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O Processo Penal Brasileiro e o Novo Impulso Pela sua Modernização

5 de junho de 2000

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A iniciativa, a metodologia e os anteprojetos da reforma

Estavam o Instituto Brasileiro de Direito Processual e a Associação dos Magistrados Brasileiros buscando caminhos para reformular a legislação processual quando, juntamente com o Ministério da Justiça, resolveram entregá-la à direção da Escola Nacional da Magistratura.

Em relação ao processo civil, adotou-se então, como metodologia, dentro de uma linha prioritária de simplificar, agilizar e dar efetividade: a)        localizar os pontos de estrangulamento da prestação jurisdicional; b) deixar de lado divergências de ordem doutrinária ou meramente acadêmicas;c) encaminhar as sugestões não em um único anteprojeto, mas através de vários, setoriais, inclusive para viabilizar a aprovação no Congresso Nacional, considerando que um único pedido de vista poderia comprometer todo o trabalho;d)    aproveitar a própria disposição dos artigos existentes, abrindo espaço para novos se necessário (v.g., CPC arts. 272/273, 478/479), mas sem alterar a fisionomia dos Códigos; e)        buscar o consenso nas alterações propostas.

Com tais objetivos, após debates, reflexões, críticas e sugestões recebidas, onze projetos foram encaminhados ao Legislativo.

Este, embora a efervescência política, causada pelo impeachment, pelo escândalo do orçamento, pela frustrada revisão constitucional e pela proximidade das eleições, até o final de junho de 1994 já havia convertido em lei três desses onze projetos. Posteriormente, outros sete foram também aprovados, restando sobrestado apenas um, concernente às denominadas “demandas múltiplas”, no aguardo da “Reforma do Judiciário”.

Recentemente, dando seqüência à Reforma, agora em sua segunda etapa, outros três e importantes anteprojetos vieram a ser elaborados e entregues ao Ministério da Justiça, para encaminhamento ao Congresso Nacional.

Em relação ao processo penal, cujos trabalhos tiveram início mais lento, observando-se a mesma metodologia, uma Comissão se encarregou da formulação dos textos básicos.

O resultado desses trabalhos foi publicado no DOU de 30 de junho de 1993, não apenas para ciência dos interessados mas sobretudo para o recebimento de críticas e sugestões, como então se fez constar, com o escopo do aperfeiçoamento dos textos e da democratização do processo de reforma.

Sobre referidos textos, e as manifestações recebidas, que foram numerosas, laborou uma segunda Comissão, que se encarregou da revisão e elaboração final dos anteprojetos, tendo até mesmo ampliado o número dos textos inicialmente preparados. O DOU de 16 de março de 1994 publicou, no expediente do Ministério da Justiça, referidos anteprojetos.

Os anteprojetos

Tomando por base o texto desses anteprojetos, a Comissão, coordenada pela Escola Nacional da Magistratura e integrada por magistrados, advogados, membros do Ministério Público, delegados, todos eles professores universitário e/ou doutrinadores, houve por bem proceder a uma minuciosa revisão daquele documento, por ela mesma elaborado, daí resultando o total de dezesseis anteprojetos, assim distribuídos, publicados na íntegra no DOU de 25.11.94: 1º Conjunto: Do inquérito policial; do procedimento ordinário; dos procedimentos sumário e sumaríssimo; da suspensão condicional do processo. 2º Conjunto: da prova ilícita; da prova pericial; da prova testemunhal; da defesa efetiva. 3º Conjunto: da citação edital e da suspensão do processo;  da intimação. 4º Conjunto; da prisão e outras medidas restritivas; da fiança; da prisão temporária. 5º Conjunto: do agravo; dos embargos. Projeto Isolado: Do júri.

Os participantes

Participaram desses trabalhos, por ordem alfabética, além de outras eventuais presenças, os Professores Ada Pellegrini Grinover, Antônio Magalhães Gomes Filho, Antônio Nabor Areias Bulhões, Aristides Junqueira de Alvarenga, Edson Freire O’Dweyer, Fátima Nancy Andrighi, Francisco Camargo Lima, José Barcelos de Souza, Luiz Carlos Fontes de Alencar, Luiz Flávio Gomes, Luiz Luisi, Luiz Vicente Cernicchiaro, Marco Aurélio Costa Moreira de Oliveira, Miguel Reale Júnior, René Ariel Dotti, Roberto Maurício Genofre, Rogério Lauria Tucci, Sidnei Agostinho Beneti e este expositor, que os presidiu.

Principais inovações

Destacavam-se entre as principais inovações, assinaladas na exposição publicada no DOU e posteriormente aprimoradas em sua redação e em seu conteúdo: a)    a modernização do julgamento pelo tribunal do Júri, através de medidas como a simplificação e redução dos quesitos, a dispensabilidade da presença do acusado, a supressão do libelo e do protesto por novo júri, o saneamento prévio, a escolha e convocação dos jurados, a legitimação para requerer-se o desaforamento, a disciplina e organização da pauta, a maior liberdade do jurado na formação do seu convencimento; b) a melhor disciplina do procedimento ordinário, estabelecendo-se inclusive contraditório prévio ao recebimento da denúncia, na linha hoje adotada pela maioria dos estatutos processuais penais modernos, privilegiando-se os princípios que regem a oralidade, especialmente os da imediação e da concentração; c) a adoção dos procedimentos sumários e sumaríssimo para os contravenções e os crimes punidos com pena de detenção, realizando-se interrogatório, instrução e julgamento em uma única audiência, priorizando os princípios da oralidade, da informalidade e da celeridade; d)a conceituação, como infrações penais de menor potencial ofensivo, das contravenções e dos crimes a que for cominada pena máxima de dois anos de detenção, submentendo-as ao procedimento sumaríssimo e admitindo-se, ressalvadas as exceções legais, a tentativa de conciliação nessas modalidades de infração, prevendo-se reparação do dano ou suspensão condicional do processo em não havendo dano ou na impossibilidade econômica da sua reparação; e) a preocupação em tutelar a vítima, não apenas quanto à reparação nas hipóteses de transação,com fixação de um valor mínimo para a reparação dos danos causados e considerando os prejuízos sofridos pelo ofendido, executando-se esse valor após o trânsito em julgado da sentença condenatória, sem prejuízo da liquidação para apuração do dano efetivamente sofrido; f) a intimação do defensor constituído, do advogado do querelante e do assistente da acusação através do órgão incumbido da publicação das intimações, em havendo, no qual deverão ser arrolados, separadamente, na mesma edição e em ordem alfabética, os nomes dos advogados; g) a adoção do agravo, nos próprios autos ou por instrumento, com efeito suspensivo nos casos que enumera e naqueles em que, a critério do relator, possa resultar da decisão dano grave de difícil reparação, sendo relevante a fundamentação; h) a uniformização, com o processo civil, dos prazos relativos aos embargos de declaração e aos embargos infrigentes; i) a suspensão do processo e do prazo da prescrição, se o acusado, citado por edital, não comparecer nem construir advogado, podendo o juiz, nesses casos, determinar a produção antecipada das provas consideradas urgentes e decretar a prisão preventiva nos termos do art. 312, CPP;  j) o prosseguimento do processo sem a presença do acusado que, citado ou intimado pessoalmente, para qualquer ato, deixa de comparecer sem motivo justificado, assim como daquele que, em caso de mudança, não comunica o seu novo endereço ao juízo, com o que se evitará o abusivo fenômeno da prescrição, tão freqüente; k) a imprescindibilidade da defesa efetiva, com nomeação de outro defensor se insuficiente a mesma se apresentar; l) a suspensão condicional do processopor prazo determinado, no qual não flui o prazo prescricional, submetendo-se o acusado a regime de prova, observados determinados requisitos, dentre os quais pena mínima a ele atribuída não superior a um ano, bons antecedentes e obrigação de reparar o dano causado pelo crime, declarando-se extinta a punibilidade se expirado o prazo sem revogação da medida, inovação que tem similar no melhor direito estrangeiro, a descongestionar o foro criminal; m) a melhor disciplina do inquérito policial, com substituição deste pela “autuação sumária” nas infrações penais de menor potencial ofensivo; n) o aprimoramento do texto da Lei nº 7.960/1989, que trata da prisão temporária, destinada às investigações policiais; o) as modificações quanto ao instituto da fiança, para aperfeiçoá-lo, inclusive adotando escala de valores calcada no salário mínimo, substituindo tal modalidade de liberdade provisória nos casos de comprovada pobreza; p) a previsão da separação obrigatória dos presos provisórios em relação aos já condenados; q) a ampliação das hipóteses de prisão preventiva e a possibilidade de sua substituição por medidas restritivas de liberdade que dispensam o recolhimento à prisão, contribuindo para a melhoria do sitema carcerário; r) nos casos de crime contra a fé pública, a administração pública ou o sistema financeiro, a faculdade outorgada ao juiz de também impor o afastamento do acusado do exercício da função pública e o impedimento de sua participação, direta ou indiretamente, de licitação pública, ou em contrato com a administração direta, indireta ou fundacional, e com empresas públicas e sociedades de economia mista; s)     o dever de decidir o juiz motivadamente, na pronúncia, sobre a manutenção de prisão ou de medida restritiva de liberdade anteriormente decretada, decretando-a, tratando-se de réu solto, se atendidos os requisitos legais; t) A maior preocupação com a produção das prova pericial e testemunhal e repúdio à prova ilícita; u) A solução legislativa a algumas divergências de exegese, ajustando-se os anteprojetos a princípios e garantias constitucionais, a exemplo da preservação da privacidade e da presunção de inocência.

Os projetos

Ao encaminhar os projetos ao Congresso Nacional, o Executivo, em fins de 1994, já com outro titular na Pasta da Justiça, introduziu algumas alterações, o que forçou a Comissão a elaborar substitutivo e emendas aos projetos 4.895, 4.896, 4.897, 4.898 e 4.900, encaminhando-os ao relator na Câmara.

Infelizmente, ao contrário do que ocorreu no âmbito do processo civil, a “Reforma do Processo Penal” não recebeu o mesmo apoio, prestando-se hoje os trabalhos realizados apenas como referencial e subsídio para novas tentativas de reforma.

O espírito da Reforma

Os anteprojetos refletiram as tendências modernas do processo penal na busca de realizar o interesse público na prevenção e repressão da criminalidade, em acelerá-lo e dar-lhe eficácia, sem descurar das garantias e dos direitos do acusado, assim como a preocupação com a vítima e seus dependentes, atendendo à segurança jurídica e às coordenadas do Estado Democrático de Direito proclamado pela Constituição, que tem na dignidade da pessoa humana seu primeiro e mais valioso fundamento.

Após mais de meio século de vigência do Código de Processo Penal, surgem justificados reclamos da sociedade e novos instrumentos de política processual penal, em correspondência aos novos tempos sociais, políticos, econômicos e culturais. Os textos daqueles projetos se inserem nesse universo de inquietação, reflexões e esperança.

A retomada da Reforma, com a participação do Instituto Brasileiro de Direito Processual, e a previsão no texto da “Reforma do Judiciário”.

Após tantas expectativas e frustrações, em 1999 o Ministério da Justiça convidou o “Instituto Brasileiro de Direito Processual”, então presidido pela Profª Ada Pellegrini Grinover, a promover os estudos necessários à realização da reforma do Processo Penal.

Nesta linha de novas perspectivas, é de assinalar-se também a previsão do texto aprovado no 1º turno da “Reforma do Judiciário” na Câmara dos Deputados, segundo o qual o Congresso Nacional instalará, imediatamente após a promulgação da Emenda Constitucional, comissão especial mista destinada a promover, além de outros projetos de lei, no prazo de 180 dias, “alterações na legislação federal objetivando tornar mais amplo o acesso à Justiça e mais célere a prestação jurisdicional”.

Renovam-se as esperanças nesta alvorada de novo século, notadamente em um momento no qual tanto se reivindica uma nova Justiça penal, mais eficiente, eficaz e humana.