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O risco de inversão da lógica social no setor de saneamento básico

10 de dezembro de 2018

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No dia 6 de julho de 2018, na manhã que precedia um jogo do Brasil na Copa do Mundo, a Presidência da República anunciou a Medida Provisória no 844/2018, publicada em 9/7/2018, com vistas a atualizar o marco legal do saneamento básico e transferir para a Agência Nacional de Águas (ANA) a competência para editar normas nacionais para o setor.

Ao contrário da edição da Lei no 11.445, de 5/1/2007, que foi precedida de ampla discussão com a sociedade e com os atores do setor, a MPV foi editada às pressas e apresentada ao Congresso Nacional em meio a uma Copa do Mundo, sucedida pelo período eleitoral, no qual sabidamente os parlamentares estão com suas atenções voltadas para as eleições.

Dada a relevância do saneamento básico para a realização de vários direitos sociais assegurados pela Constituição da República (saúde, vida e liberdade entre outros) não parece adequado que se imponham regras de maneira arbitrária, por medida provisória, devendo as propostas serem apresentadas pelo Governo Federal mediante um projeto de lei a ser amplamente debatido com a sociedade.

Também não se vislumbra qualquer urgência apta a ensejar a aplicação deste tipo de ato políticonormativo com força de lei (art. 62 da CF/88) da forma antidemocrática como se pretende.

Desde a implementação do Plano Nacional de Saneamento (PLANASA) na década de 1970, os serviços de água e esgoto são prestados com base em políticas de “subsídios cruzados” entre categorias, usuários e sistemas, de forma a possibilitar que esta prestação seja regular e com tarifa uniforme, conforme se verifica no art. 11 do Decreto no 82.587/78.

O marco regulatório do setor manteve estes instrumentos tarifários, como se pode verificar nos artigos 29 e 31 da Lei no 11.445/2007, que revogou a legislação anterior.

O objetivo destes subsídios cruzados entre usuários é cobrar um preço mais elevado daqueles com maior poder aquisitivo, a fim de praticar tarifas mais acessíveis para os menos favorecidos (princípio da solidariedade), fomentando a aplicação de tarifa social. Esta política tarifária também visa o atendimento de localidades ou sistemas deficitários, com os recursos captados nos superavitários, isto através da cobrança de uma tarifa uniforme para todos os sistemas operados, fundada no equilíbrio econômico e financeiro destes.

Busca-se evitar que sistemas maiores, em regra geradores de renda (superavitários), tenham uma tarifa menor, enquanto os sistemas menores, via de regra ocupados por populações mais carentes (deficitários), sejam penalizados com tarifas maiores.

Na prática esta política pública visa fazer transferência de renda ou de recursos entre categorias de usuários, no qual a menor tarifa é fixada para o consumo mínimo (de salubridade) e na medida do aumento do consumo, nos blocos superiores, as tarifas passam a ser maiores.

Logo, a política de “subsídios cruzados” tem papel preponderante na evolução do atendimento da população brasileira, assim como na consecução do objetivo de universalização dos serviços de água e esgoto, pois todos os custos, despesas e receitas dos sistemas operados compõe uma única planilha tarifária, o que possibilita prestar um serviço de mesma qualidade em todos eles, mediante um mecanismo de tarifação redistributiva.

O acesso aos serviços de saneamento básico é hoje uma questão central para as cidades brasileiras, sendo que as parcelas mais pobres da população urbana, sobretudo nas periferias metropolitanas e no meio rural, ainda se encontram excluídas do acesso aos serviços, com reflexos negativos na saúde e na qualidade do meio ambiente.

Atualmente os serviços são prestados, em sua maioria, por Companhias Estaduais de Saneamento Básico (CESBs) que atuam em regime de prestação regionalizada, com tarifa uniforme e aplicação de subsídios cruzados, no qual as capitais e grandes cidades costumam subsidiar a prestação de serviços com a mesma qualidade e tarifa das pequenas localidades.

Desta forma, o Governo tem deixado de utilizar os já limitados recursos orçamentários para o financiamento do setor, posto que são as receitas oriundas dos serviços que viabilizam a atuação dos prestadores. Os recursos da União são disponibilizados mediante organismos financiadores (Caixa Econômica Federal e Banco Nacional de Desenvolvimento Social), através de empréstimos garantidos pelas contrapartidas tarifárias.

Analisando o texto da proposta de alteração da Lei de Saneamento verifica-se que o Governo Federal, sob a alegação de que pretende estimular a participação privada no setor de saneamento, privilegiou esta participação em detrimento da atuação das empresas estatais (CESBs) e sem atentar para os riscos da quebra da política de subsídios e, consequentemente, do atraso na meta de universalização pretendida.

Até a edição da Medida Provisória, no ambiente democrático vigente dentro do sistema econômico capitalista da Constituição de 1988, competia ao titular dos serviços verificar qual a melhor alternativa para a prestação dos serviços de água e esgoto, podendo se dar diretamente pelo Poder Público ou mediante gestão associada de delegação para companhias estaduais, nos termos do art. 241 da Constituição (contrato de programa – Lei no 11.107/2005); ou por concessão mediante processo licitatório para empresas da iniciativa privada, conforme previsto no art. 175 da Constituição (contrato de concessão – Lei no 8.987/95).

O art. 10-A, introduzido pela Medida Provisória no 844/2018 na Lei no 11.445/2007, privilegia a iniciativa privada quando da delegação de serviços pelo Poder Público, situação que pode lhe direcionar a prestação dos sistemas superavitários de água e esgoto, relegando para o Estado o atendimento apenas de sistemas deficitários.

Isto porque o texto proposto prevê que “nas hipóteses legais de dispensa de licitação, antes da celebração de contrato de programa, previsto na Lei no 11.107/2005, o titular dos serviços publicará edital de chamamento público visando a angariar a proposta mais eficiente e vantajosa para a prestação descentralizada dos serviços públicos de saneamento”, ou seja, antes de optar pela gestão associada com a prestação de serviços por empresa estatal (contrato de programa), se pretende impor aos seus titulares que haja uma chamada pública com o fim de verificar se existe proposta privada para a prestação dos serviços, sendo que uma das condições é a divulgação pública da proposta estatal (“VI – o valor estimado do contrato de programa ou do contrato”).

Somente “na hipótese de não haver o número de interessados previsto no §2o no chamamento público, o titular poderá proceder à assinatura de contrato de programa com dispensa de licitação, conforme o disposto no inciso XXVI do caput do art. 24 da Lei no 8.666/1993”, ou seja, na ausência de proposta privada é que o titular pode optar pela gestão associada.

O dispositivo, em tese, é inconstitucional na medida em que a União define regras de contratação para os entes federados que detêm a competência constitucional para legislar e definir a forma de prestação dos serviços de interesse local (municípios – art. 31 da CF/88) e metropolitano (estados e municípios – decisão da ADI 1842-RJ).

Sob a alegação de que está estabelecendo diretrizes para o saneamento, o novo texto da lei interfere na autonomia político-administrativa dos titulares dos serviços, eis que na Constituição coexistem os artigos 175 e 241, permitindo a delegação destes via licitação ou gestão associada, por decisão do ente competente. Não existe a hipótese constitucional de limitar a atuação dos titulares no que tange à opção pela forma de prestação dos serviços, assim como não existe previsão de que a iniciativa privada deve ter prioridade (privatisationforcée da doutrina européia) sobre a gestão associada.

Ao direcionar a decisão dos estados e municípios acerca da forma de prestação dos serviços delegados, há violação do pacto federativo, pois o ato questionado esvazia e restringe substancialmente a autonomia dos citados entes. Por força da Constituição Federal e das leis orgânicas municipais, compete ao titular dos serviços decidir acerca da forma da sua respectiva prestação (via direta ou indireta), não podendo o legislador federal impor a obrigatoriedade a este de privatizar a respectiva prestação.

Além disso, se os sistemas superavitários migrarem para a iniciativa privada e os deficitários ficarem com o Estado, situação que é previsível neste caso, corre-se o risco de uma elevação de tarifas para as pessoas mais carentes, ante a diminuição das tarifas em grandes centros, onde o poder aquisitivo é maior, já que os cofres públicos não têm mais fonte de financiamento para fazer frente a estes déficits mediante subsídio direto.

Levando em consideração que as populações mais carentes, assim como os maiores déficits sanitários estão nestes pequenos centros, haverá uma lógica social invertida, na qual os pobres e desassistidos pagarão mais caro por serviços essenciais de pior qualidade, ao passo que as pessoas que residem em localidades com melhor PIB/per capita pagarão tarifas menores por serviços universalizados pelas tarifas arrecadadas com a política de subsídios implementada por cinco décadas.

Ao que parece, a medida que o Governo Federal pretende implementar tende a ser desastrosa do ponto de vista social, afastando ainda mais o Brasil da meta de universalização dos serviços de água e esgoto e afrontando diretamente o princípio constitucional da dignidade humana.

Notas__________________________

1 Art. 11 – As tarifas deverão ser diferenciadas segundo as categorias de usuários e faixas de consumo, assegurando-se o subsídio dos usuários de maior para os de menor poder aquisitivo, assim como dos grandes para os pequenos consumidores.

2 Art. 29. Os serviços públicos de saneamento básico terão a sustentabilidade econômico-financeira assegurada, sempre que possível, mediante remuneração pela cobrança dos serviços: […]

§ 2o Poderão ser adotados subsídios tarifários e não tarifários para os usuários e localidades que não tenham capacidade de pagamento ou escala econômica suficiente para cobrir o custo integral dos serviços.

Art. 31. Os subsídios necessários ao atendimento de usuários e localidades de baixa renda serão, dependendo das características dos beneficiários e da origem dos recursos:

I – diretos, quando destinados a usuários determinados, ou indiretos, quando destinados ao prestador dos serviços;

II – tarifários, quando integrarem a estrutura tarifária, ou fiscais, quando decorrerem da alocação de recursos orçamentários, inclusive por meio de subvenções;

III – internos a cada titular ou entre localidades, nas hipóteses de gestão associada e de prestação regional. (BRASIL, Planalto Central. Lei no 11.445 de 5 de janeiro de 2007 – Estabelece diretrizes nacionais para o saneamento básico. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2007-2010/2007/lei/l11445.htm>. Acesso em: 14 mai. 2014).

3 Art. 38. O titular poderá prestar os serviços de saneamento básico:

I – diretamente, por meio de órgão de sua administração direta ou por autarquia, empresa pública ou sociedade de economia mista que integre a sua administração indireta, facultado que contrate terceiros, no regime da Lei no 8.666, de 21 de junho de 1993, para determinadas atividades;

II – de forma contratada:

a) indiretamente, mediante concessão ou permissão, sempre precedida de licitação na modalidade concorrência pública, no regime da Lei no 8.987, de 13 de fevereiro de 1995; ou

b) no âmbito de gestão associada de serviços públicos, mediante contrato de programa autorizado por contrato de consórcio público ou por convênio de cooperação entre entes federados, no regime da Lei no 11.107, de 6 de abril de 2005. (BRASIL, Planalto Central. Decreto 7217 de 21 de junho de 2010 – Regulamenta a Lei no 11.445, de 5 de janeiro de 2007, que estabelece diretrizes nacionais para o saneamento básico, e dá outras providências. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2007-2010/2010/Decreto/D7217.htm>. Acesso em: 02 de ago. 2018).