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Insolvência Transnacional (cross-border insolvency) – O desafio brasileiro

10 de setembro de 2017

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Marcio Souza Guimarães

A complexidade moderna da produção e da circulação de bens ou serviços (empresa) transcende o antigo modelo de exercício do comércio, em que o local do esta­be­lecimento, não raro, coincidia com o imóvel de residência do comerciante. Com a concorrência e a busca pelo mercado internacional de um mundo sem fronteiras, a atividade empresarial não mais se restringe ao município, ao estado ou ao país, trans­cendendo os limites territoriais. Nesse contexto, a empresa transnacional ganha relevo com seus fatores de produção e circulação de bens ou serviços organizados em diversos países, ou mesmo por todo o globo terrestre, como se vislumbra no exemplo da Apple. Mesmo sendo a atividade transnacional, as sociedades que a exercem estão situadas em cada país, com característica sempre nacional. O desafio global para tais empresas é cada vez maior, devendo se amoldar às diversas legislações, costumes e procedimentos de cada Estado. A crise da empresa é tema que permeia ou permeará a vida de toda sociedade empresária, fazendo com que seja necessária a criação de mecanismos preventivos das dificuldades para que se lance mão de meios de reestruturação, tão logo seja detectado o problema. Nessa seara, a empresa transnacional em crise enfrentará o problema de harmonização das diversas legislações internacionais e, sobretudo, das diversas jurisdições para que se possa elaborar um plano de insolvência transnacional (cross-border insolvency). A legislação brasileira de insolvência não trata da matéria, não obstante o país possuir relevantes casos de tal natureza.

A lei modelo da UNCITRAL
Desde 1990, as insolvências transnacionais se avolumaram  despertando a atenção da Organização das Nações Unidas – ONU sobre o tema, levando à criação de grupos de estudos no âmbito do seu órgão denominado de United Nations Commission on International Trade Law – UNCITRAL, gerando a elaboração de uma lei modelo (model law) denominada de UNCITRAL Model Law on Cross-Border Insolvency, editada em 1997. Desde então, quarenta e três países  adotaram a lei modelo, fazendo-a ingressar em seu ordenamento jurídico, com destaque para os Estados Unidos, no capítulo 15 do Bankruptcy Code, positivando, em verdade, prática já adotada pelos tribunais americanos, desde 1993, no conhecido caso Maxwell, em que os ativos da companhia estavam situados em território americano e a sede social em Londres, dando azo à elaboração de um protocolo para liquidação e pagamento de três principais credores — bancos britânicos.

As teorias universalista e territorialista sobre a jurisdição da insolvência empresarial trans­nacional foram objeto de intenso debate. A primeira (universalista) defende a existência de um juízo único, mundialmente competente, para a insolvência transnacional, o que viola o preceito básico de jurisdição/soberania. A segunda (territorialista) pretende que cada país aplique a sua legislação, sem correlação com os demais em que outras sociedades, integrantes da mesma estrutura empresarial, estejam situadas. É o contrassenso de toda a evolução do tratamento internacional das empresas em dificuldades, fragilizando ou mesmo impossibilitando a recuperação de empresas transnacionais. Atualmente, prevalece a teoria do pós-universalismo, baseado no reconhecimento de cada jurisdição nacional, com previsão de cooperação internacional entre os juízos, delineando-se, assim, a harmonização de ambas as teorias.

A lei modelo da UNCITRAL enfrenta o binômio jurisdição de um Estado versus a necessidade de cooperação, comunicação e concentração do tratamento da empresa transnacional em crise. A soberania estatal, traduzida na jurisdição para processar e julgar as sociedades situadas em seu território, deve se amoldar à necessidade de restruturação judicial da empresa globalizada, com consequências evidentes para os estados en­vol­vidos. Para tanto, o instrumento de mate­rialização será o protocolo de insolvência (insolvency pro­tocol) firmado entre os juízos competentes, em conjunto com os administradores judiciais (insol­vency practioner), com base no denominado Court-to-Court Cooperation (CCC). Como todos os juízes são, em tese, competentes para tratar da crise da empresa exercida por uma sociedade presente no território nacional, surge o princípio denominado de comity ou da courtoisie, com a grande responsabilidade que cada qual assume para lidar com o tema, pelo fato de não haver um tribunal internacional competente para dirimir as eventuais divergências. A base do protocolo de insolvência é o reconhecimento do local do principal estabelecimento (centre of main interests), fixando o juízo de um país como o processo principal (main proceeding), e os demais como os processos secundários (non main proceedings ou secondary proceedings). A fixação do principal es­ta­­belecimento tem por objetivo não só definir o processo principal, como também evitar a reprovável prática do forum shopping – conduta do devedor de escolher o país que apresenta a legislação mais favorável ao tratamento da dificuldade enfrentada. Tal prática viola o preceito mundial do juiz natural (due process of law), recentemente posto em evidência no caso Van Gasenvinkel (2015), empresa transnacional com atividade na Holanda, na Bélgica e em Luxemburgo, ao recorrer ao tribunal inglês para reorganização de seus débitos, valendo-se do mecanismo denominado de “plano de pagamentos” (scheme of arrangement), por se tratar de um mecanismo simples e eficaz de reestruturação, sem ostentar qualquer estabelecimento ou bens em território inglês, alegando ter vários credores no Reino Unido. O pleito foi admitido por um tribunal inglês, sob o fundamento de que alguns credores estavam sediados em seu território, o que, a todo evidente, não pode ser tolerado.

Peter Sester

O Direito brasileiro
O direito brasileiro não possui regra positivada sobre a insolvência transnacional, levando o jurista a buscar no ordenamento jurídico soluções de inter­pretação para a solução do caso concreto, não podendo o juiz deixar de decidir por omissão legal, devendo valer-se da analogia, dos costumes e dos princípios gerais de direito, atendendo aos fins sociais a que ela se dirige e às exigências do bem comum.  Nos campos do direito e da economia (law and eco­nomics) grande relevância assume a previsibilidade legal sobre o tratamento da crise da empresa em cada país. O relatório do doing business do Banco Mundial, de 2017, aponta o Brasil em 67o lugar no item “efi­ciência da insolvência” (resolving insolvency), dentre os 190 países avaliados, indicando o necessário aperfeiçoamento legislativo. A adoção da lei modelo da UNCITRAL parece-nos um avanço relevante nesse domínio. O Brasil está muito atrasado em relação ao direito das empresas transnacionais em dificuldades. Nosso país, embora seja uma economia expressiva no comércio internacional e nele estejam estabelecidas diversas “subsidiárias” de multinacionais estrangeiras, não apresenta uma estrutura jurídica capaz de lidar de forma adequada com os aspectos transfronteiriços da insolvência empresarial. Paulo Campana Filho  assinala, de maneira categórica, que as normas brasileiras destinadas à recuperação das empresas endividadas parecem talhadas para abranger as sociedades nacionais, ignorando que elas possam ter relações econômicas e societárias com outras entidades estabelecidas no es­trangeiro. O Brasil já enfrentou alguns casos de in­solvência trans­nacional, ora aplicando a teoria do pós-universalismo, ora do universalismo.

O projeto do Código Comercial e o anteprojeto de reforma da Lei no 11.101/05, do Ministério da Fazenda, posicionam o Brasil na vanguarda mundial, ao legislar, na parte geral do Projeto de Código Comercial, sobre os princípios aplicáveis à falência transnacional, no § 5o, do artigo 9o, restando cla­rificado que: os juízos brasileiros devem cooperar diretamente com os juízos falimentares estrangeiros, na forma deste Código e da lei, quando a crise da empresa tiver repercussão transnacional, com vistas aos seguintes objetivos: I – aumentar a segurança jurídica na exploração de empresas e na realização de investimentos no Brasil; II – eficiência na tramitação dos processos de falência e recuperação judicial transnacionais; III – justa proteção dos direitos dos credores e do devedor; IV – maximização do valor dos bens do devedor; e V – facilitação da recuperação da empresa em crise. Adiante, ao inserir o capítulo VII-A, à Lei 11.101/05, dispondo sobre a falência transnacional, incorpora ao ordenamento jurídico brasileiro a lei modelo da UNCITRAL, disciplinando a cooperação entre o juízo brasileiro e os estrangeiros (artigo 188-A), sem a necessidade de carta rogatória (artigo 188-G) ou tra­dução juramentada (artigo 188-C, §1o), respeitado o princípio da ordem pública (artigo 188-I), com a previsão de que haverá um juízo principal (main proceeding) e um subsidiário (non-main proceeding) (artigo 188-N, I), respeitando a jurisdição (soberania) de cada país, exatamente nos termos das legislações mundiais mais avançadas sobre o tema.

Conclusão
Enquanto não incorporada ao ordenamento jurí­dico brasileiro a lei modelo da UNCITRAL, o intér­prete deve   valer-se de uma analogia internacional, disposta no comando da Lei de Introdução às normas do Direito Brasileiro, valendo-se das regras já adotadas por diversos países. O devedor situado no Brasil deve ingressar com pedido de recuperação judicial, ou sofrer a decretação da sua falência, no território nacional, bem como em tantos outros países em que estiver pre­­sente e, em seguida, indicar qual entende ser o processo principal (main proceeding), buscando, em conjunto com os administradores judiciais designados (insolvency pratictioners) a elaboração de um protocolo de insolvência (insolvency protocol) para, com base no princípio da Court-to-Court Cooperation, elaborar um plano de reestruturação global da empresa. Assim, pos­sibilitará o seu reestabelecimento, atendendo o pre­ceito constitucional da função social da empresa.