitucionalidade do Instituto Chico Mendes, o Supremo Tribunal Federal – STF, ciente de que as proposições políticas de Estado estão comprometidas com políticas de inclusão social, não deixa de reconhecer que o princípio da segurança jurídica pode vincular-se também às políticas de mudanças sociais comprometidas com as camadas sociais emergentes.
Na verdade, não há como desconhecer que as questões emergenciais do Brasil real estão sendo enfrentadas por este especial caminho em que, por razões também técnicas, o provisório se converte em definitivo, permitindo-se afirmar que, dado que as comissões prévias mistas do Congresso não funcionam no prazo constitucional (14 dias), deixa-se ao relator da Medida Provisória o encaminhamento da decisão. O Brasil emergencial, a se tomar como referência o grande número de medidas provisórias convertidas em leis sem que se obedecesse o exato trâmite, é o que se conclui, é inconstitucional, ou seja, está apoiado lamentavelmente, em robustos parâmetros, para não dizer autoritários, de uma tênue legalidade.
Neste sentido, o fenômeno que veio a público devido a uma retomada de consciência do Supremo Tribunal é um efetivo reconhecimento de que, ao se desconhecer a tênue linha da constitucionalidade, apoiando-se no razoável suporte do artigo 27 da lei federal no 9.868/99 de 10 de novembro de 1999 – que permite a remodelação da declaração de inconstitucionalidade (modulação da temporalidade) –, estar-se-ia evitando que, se não absolutamente pelo menos relativamente, sobrevivêssemos sobre tênue linha constitucional.
De qualquer forma, vale observar que o sempre “previdente” ex-presidente do STF e também ex-ministro da Justiça, Nelson Jobim – de quem tive a honra de ser secretário de Direito Econômico –, em observação recente concluiu que “é sempre possível reconhecer que a imprevidência da inconstitucionalidade”, na percepção de seus efeitos catastróficos, pode sempre retomar a sua natureza constitucional. Esta “é a solução jurídica alemã para evitar o caos, declara(ndo) a inconstitucionalidade com efeitos ex nunc (desde agora), e o que pelo menos em princípio, não fortalece a declaração de constitucionalidade de efeitos ex tunc (desde antes)”.
Finalmente a situação jurídica, todavia constitucional, continua confusa, porque a decisão e a lição do ex-presidente do STF inibe a inconstitucionalidade antecedente mas pode não suspendê-la antecedentemente. Isto significa que, para que prevaleçam estas práticas é (seria) preciso que se emende(dasse) a Constituição, mas, não sendo emendada, seria preciso que a decisão do Supremo tivesse um alcance extensivo, o que não é uma prática cursiva do casuísmo jurisdicional brasileiro.
De qualquer forma, reconforta o reconhecimento das dificuldades do potencial conflito normativo de grande extensão política que, nos Estados Unidos – cuja corte Suprema tem sido um exemplo para o constitucionalismo moderno, dentro de suas prerrogativas, mas evitando o açodamento desconstrutivo, no risco de insegurança jurídica – é razoável entender que, em decisões subsequentes, que tratem de assuntos semelhantes em ações antecedentes, não é de todo impossível assentar soluções constitucionais de adaptação corretiva, evitando o risco extensivo da inconstitucionalidade.