O liberum veto e o Ministério Público

10 de setembro de 2020

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O liberum veto (“oponho-me livremente”) era um dispositivo parlamentar na Comunidade Polaco-Lituana. Era uma forma de regra de votação por unanimidade que permitia a qualquer membro da Sejm (legislatura) forçar o término imediato da sessão atual e anular qualquer legislação que já havia sido aprovada na sessão gritando: Sisto activitatem! (“Paro a atividade!”) Ou Nie pozwalam! (“Eu não permito!”). A regra esteve em vigor desde meados do Século XVII até o final do Século XVIII nas deliberações parlamentares do Sejm.  Foi baseado na premissa de que, como todos os nobres poloneses eram iguais, todas as medidas anteriores ao Sejm tinham que ser aprovadas por unanimidade.

O liberum veto foi parte essencial do sistema político da Commonwealth, fortalecendo elementos democráticos e controlando o poder real, e foi contra a tendência em toda a Europa de ter um executivo forte (monarquia absoluta).

O liberum veto foi uma das principais causas da deterioração do sistema político da Commonwealth, particularmente no Século XVIII, quando potências estrangeiras subornaram membros da Sejm para paralisar seus procedimentos e a eventual destruição da Commonwealth nas partições da Polônia e na ocupação estrangeira, domínio e manipulação da Polônia pelos próximos 200 anos ou mais.

Piotr Stefan Wandycz escreveu que o “liberum veto havia se tornado o símbolo sinistro da antiga anarquia polonesa”. No período de 1573 a 1763, foram realizados cerca de 150 sejms, dos quais cerca de um terço não aprovou nenhuma legislação, principalmente por causa do liberum veto. A expressão “parlamento polonês” em muitas línguas europeias se originou da aparente paralisia.

O Ministério Público é um órgão independente, que não está vinculado a nenhum dos Poderes (Executivo, Legislativo e Judiciário). De acordo com a Constituição Federal, é uma instituição permanente que possui autonomia e independência funcional. A permanência quer dizer que não pode ser extinto. A autonomia administrativa, orçamentária e funcional o permite ser o único responsável pela gestão de seus recursos financeiros e de pessoal.

Sua independência é uma característica invocada para que exerça a função fiscalizadora do poder. Caso o MP fosse subordinado a qualquer um dos poderes, sua atuação seria questionável e parcial. Os procuradores e promotores do órgão estão subordinados a um chefe somente no âmbito administrativo. Cada qual é livre para seguir suas convicções dentro da lei.

As primeiras menções a sua função de fiscalizar a lei ocorreu nas Ordenações Manuelinas de 1521 e nas Ordenações Filipinas de 1603, que trouxeram a figura dos promotores de Justiça. Eles apareceram também em 1609, ano em que foi criado o primeiro tribunal de Justiça da América, o Tribunal da Relação da Bahia. Nele, o cargo tinha o nome de “Procurador dos Feitos da Coroa, Fazenda e Fisco e Promotor de Justiça”, cujo exercício ficava a cargo de um dos dez desembargadores que formavam a Corte.

No Rio de Janeiro, em 1751, criou-se o segundo Tribunal da Relação do país, transformado em 1808 na Casa de Suplicação do Brasil. Houve a separação do cargo de procurador e de promotor de Justiça, o que se configurou como o primeiro passo para separar totalmente as funções da Procuradoria da República e do Ministério Público.

Em 1832, no Código de Processo Penal do Império, começou a sistematização das ações do Ministério Público. Em 1890, com o Decreto nº 848, que criou e regulamentou a Justiça Federal, reservaram um capítulo que tratou sobre a estrutura e as atribuições do Ministério Público no âmbito federal.

Entretanto, as funções do MP lhes foram atribuídas a partir da codificação das normas brasileiras. Os diversos códigos (Código Civil de 1916, Código de Processo Civil de 1939 e de 1973, Código Penal de 1940 e Processo Penal de 1941) permitiram o crescimento institucional da instituição.

Ao longo desses anos, algumas leis trataram especificamente do Ministério Público da União (Lei Federal nº 1.341/1951), do Estatuto do MP (Lei Complementar nº 40/1981) e da Ação Civil Pública (Lei nº 7.347/1985). Esta última foi extremamente importante para ampliar a área de atuação do órgão, que antes se situava majoritariamente na área criminal.

Com o advento da Constituição Cidadã em 1988, o Ministério Público foi expressamente instituído como um órgão que possui funções essenciais à Justiça. Foram definidas suas funções institucionais, bem como as garantias e vedações de seus membros. A partir de então, o MP tornou-se o órgão que conhecemos atualmente, uma espécie de “ouvidoria da sociedade brasileira”. A Constituição de 1988 reservou a ele a “defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis”.

A defesa da ordem jurídica e do regime democrático está atrelada à fiscalização do Poder Público em todas as esferas e das leis. O Ministério Público é responsável por garantir que todos se comportem de acordo com a legislação vigente. Isso vale para os governos e para os particulares.

Por este motivo, é considerado essencial à função jurisdicional do Estado. Ele participa ativamente dos processos da Justiça brasileira, contribuindo para sua boa administração. Certamente, não é possível intervir em todas as ações, apenas quando for de seu interesse. E quais são eles? Os interesses sociais e individuais indisponíveis.

Os interesses sociais são aqueles difusos e coletivos: meio ambiente; patrimônio histórico, turístico e paisagístico; consumidor; portadores de deficiência; criança e adolescente, comunidades indígenas e minorias étnico-sociais.

Os interesses individuais indisponíveis são aqueles próprios de cada pessoa, mas com relevância pública. O indivíduo não pode abrir mão deles, como direito à vida, saúde,  liberdade e educação. Todos esses interesses que definem as diferentes áreas de atuação.

Outras funções mais específicas são atribuídas ao órgão pela Constituição Federal, como zelar pelo respeito dos serviços de relevância pública, “exercer o controle externo da atividade policial” e “requisitar diligências investigatórias e a instauração de inquérito policial”.

A partir desse panorama das funções do Ministério Público, já é possível imaginar como ele funciona na prática e interage com o governo e com a sociedade.

O Ministério Público é também responsável pela ação civil pública, que protege os interesses sociais e o patrimônio público. Seu objetivo é responsabilizar a pessoa física ou jurídica por um dano causado à sociedade.

O Ministério Público é um órgão fundamental para a sociedade. Defensor das leis e dos interesses difusos e coletivos, é referência para toda a população. O espectro de poder do MP abrange todos os poderes e a sociedade, desde a persecutio criminis até a defesa do meio ambiente. Atualmente, nenhum projeto ou construção de grande porte, pode ser aprovado ou executado sem o acompanhamento ministerial.

Enfim, o poder do MP na sociedade brasileira transformou-se no liberum veto polonês. Qualquer membro, ou melhor, órgão, é um poder para paralisar qualquer obra pública ou privada, ou negócio público ou privado, questionar leis, decretos, normas infralegais ou constitucionais!

Sisto activitatem!  Nie pozwalam!

Eis o paradoxo: se por um lado, o Ministério Público corajosamente tenha liderado as maiores ações e medidas de combate à corrupção, ao crime organizado e à moralização da sociedade brasileira, por outro, o liberum veto do Parquet pode ser uma das principais causas da deterioração do sistema político brasileiro, em que seus membros paralisam as atividades públicas, em prefeituras, empresas públicas, estados e União, impingindo cada qual interpretações únicas em cipoal legislativo. A insegurança jurídica é incrível, pois qualquer contrato público, concorrência, emprenho, eleição ou declaração pode ser questionada.

Os licenciamentos ambientais de grandes empreendimentos de infraestrutura são caóticos. A Lei nº 6.938/1981, conhecida como Lei da Política Nacional do Meio Ambiente, define que a competência concorrente da ação governamental (federal, estadual e municipal) deve ser feita de forma coordenada, harmônica e integrada, na manutenção do equilíbrio ecológico. A Lei Complementar nº 140/2011 busca garantir uma atuação administrativa eficiente, por meio da harmonização das políticas e ações administrativas para evitar a sobreposição de atuação entre os entes federados. Ela consagrou o princípio da subsidiariedade, que determina a descentralização, estabelecendo que as decisões serão tomadas ao nível político mais baixo possível, sendo certo que tentativas de simplificação têm sido rechaçadas pelo Supremo Tribunal Federal, v.g. as Ações Diretas de Inconstitucionalidade nº 4615/CE e nº 5475/AP.

O Ministério Público não se sente jungido a nada disso, e, a par dos questionamentos das inúmeras leis estaduais destinadas à racionalização do licenciamento ou da regularização ambiental, casuisticamente há intenso questionamento judicial de praticamente todo investimento de grande e médio porte. A Lei Geral de Licenciamento Ambiental tramita no Congresso há alguns anos e já é intensamente questionada, anunciando-se complexos embates judiciais antes mesmo de promulgada.

O liberum veto ministerial forja a anarquia do Estado brasileiro e pode levar à sua destruição.