Navio-prisão: a triste história dos tempos do golpe

5 de março de 2004

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Nota do Editor

A transcrição abaixo relata algumas das muitas barbaridades que ocorreram no fatídico presídio em que se transformou o navio Raul Soares. Sendo um dos prisioneiros por cerca de seis meses, acompanhei de perto os horrores, as barbaridades e torturas que se abateram sobre os presos, muitos dos quais se não morreram a bordo, entretanto, sofreram seqüelas que em seguida às libertações, causaram-lhe distúrbios mentais  ou a morte, como aconteceu com o autor do livro NAVIO PRESÍDIO, jornalista Nelson Gatto , com os líderes operários Manoel Almeida, Waldemar Guerra, Argeu Anacleto, inclusive o estudante Tomishi Sumida e o compositor Geraldo Vandré, que ficaram seguidamente presos próximos à caldeira e após transferidos por longos Períodos dentro de uma geladeira, numa operação chamada de resfriamento

Decididamente, não consigo desembarcar do Raul Soares. Há muito deixei de militar na reportagem diária, mas aproveito o magnífico olhar que o JB está dando sobre o golpe de 64 para meter a minha colher. O RS, já desativado, chegou a Santos no dia 24 de abril de 1964 para servir de navio-prisão. O almirante Júlio de Sá Bierrenbach era capitão dos portos, responsável pela prisão. Quando apurei o caso Riocentro, cujo IPM foi denunciado como farsa por Bierrenbach, o navio veio à tona e o almirante garantiu que tratara os presos dignamente. Acreditei, mas acho que acreditei demais. Leiam o relato do jornalista Carlos Mauri Alexandrino, publicado em 1975 no semanário Preto no Branco, do Sindicato dos Jornalistas de Santos:

“Os velhos ferros rangiam com as oscilações noturnas das marés, estalavam com os leves balanços que o banco de areia onde fora encalhado o navio ainda permitia. Som monótono quebrado pelas tosses doentias dos que já escarravam sangue, que tossiam para fora os pulmões corroídos pela umidade e pelo frio. Era o único ruído que se permitia atravessar as portas trancadas e vencer os sombrios corredores. Já o fedor de mijo e merda não esperava ordem para invadir tudo, fazendo arder o ar nas narinas e gargantas.

Os que, mesmo sem cobertas, conseguiam dormir sobre imundos colchões úmidos, vencidos pelo cansaço, eram despertados muitas vezes pelo exército de pulgas, baratas e percevejos que insistiam em entrar nos narizes, bocas e orelhas adormecidas. De repente, uma patrulha abria a porta e lançava para dentro a luz de uma lanterna elétrica, sempre secundada pelos canos ameaçadores das metralhadoras portáteis. Os homens da Polícia Marítima entravam levantando os prisioneiros e revistando tudo, como se fosse possível esconder alguma coisa. Os escritos eram apreendidos para serem anexados aos processos ou então para a abertura de novos inquéritos: uma poesia podia significar mais algumas semanas no imundo navio prisão.

Às seis horas soava a sirene, a ordem para que todos sem levantassem. Em pouco tempo era servido o café e um pedaço de pão. Eram colocados fora das celas, abertas o tempo suficiente para que os presos apanhassem a caneca, sob a mira das metralhadoras, para que não conversassem ou lançassem qualquer olhar sobre os vizinhos de infortúnio.

Às onze horas, era servido o almoço, no convés, para onde os presos eram encaminhados em fila indiana, também sob a mira das armas. A comida era intragável: arroz e feijão-preto estragados. Cada um pegava sua bandeja, que era enchida com uma pasta azeda e malcheirosa, que provocava diarréias incontroláveis e dores de estômago. Não havia talheres para todos e por isso eram obrigados a comer com as mãos.

Alguns se recusavam, exigindo tratamento digno: esses não comiam mais, contentando-se com a banana ou a laranja da sobremesa. O jantar era uma sopa intragável, feita com os restos do almoço e servida às 16:30. As saídas das celas eram limitadas a uma ida diária ao banheiro e aos ‘arejamentos’, que não eram diários e aconteciam, preferencialmente, nos dias chuvosos e frios, quando os presos faziam exercícios forçados no convés, incompatíveis com suas condições físicas. Muitos, em 50 dias de prisão, não chegaram nem a sair 10 vezes, de meia hora cada. Conversar era proibido.

Não havia médico a bordo – a não ser alguns encarcerados, que não podiam atender – e os poucos medicamentos eram distribuídos por um enfermeiro da marinha, que insistia em ser chamado de doutor e reagia com violência se as crises eram noturnas, despertando-o com sono. O que mais fazia esse doutor era dizer que não entendia daquela determinada doença. Quando estava de bom humor deixava algumas aspirinas aos sofredores.

Os calabouços do navio eram três, batizados, ironicamente, com nomes de inferninhos famosos da época. El Moroco era um salão totalmente metálico, ao lado da caldeira, sem nenhuma ventilação ou iluminação, onde a temperatura passava aos 50 graus. Ainda sim era o melhor. O Night and day era uma pequena sala onde o preso ficava com água gelada até o joelho. O Casablanca era onde eram despejadas as fezes dos presos. Eram usados para quebrar  a resistência – ou o que tachavam de impertinência – dos presos políticos. A maioria passou por essas salas. Foi onde Manoel Almeida, ex-líder operário, contraiu a doença que o matou. Waldemar Guerra, o que mais resistiu, ficou 16 dias num deles, sem comer”.