O aluno da Faculdade Nacional de Direito

3 de agosto de 2020

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A transformação do perfil do estudante de Direito desde o ingresso das ações afirmativas

A criação do ensino jurídico se inicia no Brasil em meados do Século XIX. Foram quatro anos desde o início dos debates no parlamento (1823) até a criação dos cursos jurídicos das faculdades de Direito de Olinda e de São Paulo (1827), atuais Faculdade de Direito do Recife/ Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) e Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP). Apesar de muitos defenderem que a localização do curso de Direito deveria ser o Rio de Janeiro, por ser a Corte, venceram os argumentos da localização estratégica na “construção da nação”, dividindo o ensino jurídico para atender ao norte, por Recife e, ao sul, por São Paulo.

Após a Reforma Leôncio de Carvalho, foram autorizadas a Faculdade Livre de Ciências Jurídicas e Sociais e a Faculdade Livre de Direito, ambas no Rio de Janeiro (1891), criadas pela iniciativa de professores liberais e conservadores do recém inaugurado regime republicano. Em 1920, a fusão dessas faculdades deu início à história da atual Faculdade Nacional de Direito do Rio de Janeiro, que em 1945, pelo Decreto-Lei n° 8.393, passou a integrar a Universidade do Brasil, hoje Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).

Nos tempos das primeiras escolas de Direito, o perfil dos estudantes era o dos filhos da elite colonial, que tinham o privilégio de estudar para serem aprovados nas provas de admissão em francês, gramática latina, filosofia e moral, retórica e geografia, seguindo requisitos da Lei do Império de 11 de agosto de 1827. Podemos dizer que a primeira transformação no perfil discente do Direito começou em 1880, com o ingresso das primeiras mulheres: Maria Coelho da Silva Sobrinha, Maria Fragoso e Delmira Secundina da Costa, que se formaram em 1888 pela atual Faculdade de Direito da UFPE. Todavia, a primeira mulher a exercer a advocacia foi Myrthes Gomes de Campos, graduada em 1898 pela atual FND, mas que só conseguiria sua licença em 1906, depois de longa batalha contra o preconceito.

Vê-se que, desde seus tenros anos, a Faculdade Nacional de Direito é palco de contribuição para o fortalecimento do pluralismo do ensino jurídico no País. Apesar de seu espírito democrático, ela continuava com um quadro discente majoritariamente desigual em termos socioeconômicos. O perfil discente realmente começou a mudar quando o conselho universitário da UFRJ aprovou, em 2010, a adoção de ações afirmativas para facilitar o ingresso de estudantes de baixa renda e oriundos do sistema público de ensino. Ainda assim, só em 2012 ocorreu a grande transformação no perfil do aluno de Direito, com o advento da Lei nº 12.711/2012, posteriormente, alterada pela Lei nº 13.409/2016, rearranjando a reserva de vagas com a inclusão das pessoas com deficiência. Assim, o critério preponderante na reserva de vagas é a natureza pública do estabelecimento de ensino onde o estudante cursou o ensino médio, algo que garante 50% das vagas federais. O segundo critério é o socioeconômico, pois o preenchimento de metade destas reservas (25% do total) deve contemplar os estudantes advindos de famílias cuja renda seja igual ou inferior a 1,5 salário-mínimo per capita. O terceiro critério é o racial, ao dispor que as vagas reservadas serão preenchidas por pretos, pardos e indígenas, na proporção representativa da população do estado, no caso o Rio de Janeiro. Ao final, essa reserva é repartida para as pessoas deficientes.

A Faculdade Nacional de Direito, sem contar com os ingressantes de 2020, hoje possui 2.728 alunos com matrículas ativas, dos quais 1.313 são oriundos das ações afirmativas, ou seja, um total de 48,13% do corpo estudantil do Direito da UFRJ é composto por alunos advindos do ensino público, de baixa renda, negros, pardos, indígenas ou deficientes. Vale destacar que são 35 alunos deficientes, sendo que 11 deles ainda se enquadram em situação de vulnerabilidade econômica, pois sua renda per capita é de meio salário mínimo. Nessa situação de fragilidade econômica estão outros 164 estudantes de Direito que fazem jus ao Programa Nacional de Assistência Estudantil (PNAES), política do Ministério da Educação que oferta bolsas de auxílio-moradia/ permanência no valor máximo de R$ 900 e/ou algum outro auxílio-estudantil de valores ainda menores, como auxílio-creche e alimentação.

As mudanças de paradigmas de acesso à Universidade se refletem na pluralização do perfil do estudante de Direito. A FND acompanhou todas essas mudanças e transformou o ambiente acadêmico, de lugar que antes parecia inalcançável para essa população periférica, pois o curso de Direito mantém  alta relação candidato por vaga e elevado prestigio social, em algo tangível para esse novo perfil de estudantes beneficiados pelas ações afirmativas. As cotas refletem a ideia de inclusão social, pois, levando em conta o respeito às peculiaridades de cada um, dão condições para o acesso de grupos de pessoas que sofreram, e ainda sofrem, um histórico processo de discriminação e preconceito. A mais recente política de ação afirmativa, do ano de 2017, facilitou o ingresso à FND das pessoas com deficiência, dando ao corpo docente o privilégio de formar, em um futuro muito breve, bacharéis surdos, algo, em princípio, inimaginável para um curso de total oralidade como é o Direito.

Infelizmente, o estimulante e gratificante desafio para nós docentes, advindo desse novo perfil de discentes do Direito, que é acostumado às adversidades e ao trabalho árduo desde cedo, não veio acompanhado do amparo orçamentário para a manutenção desses alunos nos bancos da Faculdade, porque lhes faltam dignas bolsas de estudo, compatíveis com o custo de vida no Rio de Janeiro, bem como faltam adequações prediais para os alunos deficientes e o mínimo cumprimento da Lei que determina assistência de intérpretes de libras nas aulas.

Desde o início do ensino jurídico no Brasil até as contemporâneas instituições de ensino superior ocorreram diversas mudanças no perfil de quem estudava o Direito. É perceptível que um ensino voltado para a elite econômica, predominantemente branca, hoje tem salas com belos alunos negros, pardos, indígenas e deficientes. Muitas outras transformações de perfil virão, pois dos desafios enfrentados pela primeira mulher que se graduou em Direito pela FND, em breve, estaremos colando grau de alunos transexuais.

Então, perguntamos: o Direito, os concurso públicos, as bancas de advocacia, a OAB estão se preparando para acolher esses novos alunos de Direito?

NOTAS_____________________

NEDER, Gizlene e Gisálio Cerqueira Filho. Formação jurídica e história das faculdades de Direito em Portugal e no Brasil. Direito em Movimento, Rio de Janeiro, 2018.

Mulheres na Faculdade de Direito do Recife nos primeiros cem anos (1827-1927) – arquivoccj/curiosidades da UFPE, e Myrthes Gomes de Campos: primeira mulher a exercer a advocacia no Brasil (1875-1965) – www.tjrj.jus.br/web/guest/institucional/museu/curiosidades/no-bau/myrthes-gomes-campos

ANAYA, Ricardo Ballestero. Ações afirmativas no ensino superior brasileiro: a Lei nº 12.711/2012 e seus impactos no perfil dos ingressantes nos cursos de graduação da Universidade Federal do Rio de Janeiro /

Rio de Janeiro, 2018 (https://pantheon.ufrj.br/bitstream/11422/10000/1/RAnaya.pdf).