Ronald Biggs. Morre o criminoso que achincalhou a imagem do Brasil e do Rio, e deixou uma história de total desprezo, descaso e desrespeito à justiça

18 de dezembro de 2013

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Somente o descaso com os valores humanos, a falta de respeito à justiça, o desprezo à dignidade do ser humano, a ambição, a covardia e o cada vez maior desinteresse em que as leis sejam cumpridas e a falta de noção do que é, de fato, cidadania e a ordem jurídica, podem, em sã consciência, explicar porquê a mídia nacional e internacional deu tanto destaque a um ladrão e assassino como Ronald Biggs, que acaba de morrer, aos 84 anos, doente, paralítico no asilo de idosos de Carlton Court, no distrito de East Barnet, norte de Londres.

O britânico, um dos 17 bandidos que roubaram e assaltaram o trem pagador inglês que ia, em agosto de 1963, de Glasgow a Londres levando 2,6 milhões de libras esterlinas, e responsável direto pela morte do maquinista Jack Mills – que, seis anos depois, morreu em Londres em razão dos ferimentos a bala que lhe foram infligidos por Biggs na ocasião do assalto – viveu como se nenhum crime tivesse cometido.

Ao contrário, usou o crime para sobreviver com o dinheiro roubado, pagar propinas a pessoas para fugir da prisão de Wandsworth, em Londres, – onde ficou por 14 meses apenas – se esconder em vários países até aportar em um país chamado Brasil, numa cidade como o Rio de Janeiro, onde viveu por 30 anos como uma espécie de herói, tomando caipirinha e uísque 21 anos na praia, contando lorotas e mentiras, sempre ampliando, de acordo com seus interlocutores de ocasião, seus mal feitos, cobrando taxas de brasileiros e estrangeiros para contar suas histórias, inventando mentiras para vender livros, enredos, autobiografias, e até servir de protagonista em filmes e documentários.

Vivia numa mansão em Santa Tereza, uma espécie de bunker intransponível, onde cobrava as visitas previamente checadas, casou, por oportunismo, com uma brasileira, Raimunda Rothen, teve um filho com ela – que virou cantor em certa ocasião – e foi assim vivendo quase até o fim de seus dias, escapando da justiça e da polícia nacional e internacional.

Dessa forma, Ronald Biggs achincalhou o Brasil e o Rio e suas peripécias em solo nacional – e sem nunca ter sido extraditado para a Inglaterra – sempre endeusadas pela mídia, lhe acabaram sendo um suporte para obter sucesso e fama, – mesmo que deploráveis sob qualquer ponto de vista legal – quando quase todos, aparentemente, ao ouvir suas histórias, subprodutos de sua fértil imaginação, davam mais importância a elas do que à realidade de seus inúmeros crimes pelos quais deveria, no mínimo, cumprir penas pesadas em uma prisão, seja brasileira ou londrina.

Depois que veio se estabelecer no Brasil e no Rio, ambos se tornaram com frequência, motivo de piadas internacionais e o país e a cidade maravilhosa começaram a ser chamados de “paraíso tropical, onde tudo pode e a impunidade é lugar comum”. Podem observar: depois que Biggs chegou ao Brasil e ficou livre, leve e solto como se nenhum crime tivesse cometido, foram inúmeros os filmes internacionais em que bandidos, ladrões, traficantes, assaltantes, criminosos em geral sempre acabam se refugiando no Brasil, e particularmente no Rio, escapando da justiça e da polícia, se tornando inalcançáveis pelas leis.

Assim, Biggs de fato, gozando de total impunidade, achincalhando as leis, vivendo de dinheiro roubado, usufruindo das gostosuras do paraíso tropical, contribuiu bastante, para, com frequência em todo o mundo sejamos considerados, por muita gente, um país corrupto, que não merece ser levado a sério, onde polícia e justiça não interessam e as leis possam ser burladas.

A luta para mostrar que somos um país onde as leis funcionam, onde corruptos e corruptores, ladrões, assassinos e bandidos vão para cadeia, não é fácil e tem sido constante. Temos problemas demais e todos sabem disso. Um país onde ladrões internacionais, assassinos globais não merecem mais do que o descaso, o desprezo dos cidadãos e da mídia. E que merecem as penalidades da lei por seus crimes. Assim queremos ser reconhecidos e não como Biggs e suas ações maléficas o quiseram.

Ronald Biggs, infelizmente, ao viver aqui, impune, mal disfarçando na cara e suas aparições públicas o desprezo pelas leis e pela justiça do Brasil nos fez, como cidadãos, reféns de seus crimes. Sua estadia por aqui durante 30 anos, – tempo em que “pintou e bordou”, como se diz na gíria pátria – fez, sob o sol, o céu e o calor do Rio, além da simpatia e da generosidade do povo e sua notória passividade, fez sim muito bem a ele.

Mas sua história, seus mal feitos e seus crimes, acobertados por suas peripécias de criminoso – a maioria fantasiosas – fizeram e ainda fazem muito mal à imagem do  Brasil e do Rio, em particular. Mesmo que, tenha resolvido – como, mais recentemente, alegou em outra história duvidosa – se entregar à polícia britânica quase no meio da primeira década deste século. Foi solto logo em seguida, em 2009, alegando razões de saúde. Morreu em um asilo britânico.

E graças à total inversão de valores morais e humanos da humanidade moderna e ao lamentável desprezo pela justiça que grassa entre os seres humanos, se tornou “celebridade.”

Sem dúvida uma celebridade do mal e do crime.

Para muitos pode até deixar atrás de si, depois de morto e sepultado, uma história de aventuras e mentiras, e, lógico, de traições, que nem o mais fértil romancista seria capaz de imaginar, mas a imaginação, a mente fantasiosa de Biggs, só ela, sim, e claro, para se beneficiar comercialmente dela.

Mas, felizmente, ao que parece, pelo menos para aqueles para quem a justiça é um valor extremo da sociedade civilizada, um valor democrático, um parâmetro da relação entre os homens, um valor essencial do respeito, da dignidade, Ronald Biggs não passa de um malfeitor, um criminoso que nem sequer se arrependeu de seus inúmeros crimes. Embora a vida lhe tivesse dado esta chance.

Não apenas achincalhou a imagem do Brasil e do Rio. Achincalha, mesmo depois de morto, a decência. E aí não vai nenhum desrespeito a quem não merece o menor respeito. Achincalha a dignidade. Achincalha os valores da honestidade, da ética e da vida de uma maneira geral.

Além de tudo de desonesto que fez, o ladrão e assassino Ronald Biggs, nos últimos tempos, e, mesmo preso, doente, quase paralítico, encerrado em um asilo em Londres, ainda conseguiu dar uma gargalhada que soa como um tapa na cara de todos nós: ”Não lamento nem por um minuto ter participado do assalto ao trem pagador. Foi assim que consegui um pequeno lugar na história”.

Em nome da maioria dispersa que preconiza os valores do Bem tomara que esta história indigna e criminosa seja sepultada com ele. Para sempre.