Edição 251
O compromisso de ajustamento de conduta dos royalties de Belo Monte no Município de Altamira
20 de julho de 2021
Daniel Braga Bona Promotor de Justiça do Estado do Pará

Após décadas de intensas controvérsias, idas e vindas de projetos, debates, audiências públicas e embates de toda sorte, em maio de 2016 a primeira turbina da usina hidrelétrica de Belo Monte entrou em funcionamento, gerando para os municípios de Altamira, Vitória do Xingu e Brasil Novo, no sudoeste do Estado do Pará, o direito ao recebimento de compensação financeira pela exploração de recursos hídricos para fins de geração de energia elétrica.
Ao longo dos anos, os royalties – nome popular da compensação – repassados aos municípios aumentou vertiginosamente, conforme novas turbinas entraram em atividade, incrementando a capacidade de produção de energia. Em novembro de 2019, a 18ª e última turbina foi inaugurada, garantindo a máxima eficiência inicialmente planejada para o maior empreendimento hidrelétrico 100% brasileiro.
Com efeito, no primeiro ano de funcionamento da usina, ainda em 2016, Altamira recebeu o valor de R$2.260.654,07. Quatro anos depois, em 2020, o montante pago alcançou impressionantes R$48.793.795,81. As informações podem ser confirmadas no site da Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel). Em suma: maior a geração energética, maior a compensação financeira (royalties).
Neste contexto, o trabalho realizado pela Promotoria de Justiça “na ponta da lança”, isto é, no atendimento diário das comunidades afetadas, projeta luzes sobre a profundeza da tragédia que o empreendimento representou na vida das populações tradicionais do Xingu, desde sempre invisibilizadas pelo discurso desenvolvimentista e pela sanha exploratória que só enxerga na Amazônia dígitos, não pessoas e sistemas ecológicos que reclamam tutela e preservação.
Sobre isso, contudo, há farta bibliografia. Ocorre que uma segunda tragédia, nem sempre tão debatida, sucede à primeira: a completa falta de transparência e probidade na utilização das enormes cifras dos royalties recebidos pelos municípios afetados. O resultado é dantesco: quando não se morre em decorrência dos graves impactos socioambientais, morre-se pelo desvio da sua compensação financeira.
Por essa razão, em maio de 2019, a 5ª Promotoria de Justiça de Altamira instaurou o Procedimento Administrativo nº 5/2019-MP/5ªPJ/ATM com o objetivo de acompanhar e fiscalizar a aplicação dos recursos financeiros oriundos dos royalties de Belo Monte dentro da sua área de atribuição, especialmente quanto ao Município de Altamira.
De início, requisitou-se às agências bancárias os extratos das contas utilizadas pelo ente público no manejo do dinheiro, porquanto é posição mais que assente na jurisprudência que o sigilo bancário de contas públicas não se estende ao Ministério Público. Surpresa nenhuma foi constatar que a Prefeitura, com o claro intuito de dificultar o rastreio da verba, promovia verdadeira miscelânea com recursos provenientes de outras rubricas, realizando várias transferências, entre contas bancárias diversas, antes de dar a devida destinação.
O primeiro questionamento que se fez incontornável foi o seguinte: Se nem o Ministério Público, órgão constitucionalmente destinado à fiscalização da Administração Pública, com uma série de mecanismos de controle à disposição, consegue visualizar de forma clara a destinação da compensação, o que esperar do ribeirinho do Rio Xingu, este sim, diretamente afetado pelo empreendimento?
Ainda que com todas estas dificuldades, entretanto, o órgão técnico de contadoria do Ministério Público logrou identificar alguns pagamentos relacionados à entrada da pecúnia compensatória nas aludidas contas bancárias, dentro do recorte de um ano, concluindo que a maior parte dos royalties recebidos por Altamira acabava servindo ao pagamento de contratos com empreiteiras locais, algumas investigadas pelo Ministério Público por esquemas de corrupção.
Demais disso, constatou-se que todos os anos o projeto de Lei Orçamentária Anual (LOA) apresentado à Câmara Municipal pela Prefeitura fazia uma previsão tremendamente diminuta da verba que entraria de royalties no ano seguinte. Por exemplo, a LOA aprovada em 2019 previu que Altamira receberia em 2020 apenas R$ 11 milhões, ao passo que o valor final verificado, conforme já mencionado alhures, foi de R$48.793.795,81. Ora, quando a receita é subdimensionada no orçamento, o seu excedente acaba sem vinculação. Trata-se, portanto, de mais um mecanismo garantidor de descontrole e falta de clareza no trato do dinheiro público.
Todos os estratagemas acima, quando somados ao fato de que a Lei nº 7.990/1989, ao regulamentar a compensação financeira pela exploração de recursos hídricos e minerais, não “carimbou” a verba, isto é, não garantiu destinação específica, criam verdadeira crise de transparência, um “buraco negro” no orçamento público meticulosamente orquestrado para fugir da fiscalização das instâncias de controle, como o Ministério Público e o Tribunal de Contas.
Por essa razão, significativo e inédito foi o compromisso de ajustamento de conduta assinado em 19 de abril de 2021 pelo Ministério Público Estadual e a Prefeitura de Altamira, estabelecendo pela primeira vez no Estado do Pará uma série de deveres de transparência relacionados aos royalties hidrelétricos. Mesmo quando pesquisados outros estados, nota-se que é rara a adoção de mecanismos como os constantes no acordo quanto à exploração de recursos hídricos, verificando-se com muito mais frequência nos royalties minerários.
No termo, a Prefeitura comprometeu-se a movimentar os valores em contas bancárias exclusivas, de modo a facilitar o rastreio, enviando ao Ministério Público extratos mensais. Outrossim, publicará em link específico na Internet, a cada quatro meses, planilha detalhada da destinação da verba, indicando, dentre outras informações, o tipo e a finalidade de cada despesa.
Sem prejuízo, a Prefeitura de Altamira realizará escutas da sociedade civil organizada, a fim de construir de forma democrática um projeto de lei de regulamentação dos royalties, prevendo percentuais de destinação a setores prioritários, de acordo com o mérito administrativo.
Deverá, por fim, estruturar as suas leis orçamentárias de forma mais prudente e racional, incluindo na LOA previsão específica para os gastos dos royalties, de acordo com uma estimativa de recebimento que represente a média dos valores efetivamente repassados ao Município nos últimos três anos.
Diante da ausência de precedentes concretos, as medidas acima são embrionárias e certamente estarão sujeitas a rigoroso monitoramento do Ministério Público para fins de aperfeiçoamento. Nada proíbe, antes recomenda, que ajustes possam ser feitos no futuro, a depender da efetividade verificada no decorrer do cumprimento das cláusulas.
O primeiro passo, contudo, foi dado. Esperamos que a experiência de Altamira e Belo Monte possa inspirar outros municípios a adotarem mecanismos de igual viés, garantindo concreção a princípios administrativos tão caros à Constituição Federal, malgrado sejamos conscientes do pouco interesse político ainda reinante na regulamentação desta modalidade de recurso.
Quanto ao Ministério Público, somos convictos de que uma atuação preventiva e resolutiva muito melhor tutela o patrimônio público que a exclusivamente repressiva, que pouco consegue produzir em termos de ressarcimento ao erário e responsabilização, não por faltar esforço, mas em decorrência das nossas mais que conhecidas deficiências estruturais.
Nesse contexto, o compromisso de ajustamento de conduta dos royalties de Belo Monte representa poderosíssimo instrumento de proteção das finanças públicas e de garantia da destinação social adequada da compensação financeira do maior empreendimento hidrelétrico exclusivamente brasileiro.
Notas________________
1 A maior hidrelétrica é a binacional Itaipu, dividida com o Paraguai.
2 http://www2.aneel.gov.br/aplicacoes/cmpf/gerencial/.
3 Link para a minuta: https://www2.mppa.mp.br/noticias/mppa-firma-acordo-para-transparencia-no-uso-de-royalties-de-belo-monte.htm.