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A lógica da corrupção – O Estado patrimonialista ou doméstico e sua contestação

20 de março de 2018

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Tive a honra de participar de painel sobre o tema corrupção, na XXIII Conferência Nacional da Advocacia, realizada em S. Paulo, em novembro p.p. Transmiti, então, na minha intervenção, as impressões que colhi de uma pesquisa, efetuada em fontes italianas, acerca da operação Mani Pulite, 25 anos após a sua deflagração em fevereiro de 1992. Registrei minhas observações numa pequena obra, de pouco mais de 90 páginas, sob o título Mani Pulite x Lava Jato, uma inevitável comparação [Livraria Palmarinca Editora e Distribuidora – Porto Alegre, 2017]. Nela resumi os depoimentos prestados pelos magistrados Antonio di Pietro, Gherardo Colombo, Piercamillo Davigo, hoje Presidente da Associação dos Magistrados da Itália, Francesco Savero Borrelli, Procurador-Geral da época, todos com atuação relevante na operação Mani Pulite. Di Pietro era o símbolo desse grupo. O que me impressiona, lá como aqui, é o fato de que os remédios apontados para o enfrentamento da corrupção são sempre vagos, indeterminados e ­genéricos. Assim, di Pietro declarou: “La lotta ala corruzione deve diventare um fatto di costume, di cultura, un impegno etico-sociale: per evitare che il fenômeno si ripeta, bisogna in primo luogo, educare e prevenire” [Intervista su tangentopoli, ao jornalista Giovanni Valentini, ed. Laterza, Roma-Bari, 2.000, p. 99]: a luta contra a corrupção deve tornar-se um fato costumeiro, cultural, um empenho ético-social: para evitar que o fenômeno se repita: é preciso, em primeiro lugar, educar e prevenir. Já outro magistrado, Gherardo Colombo, escreveu: “lo credo che le regole di Tangenpoli abbiano prevalso perché non è attraverso il processo penale che si può risolvere un problema endemico come la corruzion in Italia” [Lettera ad un figlio su Mani Pulite [Ed. Garzanti, Milao, 2.015]. Acredito, disse ele, que as regras da Propinolândia prevaleceram porque não é através do processo penal que se se pode resolver um problema endêmico como a corrupção na Itália. Em obra mais recente, censura o manto do esquecimento que a sociedade em geral jogou sobre a operação Mãos Limpas. Lamenta ele:”Questo paese è un paese che ha poca memoria” “Se anche gli uomini di buona volontà non hanno memoria, questo paese è un vicolo cieco”: Este país é um país de pouca ­memória. Se também os homens de boa vontade não tem memória, este país é um beco sem saída [Il vizio dela memoria, Ed. Feltrinelli, Milano, 7a Ed., 2010, 12].Vinte e cinco anos depois do início da operação Mãos Limpas, Piercamillo Davigo, Presidente atual da Associação dos Magistrados Italianos, ­admite que as estruturas dos tribunais locais “sono attrezzate per reprimere la microcriminalità e non la criminalità dei “colletti bianchi’”, para os quais ostentam ‘una inefficenza gravissima’: as estruturas dos tribunais são preparadas para reprimir a microcriminalidade e não a criminalidade dos “coletes brancos”, sendo, quanto a estes, de uma ineficiência gravíssima [Il sistema dela corruzione, Ed. Laterza, Bari-Roma, 1a ed., 2017, p.29]. Já o Procurador­-Geral Borrelli, em entrevista aos jornalistas Barbacetto, Gomez e Travaglio [in Mani Pulite, 20 anni dopo, p. 850] sonha com “una democrazia senza fine di ­lucro”, uma democracia sem fim de lucro”, ou seja, em que o ato político seja um ato cívico e não um ato de negócio. Os jornalistas que historiam o processo das Mãos Limpas, sentenciam, numa linha: a “Italia è un paese dell´illegalità permanente”.

Como se vê, os remédios contra o mal não são ­específicos. Sérgio Moro, em 2004, escreveu: “Uma ação judicial bastante eficaz, como o caso [italiano], pode, no máximo, interromper o ciclo ascendente da corrupção. Não obstante, não é crível que, por si só, possa eliminá-la, especialmente se não forem atacadas as suas causas estruturais”. O próprio Deltan Dallagnol admite que a Lava Jato trata um tumor, mas o problema é que o sistema é “cancerígneno”. Mensalão e Lava Jato ajudam a fazer um diagnóstico, mas não oferecem um tratamento” [A luta contra a corrupção – Lava Jato e o futuro de um país marcado pela impunidade. Ed. Primeira Pessoa Rio, 2017, p 163]. O ­sistema é ‘criminógeno”, arremata o promotor Carlos Fernando dos Santos Lima, ou seja, ‘favorece e produz práticas criminosas” [in op. cit, supra, p. 202]. Pode-se concluir, da experiência dos dois países, que o processo penal é necessário mas não suficiente para reduzir ou mesmo tentar erradicar a corrupção.

A questão está em desarmar a lógica da corrupção, havendo, entre nós, a generalizada convicção de que uma das causas reside nas relações patrimonialistas do Estado, cuja principal característica está no uso da res publica como res privata. Leituras esparsas de ­autores de épocas diferentes, que nunca se encontraram, como Raymundo Faoro [Os donos do poder] e de Ernst Kantorowics [Os dois corpos do rei], e até do Pe. Antônio Vieira [Sermão do Bom Ladrão], confirmam a antiguidade do problema. As relações patrimonialistas do Estado são a expressão de um Estado Doméstico em que o aparato estatal funciona como uma domus privata e não como uma domus publica. Não é por acaso que, milenarmente, os reis portugueses, desde Dom Afonso Henriques [1139] passando por Dom João VI e pelos imperadores brasileiros, Dom Pedro I e Dom Pedro II, tinham seu nome precedido do título “dom”, de “dominus” que, por sua vez, provém de “domus”. Kantorowics, depois de uma pesquisa histórica profunda na teologia e no ­direito medieval, deixou claro que os reis, vale dizer, os governantes em geral, possuem dois corpos, um corpo natural e um corpo político, una persona, duae naturae. Assim, “ao corpo natural [do rei] está articulado seu Corpo político que contém sua Condição e Dignidade reais” [p. 299]. O conceito dicotômico de governo poderia vir de mais longe, da Antiguidade clássica, segundo a “doutrina das capacidades – que fazia a distinção banal entre um homem e seu cargo [ou cargos]” [p. 301]. Aristóteles já dissera: duas personas habet gubernatur, isto é, o piloto (con)tém duas pessoas, “uma ele partilha com todos os seus colegas passageiros, pois ele também é um ­passageiro; a outra é peculiar a ele, pois ele é o piloto” [p. 301]. A observação vale para o juiz, o presidente, o parlamentar, todos aqueles em que o corpo privado, físico , pessoal, tem de conviver com o corpo público, imaterial e impessoal. Donde a gravidade do fato quando “o corpo natural do rei se torna traidor do corpo político do rei” [p. 45], o que ocorre, entre ­outras hipóteses, quando o governante usa a domus publica como domus privata.

O genial e perspicaz Padre Antônio Vieira, em 1655, no Sermão do Bom Ladrão, já dera conta da existência das esferas públicas e privadas, ao escrever: “…a fazenda do particular é sua: a do rei não é sua, senão da República. E assim como o depositário, ou tutor, não pode deixar alienar a fazenda que lhe está encomendada e teria obrigação de a restituir, assim tem a mesma obrigação o rei, que é tutor e como ­depositário dos bens e erário da República…”.

A questão do patrimonialismo, portanto, tem, entre nós, raízes históricas como se vê de Vieira, donde o bom sucesso dos “Donos do Poder” do patrono dos advogados Raymundo Faoro. Um dos caminhos, assim, está em desarmar a lógica do persistente Estado Patrimonial ou doméstico em que tais fatos centenariamente ocorrem, o que se pode fazer mexendo no arranjo institucional que permite, enseja, propicia que o governante, como ente privado, titular da ­domus privata, traia o seu corpo político, responsável pela titularidade da domus publica, agindo ou permitindo que o exercício do munus desta se faça no interesse daquela. Na XXIII Conferência Nacional dos Advogados, o Ministro Luís Roberto Barroso, também no mesmo painel, colocou a relação patrimonialista como primeiro problema a ser enfrentado. Minha proposta, na Conferência, pode ser sintetizada numa fórmula simples: eliminação, por via de derrogação e substituição, de todas as competências que podem, em tese, gerar atos de corrupção lato sensu; e regular severa e minuciosamente todas as competências que, não tendo como ser derrogadas e substituídas por completo, podem ensejar potenciais práticas de objetivos privados no exercício da função pública. Quando falo em atos de corrupção lato sensu, não me refiro ao conceito jurídico-penal mas a todo e qualquer prática contrária ao “fair play” da governança pública. Assim, a proposta de encontrar uma solução pelo desarme da lógica do patrimonialismo exige a criação de regras claras para o duplo corpo dos governantes de modo que o corpo político represente, com fidelidade, apenas a voz da domus publica.

Como a ideia tem o apoio de boa parte da intelectualidade atual e expressão máxima na obra “Os donos do poder” de Raymundo Faoro, intérpretes da classe política ofendida pela Lava Jato passam a contestar a doutrina do patrimonialismo, acusando Sérgio Buarque de Holanda e Raymundo Faoro, por serem seus ­divulgadores, “como legitimação perfeita do protofascismo brasileiro” (184], sendo Faoro a sua “vaca sagrada” (33) e a doutrina “uma suprema viralatice” (136, 151). Quem entende que a relação patrimonialista explica a corrupção – caracterizada pelo uso da res publica como res privata – como o Ministro Luís Roberto Barroso, o autor o rotula como membro da “classe média de Oslo” “que tira onda de moderna e emancipadora” (176). “Tudo se dá como se esse pessoal bem-intencionado morasse em Oslo e tivesse apenas relações com seus amigos de Copenhague e Estocolmo, acreditando, ao fim e ao cabo, que mora na Escandinávia e não no Brasil” (176). O Ministro Barroso é “perfeito exemplo dessa fração” (185). Acusando a Lava Jato de ser uma operação “protofacista” de “caça aos petistas(185), que só produziu a “merreca” de 1 bilhão de recuperação (228), o autor afirma que “a elite financeira de hoje …compra o Parlamento, sentenças de juízes, a imprensa e o que mais necessário for” (109), ou seja, “a política, a justiça e mídia” (231), nesta incluindo a Rede Globo, a Folha de S Paulo (214), a Revista Veja que “produz ódio e informação enviesada e distorcida a seu público da fração protofacista” (215). “Um grupo de mídia…se alia a juízes com agenda própria e corporações com interesses particulares, como o MP e a Polícia Federal, chantageia e ameaça juízes de tribunais superiores e políticos, usando a turba protofacista classe média como massa de manobra…(219] Enquanto isso, “…a corrupção real, do conluio entre mercado, mídia e corporações jurídico-policiais do Estado, pode passar impune” (228]. Resumindo, a imprensa, por ser “desregulada e venal” (213), não passa de “uma fábrica de mentiras” (234), nada mais nada menos que um “partido” do capital financeiro [165]. Quanto ao juiz, ele deve ­entender que “não é eleito diretamente”(220), pois o “único princípio que justifica e legitima o poder no Ocidente é a soberania popular” (221). Já se vê aonde nos levariam tais ideias: regulamentação da imprensa para não ser venal; restrições ao Judiciário porque não é eleito; intocabilidade do esquema patrimonialista que propicia o aparelhamento do Estado e a corrupção generalizada, minimizada porque o político corrupto é apenas o “o aviãozinho do tráfico, quem fica com as sobras” (208).

As palavras são do sociólogo Jessé Souza, em livro recente, A Elite do atraso – da escravidão à Lava Jato – precedido de forte mídia patrocinada pela Livraria da Folha de São Paulo, um dos órgãos acusados pelo autor da obra. O signatário deste artigo recebeu, em 18 de dezembro de 2017, e-mail da Livraria da Folha <marketing@mkt2livrariadafolha.com.br> sob o ­sugestivo titulo: “Produtos que são a sua cara”, propondo a aquisição, por R$33,50, da referida Elite do Atraso. Antes, a Livraria da Folha publicou duas vezes, na Revista Veja, de 29.11 e 6.12.2017, publicidade de página inteira com destaque para a referida obra. O custo de cada página é de R$ 216.000,00. Um milhão e duzentos mil leitores de VEJA foram induzidos a adquirir a obra que, ao fim e ao cabo, faz parte de uma contestação da doutrina patrimonialista que só interessa aos que usam tradicionalmente o Estado como um prolongamento da domus privata.

Quanto aos jornais, estão recomendando uma obra que não é a cara dos seus leitores, a quem a obra recomendada acusa como protofacistas da classe média. Resumindo: a guerra das ideias está declarada nesses termos [ ]. Espero que, embora sem nenhum patrocínio milionário, venha a prevalecer a tese proposta na XXIII Conferência Nacional da Advocacia, que tem a cara do povo brasileiro.