O cineasta Silvio Tendler produz uma trilogia sobre a ditatura militar. Último filme, ainda sem data de lançamento, mostra como era a vida na clandestinidade
A ditatura militar parece reunir um número sem fim de histórias. Em sua grande maioria, trágicas – justamente por envolver violações de direitos humanos, com a tortura e o assassinato dos que eram contrários ao regime. Tornar público esses casos se tornou a missão de Silvio Tendler, cineasta brasileiro. Neste ano em que o Brasil registrou 50 anos desde o golpe militar, Tendler lançou dois filmes que nos fazem sentir as agruras de um dos períodos mais obscuros da história do País. Um terceiro longa está em produção.
Dois filmes que compõem a trilogia foram lançados em abril último. São eles: Os “Advogados Contra a Ditadura” e “Militares da Democracia”. O primeiro narra a história dos casuísticos que defendiam os perseguidos políticos e acabaram se tornando alvo do regime; o segundo fala dos militares que se opuseram ao golpe de 1964. O último, ainda em produção, se chama “Há Muitas Noites na Noite” e tem por objetivo mostrar como era a vida na clandestinidade. Ainda não há previsão de lançamento.
Tendler fala à Justiça & Cidadania da expectativa em relação a esse último filme, assim também como dos 50 anos do golpe militar. Carioca, nascido em 1950, Silvio Tendler é considerado um dos maiores nomes do documentário nacional. Seus filmes são resgates críticos e reflexivos da memória brasileira e dos rumos do País. Dentre as mais de 40 produções, destacam-se “Os Anos JK” (1980), “O Mundo Mágico dos Trapalhões” (1981) e “Jango” (1982).
Confira a íntegra da entrevista:
Revista Justiça & Cidadania – Você prepara uma trilogia de filmes envolvendo e abrangendo memórias e personagens relativos aos chamados “anos de chumbo” no Brasil. Como é essa trilogia?
Silvio Tendler – São três séries de TV e três longa-metragens. O primeiro é “Os Advogados Contra a Ditadura” e conta a história dos advogados que defenderam os perseguidos na ditadura, muitos deles tendo se tornado vítimas dessa perseguição e de prisões arbitrárias. A OAB-RJ apoia esse projeto. O Segundo é “Os Militares da Democracia”, sobre os militares que se opuseram ao golpe de 64 e à ditadura militar. O terceiro, “Há Muitas Noites na Noite”, fala da vida na clandestinidade no Brasil e do exílio do poeta Ferreira Gullar. Os três juntos formam um imenso afresco de mais de 10 horas falando da crueldade da ditadura vista por ângulos jamais abordados.
JC – Quem apoiou ou patrocinou? Há parcerias?
ST – – O Ministério da Justiça, a Ordem dos Advogados do Brasil – Seccional do Rio de Janeiro, a TV Brasil e um parceiro oculto que prefere não aparecer…
JC – Qual a abordagem dos filmes?
ST – São renovadores na forma e no conteúdo. Repito: são mais de 10 horas de histórias jamais abordadas. Fizemos das “tripas coração” para contar histórias acontecidas nos porões da ditadura, onde não havia registros de imagem. O mesmo acontece com o exílio de Gullar e estamos utilizando atores, aquarelas e desenhos para mostrar isso. Estamos montando uma trilogia que é uma mistura de labirinto, caleidoscópio e quebra-cabeças, o que gosto muito, para contar as histórias.
JC – Qual a importância da trilogia no ano em que se completam 50 anos do início da ditadura militar com apoio civil, que durou 21 anos?
ST – Não se trata apenas do resgate da memória, nem dizer “olha como somos heróis”, mas para mostrar a importância da luta e da construção do futuro, sobretudo.
JC – Um dos filmes aborda os militares que foram contra o regime e o golpe. O que é mais relevante neste filme? Quem e o que você destacaria?
ST – De marinheiros a generais todos são importantes nesta resistência.
JC – Outro filme aborda os advogados que lutaram bravamente contra a ditadura e defenderam inúmeros presos políticos. Quem e o que você destacaria
ST – Complicado destacar alguém e colocar todos os outros em segundo plano. Todos são importantes.
JC – Como é o filme, que completa a trilogia, sobre o exílio do poeta Ferreira Gullar? É ele que conta a história? Por quê a escolha de “Há Muitas Noites na Noite” como título deste filme?
ST – Vai de 2 de abril de 1964, quando os artistas assumem a resistência, no primeiro plano, ao golpe de 64, passando pelo Teatro Opinião, clandestinidade no Brasil, exílio, e volta a Ipanema, de onde nunca deveria ter saído. “Há Muitas Noites na Noite” representa a pluralidade do que vemos e não uma única forma de ver a escuridão.
JC – Você se inspirou em alguém, em algum livro ou pesquisa para fazer a trilogia?
ST – Na minha própria vivência, na minha observação sobre o mundo.
JC – Como você resumiria a importância destes filmes e de sua obra relativa a temas ligados ao período de exceção no País, como Jango, Marighella, Tancredo (A Travessia), Memórias do Movimento Estudantil?
ST – Como historiador eu olho para o futuro, para a verdade, para a justiça. Acho importante isso.
JC – Como vê a situação político-social do País hoje em comparação com os “anos de chumbo”?
ST – Acho que o recente caso Amarildo serviu como um grito de alerta de que a ditadura contra o povo continua e estamos mais conscientes que a repressão continua nas favelas, nos bairros populares. O Brasil está mais maduro e consciente de que a polícia e a política têm que mudar.
JC – Como analisa sua obra de 31 filmes, agora com mais esta trilogia, do ponto de vista de uma colaboração essencial para o estabelecimento e a consolidação do Estado de Direito no Brasil?
ST – Tenho muito orgulho da minha obra, dos que filmes que faço. Sinto-me feliz pelos mestres que tive e por continuar fazendo do cinema um instrumento de luta.
JC – Como analisa a luta de advogados contra o regime de exceção, a exemplo do Sobral Pinto, Modesto da Silveira, Heleno Fragoso, Evandro Lins e Silva, Técio Lins e Silva, Samuel Mc Dowell, entre outros?
ST – Fundamental. Salvaram vidas, muitas, e impediram injustiças. Devemos muito a eles.
Entrevista de Carlos Alberto Luppi (in memoriam). Edição de Giselle Souza.