O eterno Quixote

6 de dezembro de 2021

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Lançamento marca o centenário de Orpheu Salles, fundador da Revista Justiça & Cidadania

“Temendo arbitrariedades, solicitei que todos saíssem da Rádio. Ficaram só funcionários e amigos. Funcionávamos no 22º andar de um prédio na Rua Santa Tereza 20, esquina da Praça da Sé. Prendemos os elevadores. Se os agentes do Dops quisessem parar as transmissões, que subissem duas dezenas de andares. Passados 30 minutos os policiais invadiram os estúdios. O delegado Alcides Cintra (velho conhecido por fazer o serviço sujo de prender sindicalistas e grevistas), muito irritado com o cansaço da subida, deu a ordem: Em nome do governador Ademar de Barros determino o encerramento das transmissões… 

Eu: – Venha, então, dizer aos nossos ouvintes a razão e o motivo da arbitrariedade, dizer que o Sr. Ademar de Barros mandando invadir uma propriedade privada, autorizada em seu funcionamento pelo Governo Federal…

O delegado: – A ordem é para encerrar. Portanto, encerra! 

Não encerrei. Disse ao microfone: ‘Nós não temos condições de resistir a essa arbitrariedade do governador Ademar de Barros. Vamos encerrar, mas nós voltaremos um dia para continuar a luta em favor da emancipação econômica, política e social da nossa terra. Até a próxima oportunidade!’

Em seguida, sinalizei ao técnico para pôr no ar o hino nacional, mas aos primeiros acordes, irritado, o delegado bradou: Dei ordens para encerrar, portanto, encerra! Eu: – O hino não pode se interromper.’

Ele ficou em silêncio. O hino nacional foi tocado até o fim”.

Logo após, o jornalista Orpheu dos Santos Salles foi levado para o Departamento de Ordem Política e Social (Dops) de São Paulo, tornando-se o primeiro preso político do regime militar, ainda na madrugada do dia 1º de abril de 1964. Ele voltaria a ser preso diversas vezes durante a ditadura, por conta de suas posições políticas e vínculos com o trabalhismo de Getúlio Vargas e João Goulart.

Esses e muitos outros episódios – que têm como pano de fundo a história política nacional, da ascensão de Getúlio Vargas à queda de Dilma Rousseff – são relatados com riqueza de detalhes na autobiografia “O eterno Quixote”, que acaba de ser lançada pela Editora JC como parte das comemorações do centenário de Orpheu.

“Fui seu fã desde sempre. Ainda criança, adorava escutar as histórias que contava sobre o Getúlio, sobre o Jango e sobre as peripécias que ele aprontava mundo afora. Por isso, fui o grande incentivador desse livro de memórias, mas ele resistia, dizia que eram histórias que não tinham importância, que não passavam de causos.  (…) Quando ele completou 90 anos, redobrei minha insistência para que começasse a escrever o livro. Chamei um amigo, o jornalista Francisco Vianna, que era especialista em biografias, para ajudá-lo no processo. Eles enfim começaram a se encontrar uma vez por mês em nosso sítio em Maricá e a registrar essas conversas, que eu adorava acompanhar”, conta no prefácio da obra o Editor-Executivo Tiago Salles, filho de Orpheu, que não teve tempo para concluir a série de entrevistas.

Decidido a homenagear o pai em seu centenário, Tiago Salles revisou o material, mesmo incompleto, e conseguiu lançar o livro em Brasília na entrega da última edição do Troféu Dom Quixote. Sucesso imediato, a primeira edição se esgotou no mesmo dia.

“Como dizia o Chico, a biografia começa como uma árvore de Natal, depois da estrutura principal pronta é que deveríamos colocar as bolinhas e os enfeites. Meu pai partiu quando ainda estávamos colocando as primeiras bolinhas… O Chico sempre me incentivava a terminar o livro, mas durante anos não consegui pegar na obra, era muita emoção, ainda não tinha superado o luto. Em 2019 o Chico também se foi, mas eu já havia prometido que até o centenário publicaria essa autobiografia. Resolvi não enfeitar mais a árvore e publicar como eles deixaram. Ficou muito interessante, mesmo sem as bolinhas, mas certamente aqueles que o conheciam vão sentir falta de algumas de suas muitas histórias. Por isso, desde já, convido todos os amigos e amigas de Orpheu a nos enviar suas lembranças para que possamos aprimorar o livro quando vier a segunda edição”, convida Tiago.