Edição 221
O Judiciário combatente: A falácia da pós-modernidade
3 de janeiro de 2019
Ney Bello Desembargador federal no TRF 1a Região Professor na UnB

Qual de nós gostaria de ser julgado pelo general do exército inimigo?
Quem reconheceria virtudes no adversário a ponto de permitir que ele condenasse ou absolvesse a nós mesmos, de acordo com a sua reconhecida competência e o seu notável conhecimento técnico? Quem seria magnânimo ao ponto de se deixar julgar pelo líder do inimigo, abandonando a tranquilidade que vem da imparcialidade do juiz?
Leitores e escritores foram julgados na Idade Média por quem se dedicava à investigação, à perseguição e ao combate à heresia, à apostasia e às ofensas a Deus, todas praticadas através das divulgações de ideias.
Sabemos – da história, da filmografia e da literatura – o resultado desta guerra: condenaram-se filósofos, professores, acadêmicos e livres pensadores. Naqueles idos, quem combatia também julgava, mas o fazia sempre – o combate e o julgamento – em nome de Deus.
Aquele que age para investigar, punir e acabar com as práticas objeto de seu diuturno afazer e das quais acusa terceiros terá os olhos atentos à inocência do réu e os ouvidos prontos a escutar seus argumentos de defesa? Respeitará cegamente a lei, mesmo que isso signifique que seu combate elegeu um alvo equivocado? Admitirá a inexistência de provas da acusação se for o caso? Terá equilíbrio e firmeza para reconhecer excessos se ele próprio conclamar o público a juntar forças consigo no combate ao objeto do processo?
Ou a presença no campo de batalha o torna apaixonado pela luta e pela vitória, não permitindo que reconheça atos equivocados de quem acusa e a inexistência de provas de culpa de quem está submetido a ele próprio?
Existem batalhas justas, é verdade! Tão justas e corretas que somente ser contra elas já coloca o Homem na contramão dos valores positivos. A guerra contra a corrupção é uma delas! Ela é feita de batalhas justas.
Ninguém – a não ser os criminosos – é a favor da corrupção!
Nenhum juiz é contra o combate à corrupção.
Mas vamos nos lembrar que ninguém era contra Deus na Idade Média.
A questão não é ser contra ou a favor do combate. É quem deve ter na sociedade moderna a atribuição de combater e quem deve ter a função de julgar também os excessos e os erros dos combatentes!
É preciso perceber que uma coisa é ser a favor ou ser contra a corrupção, e outra coisa bem diferente é a veracidade de todas as acusações de corrupção e a correção de todas as sentenças condenatórias por corrupção.
Quem combate está apto a perceber a inocência? Quem combate algo está apto a ser imparcial e a reconhecer que este alguém pode não ter praticado o ato do qual é acusado? Ou perceber que deve ser punido, mas para aquém da pena máxima? Ou o desejo de vencer é sempre mais forte para quem guerreia? Será que o comprometimento pessoal com a causa é mais poderoso que qualquer senso de imparcialidade ou de reconhecimento de que a acusação pode ser um erro?
O Judiciário combatente – de braços dados com a acusação, em uma cruzada pelo clamor público e pelos valores morais e absorvendo todo o discurso moralista do senso comum – com livre troca de apoios e informações com as forças e com os tarefeiros das acusações é uma realidade.
E é um erro!
Erro maior ainda quando Deus invade o Estado laico e conclama a todos para a cruzada metafísica contra um inimigo etéreo. Esta postura não mantém a nossa devida distância de movimentos teocráticos de outras plagas.
A ideia de Judiciário da Idade Moderna não se confunde com magistrado que implementa políticas públicas, que combate seja lá que ilícito for, ou que é protagonista de alguma parcela da moralidade. O ato de conclamar o senso comum e a mídia para o combate que o próprio juiz trava e também julga não é próprio da modernidade.
Não é função do Judiciário moderno.
É negar a função do juiz!
A prova maior disto é que não raro percebemos invasões de competência, interpretações retorcidas da lei, arbitrariedades na execução de decisões, personalismos em se tratando de réus específicos, desrespeito e incoformismo com decisões de instância superior, críticas pessoais ao próprio integrante do Judiciário que é discordante… Tudo isso é consequência da posição apaixonada que se revela quando o juiz deixa a sua função e se torna combatente. É a negativa do próprio conceito de magistrado que se oferece à sociedade.
O gosto pelo aplauso e pelo reconhecimento, tão naturais aos imperadores romanos – estes, sim, combatentes – agora invade o Judiciário e turva a sua imparcialidade, na medida em que evoca a atitude aceita e desejada pelo senso comum. Fácil explicar o desejo de palmas de um jogador; difícil ver no papel do magistrado sua necessidade.
A ideia de um Judiciário de combate é uma grande falácia!
Um equívoco histórico na medida em que nos afasta do papel do juiz e nos confunde com a acusação. Um erro que nos aproxima de um dos contendores, rompe nossa imparcialidade e nos leva de volta para a Idade Média.
Não ser general de tropas, parceiro da acusação ou tarefeiro do senso comum não implica concordar com o bandido. Isso implica tão somente entender que o papel constitucional do juiz precisa ser observado para que a sociedade se mantenha equilibrada e segura. O papel que legalmente nos cabe certamente não é conclamar as massas, declamar em redes sociais ou dirigir qualquer combate.
Se o juiz para além de jogador for um jogador agressivo, quem no estádio será capaz de respeitar o seu apito?
Buscando apoio no sempre sólido Aristóteles, falácia é um falso enunciado que simula uma verdade e nos impõe um equívoco e uma mentira.
A falácia do juiz combatente nos faz abandonar a construção moderna de um Poder Judiciário independente, imparcial e afirmativo dos direitos fundamentais. É um equívoco que bordeja o totalitarismo e o autoritarismo, que nos faz namorar com a ditadura da toga e mergulha a todos nós nos destinos morais de uma nova inquisição!