O ponto nevrálgico da nova Lei de Abuso de Autoridade

10 de dezembro de 2019

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A recém promulgada Lei no 13.869/2019, entre outras coisas, dispõe sobre os crimes de abuso de autoridade, revogando a Lei no 4.898/1965. A antiga lei foi sancionada por Humberto de Alencar Castello Branco, pouco tempo após o Golpe Militar de 1964. A lei atual, por sua vez, surge no interior de um Brasil democrático – uma democracia não tão forte como em nações de full democracy (a exemplo dos EUA), nem tão fraca como em uma anocracy (e. g. Venezuela). Anocracia, não é demais lembrar, consiste na hibridez entre democracia e ditadura e, até onde se pode ver, o Brasil não chegou a esse ponto – embora, como noticiado no jornal britânico “The Guardian”, o país venha se deparando com líderes da política nacional desejosos por dictatorship-era tactics, que invocam, até mesmo, o AI-5, conhecido por simbolizar o período mais nefasto da ditadura militar brasileira.

O novel ato normativo surge como uma resposta não republicana a integrantes das Polícias, do Ministério Público e do Poder Judiciário, os quais, nos últimos anos e no exercício do seu mister, investigaram, processaram e condenaram pessoas outrora intangíveis, dada a sua proeminência política e econômica. A título exemplificativo, Matthew Stephenson, professor de Direito Anticorrupção da “Harvard Law School”, analisa que, no Brasil, investigações no interior da Petrobrás levaram a condenações criminais proferidas contra um elevado número de pessoas, incluindo políticos integrantes do alto escalão nacional.

Roberto Livianu, presidente do “Instituto Não Aceito Corrupção”, rememora que, na década de 90, membros do Ministério Público e juízes travaram na Itália uma intensa e profunda luta anticorrupção, a qual, de modo inusitado, levou à prisão pessoas poderosas nos campos político e econômico, combatendo, com isso, a impunidade que as favorecia. Como revide à atuação acima, o autor narra que “o corpo político atacado reagiu fortemente e aprovou diversas leis que enfraqueceram e amesquinharam as Instituições do sistema de justiça”.

No Brasil – como na experiência italiana –, algo mudou após sucessivas lutas anticorrupção. A constatação quase diuturna de que no país há um “público preferencial da lei penal” (seletividade), composto especialmente por pessoas pobres, passou a incomodar. Incomodou tanto que o ministro do Supremo Tribunal Federal, Luís Roberto Barroso, defende atualmente uma seletividade “às avessas”, algo como mudar o foco do sistema penal para o combate aos crimes de colarinho branco – que são praticados por pessoas ricas. Por exemplo, no julgamento do Habeas Corpus no 126.292/SP, em 2016, o ministro sustentou claramente a seletividade “às avessas” em prol de uma maior igualdade relativamente ao público atingido pela persecução penal.

Certamente, as mudanças acima não foram festejadas por todos. Retaliações oriundas dos novos réus em terras tupiniquins não tardaram a chegar. A principal e mais recente delas consistiu em, mediante a aplicação de tipos penais indeterminados, ameaçar de prisão em flagrante, processo-crime ou pena o policial, o membro do Ministério Público e o juiz. Entre tantos, é o caso do artigo 25, caput, da Lei no 13.869/2019, que dispõe ser crime de abuso de autoridade “Proceder à obtenção de prova, em procedimento de investigação ou fiscalização, por meio manifestamente ilícito”. Mas, o que significa “meio manifestamente ilícito”? Por ferir o princípio da taxatividade penal (decorrência do princípio da legalidade penal, expresso no art. 5o, XXXIX, da CRFB), o dispositivo acima incorre em flagrante inconstitucionalidade, conforme o escólio de Igor Pereira Pinheiro, André Clark Nunes Cavalcante e Emerson Castelo Branco. Eis, pois, o modus operandi da nova lei de abuso de autoridade: criminalizar condutas por meio de tipos penais vagos, os quais podem ser qualquer coisa – já que, tecnicamente falando, não definem nada. São cartas curingas, verdadeiros melés criminalizadores.

Atentos a isso, em julho de 2019, o Grupo de Trabalho contra o Suborno, pertencente à Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômico (OCDE), emitiu nota declinando a sua angústia com a introdução, no Brasil, de uma definição legislativa demasiadamente ampla para crimes de abuso de autoridade praticados por membros do Ministério Público e juízes, caracterizada por alguns elementos verdadeiramente subjetivos. Segundo a nota, o Grupo de Trabalho contra o Suborno está seriamente preocupado que, se aprovada – e já o foi –, essa definição excessivamente alargada possa servir como um mecanismo a ser utilizado por pessoas corruptas para, injustamente, atacar membros do Ministério Público e juízes que apenas estejam desenvolvendo regularmente a sua atividade-fim, o que pode afetar negativamente a capacidade do Brasil em cumprir o teor do artigo 5 da Convenção das Nações Unidas contra a Corrupção.

Evidentemente, excessos praticados por autoridades devem ser coibidos – aqui, não há novidades. Da mesma forma, é natural que a técnica legislativa do novo ato normativo, quase meio século à frente, seja superior à da vetusta Lei no 4.898/1965 – novamente, lê-se o óbvio. As duas sentenças são bastante intuitivas e não definem o que, hoje e agora, gostaríamos de problematizar como o ponto nevrálgico da nova lei de abuso de autoridade.

Limitar as discussões acerca da Lei no 13.869/2019 às duas obviedades acima representa um grave erro científico-investigativo – quiçá, uma nítida desonestidade intelectual –, que apenas pode ser desculpado se a opção metodológica do autor ou intérprete for exatamente esta: comentar somente a novel técnica legislativa e a necessidade de se combater excessos praticados por autoridades.

Portanto, este artigo difere significativamente, por exemplo, do propósito do trabalho elaborado por Guilherme Nucci, em recente texto publicado no jornal “Migalhas”, para quem a nova lei possui “vantagens” e é “tecnicamente superior” à legislação revogada. Neste ensaio, a intenção não é criticar a opinião acima. Apenas acreditamos existir algo fundo e anterior a essa afirmação doutrinária, que não pode deixar de ser abordado, como se possuísse somenos importância ou não passasse de um detalhe lateral. Muito pelo contrário.

Entendemos que a Lei no 13.869/2019 suscita alguns problemas dignos de cuidadosa análise. Quem propôs o respectivo projeto de lei? Sob que circunstâncias o projeto de lei vingou? Quanto mais fundamentada for a resposta a cada uma dessas perguntas, mais facilmente se chegará ao ponto nevrálgico do debate aqui proposto: examinar a finalidade não declarada da Lei no 13.869/2019. Não nos interessa neste trabalho o senso comum teórico, nas palavras de Warat, mas, aquilo que restou ocultado. Isso porque já sabemos o que foi declarado: segundo a doutrina de Rogério Greco e Rogério Sanches Cunha, em obra inédita sobre o tema, a nova legislação “nasce com a finalidade anunciada de modernizar a prevenção e repressão aos comportamentos abusivos de poder” (destaque nosso).

Assim, o propósito deste artigo também é hermenêutico. A presente análise não procura abordar o sentido jurídico de dispositivos do novel texto legislativo – o que, por sinal, já foi muito bem feito nos manuais citados ao longo deste ensaio –, mas, sobretudo, com apoio na lição do filósofo canadense Jean Grondin, promover o esclarecimento crítico de um entendimento que precede a redação legal, pois, certamente, há algo que lhe é anterior. Sem essa análise, sofreremos, inarredavelmente, um estreitamento quanto às possibilidades de interpretação, um fenômeno típico da ideologia, que, como denunciado pelo filósofo francês Paul Ricœur, não permite ao intérprete a desejada clareza e amplitude de visada.

Quem propôs aquilo que hoje é a nova lei de abuso de autoridade?

Em 2016, o Senado Federal recebeu o Projeto de Lei no 280, de autoria do senador da República Renan Calheiros, cuja biografia é de amplo acesso.

Por força da Resolução no 26/2013 do Senado Federal, é possível visualizar a opinião do cidadão acerca de qualquer proposição legislativa. O “sim” representa uma manifestação favorável do cidadão ao objeto do projeto de lei; o “não”, uma posição contrária. Veja-se, pois, o resultado apurado pelo Senado Federal, após o encerramento da consulta pública ao Projeto de Lei no 280/2016: 277.463 cidadãos o reprovaram, contra apenas 4.671 pessoas que o aprovaram, a representar, portanto, uma taxa de rejeição popular de 98,34%. Mesmo à luz de uma reprovação tão expressiva como essa, a proposição legislativa vingou, o que, no mínimo, coloca dúvidas sobre a importância da vontade popular para os trabalhos desenvolvidos por determinados senadores da República.

Sob que circunstâncias o Projeto de Lei no 280/2016 obteve sucesso legislativo?

Em 19/9/2019 (quinta-feira), o ministro do Supremo Tribunal Federal, Luís Roberto Barroso, no âmbito da Ação Cautelar no 4.430 (Inquérito no 4.513), autorizou medida de busca e apreensão no gabinete do senador da República Fernando Bezerra, à época líder do governo no Congresso Nacional. Três dias úteis depois, na noite de 24/9/2019 (terça-feira), o parlamento derrubou considerável parte dos vetos presidenciais ao polêmico projeto de lei.

Para se agudizar o quão enviesada foi a rejeição acima, cumpre um breve esclarecimento sobre a tramitação do veto. Os vetos presidenciais foram publicados no Diário Oficial da União em 5/9/2019. Segundo o artigo 66, §1o, da CRFB, após a publicação do veto, a Presidência da República encaminha mensagem ao Congresso Nacional, em até 48 horas, expondo a sua motivação. Nos termos do artigo 57, § 3o, IV, da CRFB, a protocolização dessa mensagem na Secretaria Legislativa do Congresso Nacional deflagra o prazo de 30 dias corridos para a deliberação do veto pelos parlamentares, em sessão conjunta. Para a apreciação do veto, o artigo 106, § 1o, do Regimento Comum do Congresso Nacional, estipula como data de convocação de sessão a terceira terça-feira de cada mês, “impreterivelmente”.

Ora, se o veto foi publicado no dia 5/9/2019, a sessão conjunta apreciadora da motivação presidencial deveria, impreterivelmente, ter ocorrido no dia 17/9/2019, isto é, a “terceira terça-feira” do mês de setembro. Contudo, tal sessão conjunta apenas foi convocada após a “incômoda” decisão do ministro do Supremo Tribunal Federal, Luís Roberto Barroso, proferida no dia 19/9/2019, em desfavor de um senador da República à época líder do governo no Congresso Nacional. A terceira terça-feira do mês de setembro de 2019 sequer contou com sessão conjunta no Congresso Nacional.

O ponto nevrálgico.

Muito se lê acerca da nova lei de abuso de autoridade. Vê-se autores de escol se dedicando a compreender as diversas expressões legislativas ali inauguradas. Guilherme Nucci, por exemplo, em artigo citado alhures, acredita que a lei é tão boa tecnicamente que policiais, membros do Ministério Público e juízes não deveriam se sentir atemorizados por ela. O autor defende que, se a intenção legislativa foi amedrontar, “o tiro saiu pela culatra”.

Apenas para fins argumentativos, suponhamos que o renomado autor esteja absolutamente correto. Ainda assim, caberia uma pergunta: o “tiro” do Legislativo, por si só, não possui relevância jurídica? Pensamos que sim. Leis enviesadas, dotadas de desvio de finalidade, afrontosas à Constituição brasileira e a tratados internacionais sobre direitos humanos dos quais o Brasil seja signatário (e. g. Convenção das Nações Unidas contra a Corrupção – também conhecida como Convenção de Mérida – e Convenção Interamericana contra a Corrupção), devem ser extirpadas do ordenamento jurídico via controle de constitucionalidade e de convencionalidade. É dever do Estado brasileiro outorgar a independência necessária aos órgãos responsáveis por prevenir a corrupção, para que possam desempenhar suas funções de maneira eficaz e sem nenhuma influência indevida (artigo 6, 2, da Convenção das Nações Unidas contra a Corrupção).

Daí o acerto da ADI no 6.238/DF, ajuizada pela Associação Nacional dos Membros do Ministério Público – CONAMP, segundo a qual a nova lei de abuso de autoridade, “como um todo, padece de vício por desvio de finalidade”, pois a sua aprovação buscou, a um só tempo, “uma clara retaliação a agentes públicos” e “a satisfação de interesses corporativos de uma classe específica”. A petição logrou êxito em enxergar a presença de algo fundo e anterior à redação legal da nova lei de abuso de autoridade, quando denunciou ao Supremo Tribunal Federal o desvio de finalidade do ato legislativo.

Se a sessão conjunta do Congresso Nacional para apurar os vetos presidenciais deveria ter ocorrido, impreterivelmente, na “terceira terça-feira” do mês (17/9/2019), porém, só veio a ser convocada no dia 24/9/2019, três dias úteis após a “desconfortável” decisão do ministro Luís Roberto Barroso (proferida em 19/9/2019), há claros sinais de retaliação, um desvio de finalidade legislativo que restou materializado por ocasião da derrubada dos vetos presidenciais.

Outrossim, parece nítido o objetivo de satisfação de interesses corporativos de uma classe específica. Afinal, mesmo diante de uma taxa de rejeição popular de 98,34%, o Projeto de Lei no 280/2016 vingou. Que interesse, então, contrário à vontade do povo, motivou o sucesso legislativo dessa proposição?

Como salientado anteriormente, não nos interessa neste trabalho o simples discurso. Há algo fundo e anterior a isso, precedendo, verdadeiramente, o texto legal: a finalidade não declarada da nova lei de abuso de autoridade. Tal finalidade foi ocultada porque é nada republicana. Logo, resta ao jurista hermeneuticamente orientado estudar o que esse desvio representa à luz de parâmetros como a Constituição brasileira, a Convenção das Nações Unidas contra a Corrupção e a Convenção Interamericana contra a Corrupção.

Por fim, não esqueçamos que a parametricidade constitucional deve ser praticada por todos e cada um de nós – e não apenas no interior do Supremo Tribunal Federal. O constitucionalista Uadi Lammêgo Bulos ensina que “No regime brasileiro da sanção de nulidade, é plenamente possível os Poderes Públicos deixarem de aplicar as leis que os seus órgãos decisórios reputarem inconstitucionais, sem prejuízo de posterior exame pelo Judiciário”. Segundo o autor, o Poder Executivo “não está compelido a cumprir leis inconstitucionais”, da mesma forma que o Poder Judiciário, “a começar pelo Pretório Excelso, o guardião da Constituição (art. 102, caput)”.

De tudo o que foi dito, o mais importante é lembrar as palavras do compositor Antônio Carlos Jobim: “O Brasil não é para principiantes”.