“Façamos uma magistratura cada vez mais inclusiva” 

4 de dezembro de 2020

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Entrevista com o Ministro do STJ Og Fernandes, Presidente da Escola Nacional de Formação e Aperfeiçoamento de Magistrados

O Ministro Geraldo Og Nicéas Marques Fernandes é um dos magistrados brasileiros em atividade com maior quilometragem na profissão. Chegou ao Superior Tribunal de Justiça (STJ) após uma longa carreira em diferentes áreas. Foi advogado criminalista, jornalista – tendo atuado como repórter do jornal Diário de Pernambuco entre 1973 e 1981 – professor, Juiz de Direito concursado, Desembargador e Presidente do Tribunal de Justiça do Estado de Pernambuco (TJPE), seu estado de origem, além de ser escritor. Em 2008, foi nomeado Ministro do STJ pelo ex-Presidente da República Luís Inácio Lula da Silva, seu conterrâneo, tendo atuado como membro do Tribunal Superior Eleitoral em dois biênios (2006-2018 e 2018-2020), ocupando no último ano de seu segundo período a Corregedoria-Geral da Justiça Eleitoral. Desde agosto, é Diretor-Geral da Escola Nacional de Formação e Aperfeiçoamento de Magistrados (Enfam). 

Em uma longa e calorosa conversa por videoconferência, o Ministro Og Fernandes falou à Revista Justiça & Cidadania sobre as restrições enfrentadas pela Enfam durante a pandemia, sobre a preparação para o início dos cursos de pós-graduação na Escola, sobre as mudanças no perfil da magistratura desde o seu ingresso na profissão, há 39 anos, e muito mais sobre os novos e antigos desafios dos juízes brasileiros. Confira a seguir os melhores momentos da entrevista.

Tiago Salles – Em agosto passado o senhor assumiu a direção-geral da Escola Nacional de Formação e Aperfeiçoamento de Magistrados. Quais foram as restrições enfrentadas pela Enfam nesse ano de pandemia? O que foi possível realizar durante a quarentena?
Og Fernandes – A Escola, a instituição Enfam, teve que se adaptar às vicissitudes dessa época, como quase todo empreendimento humano teve que se reinventar nesse período. Ela passou a contar muito fortemente com a solidariedade dos ministros do STJ, o que foi muito importante nessas circunstâncias. Todos os ministros foram muito parceiros na realização de webinários no lugar dos cursos presenciais. Foram utilizadas, tal como agora estamos a fazer, plataformas e aplicativos virtuais para aulas síncronas, reforçando o que se chama de metodologias ativas.

Foi também intensificada a programação dos chamados cursos à distância, além de aproveitar o ano de 2020 para construir materiais didáticos de 23 cursos que serão implementados em 2021. É preciso dizer, como você bem ressaltou, que assumi a escola no meio dessa pandemia e esse método, essa reinvenção da qual falo, já vinha sendo executada desde o primeiro semestre pelo então diretor da Escola, que era o Ministro Herman Benjamin. Isso de alguma forma facilitou o meu trabalho, porque eu já tinha um modelo de atuação específico e voltado para esse momento.

Foi muito agradável, por exemplo, participar de alguns desses webinários, antes mesmo de assumir a escola, e ver a participação muito ativa dos magistrados brasileiros. Houve uma presença maciça, muito significativa da magistratura brasileira nesse período de pandemia e de afastamento social, o que indica o viés do interesse dos integrantes da nossa magistratura pelo ensino, formação e aperfeiçoamento ministrado pela Escola. Malgrado todas as vicissitudes, quero dizer que fico muito satisfeito com os dados que nós observamos desde o primeiro semestre.

Tiago Salles – O que muda a partir dessa experiência no trabalho de formação dos magistrados?
Og Fernandes – Penso que um olhar mais detido a essas metodologias, diretrizes pedagógicas que foram implantadas pela Enfam e trabalhadas na forma remota, que continuarão a ser ministradas. É preciso dizer que ainda no período antecedente à pandemia nós já tínhamos o ensino à distância, mas houve um incremento, e o que se verificou, tanto na área pública quanto na área privada é que também aconteceu uma redução de custos com o afastamento social e o uso da Internet. A efetividade desses trabalhos não perdeu seu rigor com o ensino através dessas novas metodologias, acrescido de uma facilidade que é o fato de que, sendo a Escola Nacional em Brasília, não houve a necessidade do deslocamento de magistrados até aqui para participar dos eventos. Eles puderam fazer essa participação diretamente das suas residências ou gabinetes, a qualquer momento, das aulas ou atividades da Enfam.

Tivemos um lado negativo que é esse isolamento social, inclusive na própria magistratura, com intervalos no exercício da nossa profissão sem audiências, sem sessões e também sem aulas, tanto nas escolas dos estados, quanto nas da magistratura no âmbito federal, como na Escola Nacional, que teve o vigor da presença nas aulas que foram ministradas de forma virtual. Há uma compensação nesses critérios de assiduidade, aquilo que se perde no presencial, que é o calor da troca de ideias, o que acho ainda importante e mais eficaz nas aulas presenciais. Foi aquilo que pode ser feito, e o que pode ser feito foi aprendido e acolhido com muito carinho pela magistratura.

Essa é a principal lição que nós verificamos, esse engajamento da magistratura nas atividades da Escola, a ampliação dos interessados em temas diversos, inclusive para os formadores dentro da magistratura, com um custo, efetivamente, muito baixo. Isso aconteceu em toda área pública e também na área privada, mas na área pública a redução dos gastos do orçamento, notadamente nas despesas correntes, foi assustadoramente menor.

Tiago Salles – Quais são os projetos que o senhor ainda pretende realizar na Escola até o final do seu biênio como diretor-geral, em 2022?
Og Fernandes – Minha administração praticamente começou agora, não temos ainda seis meses desde o início dessa direção. Parto para essa missão que foi outorgada pelos colegas do Superior Tribunal de Justiça com algumas ideias. As primeiras decorrem do trabalho de continuar a formação inicial, a chamada formação continuada e de formadores. Isso é básico dentro do que já está previsto no calendário para os próximos anos. Implica dizer que na atividade do Judiciário é preciso ter planejamento e é preciso seguir no planejamento aquilo que vem dando certo, mas a Escola hoje tem outra vertente muito significativa. Nós somos talvez a primeira Escola entre tantas, pelo menos das nações que conhecemos, que conseguiu implementar, a partir da ideia e do esforço do Ministro Herman Benjamin e sua equipe, a pós-graduação.

Começamos esse ano a pós-graduação profissional. Significa dizer que nós não estamos a preparar magistrados para ensinar em universidades, em faculdade de Direito. Nossa ideia, desde a concepção junto à Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes/ Ministério da Educação), que autorizou a realização dessa pós-graduação, é que tenhamos a concepção de projetos que serão refinados durante a pós-graduação voltados ao dia-a-dia e às atividades do Judiciário. Todos os projetos que foram apresentados e submetidos à primeira turma de pós-graduação na Enfam têm esse viés, serão projetos que poderão ser adotados pela magistratura como um todo. Tal qual hoje, nessa data em que estamos conversando, foram escolhidos os novos agraciados no Projeto Innovare, que são ideias muito criativas de construção de soluções para o Judiciário.

A pós-graduação profissional na Enfam terá essa concepção, de projetos que interessam à magistratura brasileira. Há temas muito interessantes, concepções interessantes de projetos para todo o Judiciário brasileiro, sem exclusão. Por falar em sem exclusão, essa é outra meta que estamos a garimpar. Minha ideia é que façamos uma magistratura cada vez mais inclusiva.

Tiago Salles – Quando comemorava 10 anos de judicatura no STJ, o senhor lançou o livro Cabeça de Juiz. Acredita que a mentalidade do magistrado mudou desde a época do seu ingresso na magistratura? Acredita que a linguagem do Judiciário deve ser alterada?
Og Fernandes – Essa sua pergunta é muito interessante para falar sobre alguns temas. Comecemos pela questão da inclusão, que é, repito, algo em que eu vou perseverar na magistratura. Acho que sou hoje no STJ o ministro com o maior tempo de magistratura. Não sou o decano, nem ainda o mais velho na faixa etária, até pelo tipo de composição do STJ, que tem ministros que vêm da Ordem dos Advogados do Brasil, ministros que vêm do Ministério Público federal e estaduais. Alguns têm uma história já vinculada à magistratura antes de entrar no STJ, outros vêm de outras profissões e carreiras, tão importantes quanto o Judiciário, mas imagino que eu seja hoje o mais antigo de carreira na magistratura, porque ingressei na magistratura em outubro de 1981, há 39 anos.

Pela lembrança, não me ocorre que hoje tenhamos alguém com esse mesmo tempo dentro do Judiciário e do STJ. Isso não me dá nenhuma outra vantagem que não seja apenas um olhar antigo. Quero contar uma pequena história, exatamente sobre o meu concurso. Sou integrante da magistratura de meu estado de origem, Pernambuco. Como falei, ingressei em 1981, e o meu concurso, que começou no final da década de 1970 e terminou em 1981, quando fomos empossados, foi o último concurso em meu estado em que a comissão avaliadora das inscrições eliminou todas as mulheres. Isso demonstra, só por esse exemplo, o instante absolutamente discriminatório e anacrônico que vivíamos há 40 anos na magistratura, não apenas em Pernambuco, mas em outros estados também. Somente no concurso de 1982 é que o Tribunal, afinal, começou a entender que a presença feminina era benfazeja e muito importante para o aperfeiçoamento do Judiciário. A única mulher que nós tínhamos no Judiciário antecedente a essa data era uma magistrada que, segundo a história, somente conseguiu o deferimento da inscrição, anos antes desse concurso, porque era parente de um desembargador. Ela se submeteu ao concurso, mas acontece que antes a avaliação era prévia. Você se inscrevia, apresentava a documentação, e a comissão do concurso fazia a eliminação prévia das candidaturas que achava que não deveriam ou que não tinham os requisitos para ingressar na carreira. Hoje isso é diferente. Há as provas, que são eliminatórias, e ao final é feita essa avaliação. Isso mudou e mudou para melhor, porque era uma exclusão terrível.

Outro fato que lembro foi a inadmissão na magistratura dos cegos. Hoje temos magistrados no País com essa deficiência, mas que nem por isso deixam de ser excelentes profissionais.

Esses exemplos falam por si, mostram como a magistratura está mais inclusiva, mais igualitária e melhor. Estamos passando por um processo de aperfeiçoamento, com conquistas que são méritos do próprio processo civilizatório da humanidade. Por outro lado, é uma reivindicação da sociedade que veio a ter apoio expressivo da própria imprensa. Foi a repercussão negativa de situações como essa que levou a um pensar mais igualitário. Há colegas com deficiência motora, que também passaram a ingressar de uma forma mais abrangente na magistratura. Estou a pedir uma ênfase muito forte, inclusive na preparação dos ambientes da Escola, voltados a atender nosso público interno de pessoas portadoras de necessidades especiais. Estou lançando um olhar de mais atenção na preparação das salas de aula da Enfam e de outras escolas para quer tenhamos igualdade de tratamento entre magistrados que possuem alguma necessidade especial com os demais.

Por outro lado, e ainda falando sobre mídia, como venho de um tempo lá atrás, em que tínhamos um regime que não poderia ser chamado de democrático, um Estado Democrático de Direito, estamos a falar de uma situação em que a magistratura era cobrada por sua ausência de comunicação com a sociedade, de uma maneira geral. Lembro que éramos taxados de pessoas “caixa-preta”. Lembro muito de uma frase de um jornalista, quando tivemos a redemocratização do País, ele está aí até hoje, só não vou revelar o nome, que disse na ocasião, no final dos anos 1980: “Já abrimos a caixa-preta do Executivo, já abrimos a caixa-preta do Legislativo e agora, na redemocratização, vamos abrir a caixa-preta do Judiciário”.

Parece que isso está a acontecer, isto é, a legitimação do Judiciário pela sociedade, uma vez que no Brasil a maioria dos membros do Judiciário não é escolhida pelo voto nem por indicação, mas por concurso público. Logo, diferentemente de outros países, não tem participação popular nesse processo, assim como têm, diferentemente, o Legislativo e o Executivo. O grande caminho da legitimação do Judiciário é por uma afinidade com a sociedade, em que a sociedade se entenda legitimada pelas leis, essas sim produzidas pelo Legislativo e chanceladas pelo Executivo, mas interpretadas por nós. É preciso que a sociedade entenda o Judiciário como um parceiro na legitimação do Estado Democrático de Direito, a partir das decisões. Isso não quer dizer que as decisões do Judiciário tenham que ser majoritárias, pelo contrário. Algumas decisões são importantes justamente porque são contramajoritárias, porque visam enxergar uma interpretação da lei a partir dos princípios tratados pela Constituição e porque, às vezes, os princípios e crenças da Constituição brasileira de 1988 podem ser deturpadas pela crítica, o que é natural, e por uma opinião pública que é flutuante.

Naquela época, não podíamos ser cobrados pela opinião pública porque não tínhamos autonomia. Justificávamos a nossa caixa-preta porque não tínhamos autonomia orçamentária para nomear números suficientes de juízes. Não tínhamos autonomia administrativa para promover as próprias alterações dentro da magistratura, fazer nomeações de concursos, acesso, promoção de juízes. Não tínhamos essa autonomia. Esse discurso, embora tenhamos ainda muitas dificuldades, porque o País tem dificuldades, não pode mais ser utilizado porque o Judiciário conquistou a autonomia com a Constituição de 1988 e, é preciso dizer, com a interpretação que foi dada desde sempre pelo Supremo Tribunal Federal a respeito da autonomia do Judiciário no viés do nosso processo de redemocratização. O Supremo sempre ratificou essa autonomia, buscando, é certo, a aplicação dela de forma harmônica.

É preciso então que a magistratura saia dessa casca, isso já aconteceu. Nós não podemos mais usar o discurso de que somos órfãos, de que somos administrativamente inimputáveis, para assumir as responsabilidades que o Judiciário, efetivamente, assumiu a partir da Constituição de 1988. Isso implica em saber se comunicar com a sociedade. Isso implica também ouvir a crítica da sociedade e saber a temperança, como o meio caminho entre a comunicação desejada, para que a sociedade nos entenda, porque ninguém ama o desconhecido. Se a sociedade brasileira não sabe e não conhece o Judiciário por dentro, ela jamais irá acolher esse Judiciário. É preciso que o Judiciário vá para a sociedade, exponha o que foi feito, exponha as dificuldades e diga transparentemente o que pretende fazer para superá-la. Porque temos autonomia administrativa, mas é preciso, mais e mais, que tenhamos uma visão de planejamento na atuação do Judiciário e, para isso, o Conselho Nacional de Justiça exerce um papel muito importante.

Agora, somos também administradores da nossa casa, do Judiciário, e lhe pergunto: Nas bibliotecas dos tribunais, quantos livros sobre administração temos? Temos ricas obras do Direito, sobre cada ramo de especialidade, mas pouquíssimas a respeito da administração da Justiça. Isso nós precisamos. 

Ainda sobre a necessidade de comunicação com a sociedade, quero dar um exemplo muito recente, no primeiro turno das eleições municipais realizadas esse ano, que foi a forma transparente como agiu o Tribunal Superior Eleitoral (TSE), dando ciência à sociedade dos percalços que sofria àquele instante, desde os problemas com hackers até as consequências de uma tentativa de invasão (…); e alguma dificuldade, comparativamente com outros episódios, na transmissão das informações do primeiro turno. O brasileiro estava mal acostumado. No segundo turno, após mais ou menos duas horas e meia, o Brasil todo já sabia o resultado. No primeiro turno demorou um pouco mais. Paralelamente, estamos vendo países extremamente desenvolvidos que não publicam o resultado das suas eleições com a urgência cívica que acontece no Brasil há muito tempo.

Esse é um exemplo de que a comunicação do Judiciário com a sociedade não se faz somente quando temos notícias boas. É preciso que haja também o conhecimento da sociedade quando enfrentamos problemas. Nisso, o Presidente do TSE, Ministro Luís Roberto Barroso, foi exemplar. Ele fez mais divulgações quando tínhamos o cenário não ideal, que foi no primeiro turno, do que no segundo turno. Era preciso esclarecer a sociedade muito mais naquele momento do que no segundo turno, quando as coisas aconteceram tal e qual outros anos.

Lembro também ainda, só para falar do TSE, o que aconteceu na eleição presidencial, e aí trato do tema das fake news. Esse não é um problema só do Judiciário. Naquela ocasião, há dois anos, a equipe de comunicação do TSE convidou todos os jornalistas do Brasil, que estavam assustados e querendo que o Tribunal tomasse providências em relação à questão da desinformação. Mais uma vez o TSE convocou a imprensa para o seu auditório e disse com muita clareza que a desinformação não é um problema só da Justiça Eleitoral. O Ministro Humberto Martins, recentemente, em relação à invasão do site do STJ, diariamente emitia um boletim dando informações do que estava fazendo e, no final das contas, ninguém culpou o STJ ou o TSE pelos fatos, porque eles estavam claros para a opinião pública. Esta comunicação é necessária, porque ninguém ama o desconhecido.

Tiago Salles – Ministro, por outro lado, uma das críticas que o Judiciário recebe é por estar mais presente do que deveria na sociedade, assumindo protagonismo “indevido”. O senhor concorda? Qual seria o ponto de equilíbrio?
Og Fernandes – A Internet e esses aplicativos são uma novidade na vida da população de maneira geral. O Judiciário e seus integrantes, a exemplo do que ocorre com outras instituições, estão aprendendo a lidar com aquilo que antigamente era dito somente nos autos, em despachos, decisões, publicações, etc. Recentemente, lembro da crítica de um advogado dizendo que gostava muito quando os juízes falavam apenas nos autos. É verdade que é importante que o juiz tenha esse equilíbrio, mas nossa profissão lida com o que é mais sagrado, ao meu ver, depois da vida, que é a justiça. Depois da vida não há nada mais importante, porque a liberdade é uma consequência do justo. Aquele segundo valor após a vida decorre do justo, da Justiça, da aplicação do Direito. Quem é que o julga? Quem é o seu juiz? Quem é o meu juiz? Qual é a média de pensamento dessa magistratura brasileira? Ela é conservadora? Ela é mais protagonista? Penso que um pouco disso se obtém não apenas a partir da justiça das decisões, mas do conhecimento um pouco mais agudo desses personagens da magistratura. Porém, se nós pensássemos no uso dessas novas dimensões da humanidade, que são irreversíveis, não há como recuar delas, se pensássemos nisso como uma carreira pedagógica, como um curso, nós estaríamos ainda no antigo primário, no curso fundamental.

É possível encontrar aqui e ali algum tipo de exagero, de protagonismo exagerado, mas já existem decisões a respeito do uso das mídias sociais. Na América do Sul há um conjunto de regras estabelecidas pela Associação dos Magistrados da América. Há também instruções dadas pelo CNJ, que tomou isso para si, por meio de orientações e não de punições para os juízes, em um primeiro momento. E no âmbito da Escola Nacional da Magistratura foi criada uma cadeira chamada Justiça e Mídia, que é obrigatória tanto no curso inicial de formação de magistrados, quanto nos cursos de aperfeiçoamento, porque todos buscamos esse novo conhecimento. Hoje já temos muitos profissionais que sabem lidar e conhecem até essa parte mais técnica, que é esse mundo novo, mas é claro que isso não representa a magistratura como um todo. 

Há muitos grupos de bate papo entre a magistratura, por isso também quero dizer que dentro da Escola vou estimular uma relação de comunicação mais forte e intensa. Está no programa e já está sendo desenvolvido um programa de relacionamento entre a Enfam e seu público interno: toda a magistratura brasileira. Quero que a magistratura brasileira possa conversar, por meio de plataformas que vamos implantar, com a sua Escola Nacional, e que tenham uma interação positiva. Há muitos benefícios nessa plataforma. Aqui e ali temos uma pedra no meio do caminho, que precisamos e vamos afastar com conhecimento, informação e ponderação. Esse é meu sentimento a respeito desse tema, que não pode ser cindido da magistratura.

Tiago Salles – Hoje os tribunais têm plenário virtual, sessões por videoconferência, usam a inteligência artificial e várias outras ferramentas tecnológicas. Como o senhor enxerga essa situação atual? Acha que ela veio para ficar? Como enxerga a magistratura do futuro?
Og Fernandes – Ingressei na magistratura em 1981, quando usávamos a máquina de escrever não-elétrica, que era um grande avanço em relação à caneta bico de pena. Cheguei a ver ainda decisões de períodos passados, e todos os arquivos judiciários possuem, decisões feitas à caneta. A máquina de escrever foi um avanço. O meu primeiro diploma, ainda muito jovem, foi um diploma de datilografia, fiz o curso quando tinha dez anos. 

Tiago Salles – Eu também. 

Og Fernandes – Pois é! (risos) Tivemos um ganho com a máquina elétrica, depois com os primeiros computadores, que eram enormes, interligados com terminais. Lembro muito bem do IBM 8341, que era um computador que ficava centralizado em determinado local e terminais interligados. É um caminho sem volta, não há como ir de encontro à tecnologia. O que há, é que precisamos saber usá-la bem. Hoje já temos projetos desenvolvidos pelo STJ e também pela Enfam do uso de inteligência artificial para a elaboração de decisões. Nós sabemos hoje de escritórios de advocacia no País que já têm programas voltados para esse tipo de tecnologia. Temos grandes centros de excelência que adotam critérios informados para o Judiciário em face do conhecimento de quem é o juiz. Isso de fato já tínhamos, de uma forma mais anacrônica, antigamente.

Não há nenhum mal que o advogado e o jurisdicionado saibam a forma de pensar do julgador. O juiz deve ser previsível. Se julgar um caso de um jeito, deve julgar todos os casos do mesmo jeito. Quando mudar de entendimento, tem que explicar muito direitinho o que o motivou a fazer de forma diferente. Pode ser que tenha mudado a lei, a jurisprudência ou a análise que ele fez a respeito daquela matéria, mas é preciso explicar. A previsibilidade do juiz é algo que vem ao seu favor e até o protege. Hoje, essa previsibilidade está sendo colocada nos computadores, na inteligência artificial. Como é que o juiz decide sobre determinado tema? Decide assim e assim. Vem uma compreensão, uma resposta mais rápida. O homem continua sendo o mesmo, como a frase que você conhece muito bem, inscrita aqui no lobby do STJ, de Protágoras. O homem continua sendo a medida de todas as coisas, a forma de alcançar essa medida é que está sendo alavancada pela tecnologia.

Hoje ainda há juízes que são recalcitrantes em relação ao uso do computador, que têm dificuldades, que usam assessores para digitar suas decisões, mas é uma minoria, isso vai mudar. É um momento de transformação que o Judiciário, não só o brasileiro, mas de todo o mundo, está a passar. Temos países extremamente desenvolvidos, como é o caso da Alemanha, por exemplo, que em algumas instâncias não há a sentença computadorizada, ela ainda sai em estilo mais tradicional. A humanidade vai avançar nisso, o Judiciário vai avançar, e parece muito importante em relação à magistratura.

No que diz respeito ao perfil do juiz de amanhã, penso que seja desejável que tenhamos uma magistratura mais inclusiva, menos encastelada, que se comunique de forma adequada, que saia, e tem saído, dessa caixa-preta para a sociedade. Uma magistratura cada vez mais qualificada, porque a tecnologia permite essa qualidade, o acesso à informação.

Uma coisa que está acontecendo no Brasil, que lembra a remota magistratura brasileira, um fenômeno mais da Sociologia do que do próprio Direito, é a nacionalização da magistratura, uma migração de juízes de estados para estados, a exemplo do que ocorria, por outros fatores, no início do século passado. No Século XIX, em 1822, foram criadas as duas primeiras faculdades, do Largo de São Francisco, em São Paulo, e a de Pernambuco, que foi inicialmente em Olinda e hoje está no Recife. Essas faculdades foram criadas como um modelo por D. Pedro para evitar que os brasileiros fossem impregnados, em Coimbra, pela ideia de uma nova colonização portuguesa. Para isso, queria formar a elite brasileira aqui no Brasil, e a elite eram os bacharéis de Direito.

A advocacia era uma profissão extremamente de centros urbanos, havia pouco mercado. Os primeiros bacharéis que queriam seguir na carreira pública eram, à princípio, nomeados ou pelo imperador ou pelos primeiros presidentes da República, através da interferência política, para exercer o ministério público ou a magistratura em estados às vezes distantes da sua origem. Por exemplo, um carioca formado na Faculdade do Largo de São Francisco e recebia uma indicação para ser juiz no Maranhão, um dos primeiros judiciários do País, migrava do Rio com a família para fazer a vida por lá, ou onde havia vagas. Hoje, a tecnologia foi fundamental para isso, como se tem acesso às informações de concursos em todo o País, há uma juventude que vai fazer concurso onde tem.

Eles descobrem essa informação rapidamente pela Internet, há empresas que se organizam em função disso, e aí o jovem paranaense que estudou para o concurso em Pernambuco vem aqui, se submete e passa. É interessante esse fenômeno da migração, que em um primeiro momento parece uma formiguinha, mas que no final das contas, em um País com cerca de 18 mil magistrados, com a projeção que você me pede, vamos ter essa cultura social de migração de pessoas com um nível cultural e de uma formação elevada que vai tornar o Brasil cada vez mais uniforme. (…) Recentemente, fui convidado para uma palestra da Escola de Magistratura do Amazonas, no início de um curso de formação de juízes em Manaus, e tinham muito poucos amazonenses entre pessoas de todo o País. Essa é uma característica nova, são novos tempos.

Tiago Salles – Essa é uma análise muito interessante. Ministro, acabo de receber uma mensagem do Ministro Luis Felipe Salomão, que continua em sessão no TSE, mas mandou uma pergunta para o senhor sobre o concurso para a magistratura. Como o senhor avalia o concurso hoje? O que poderia melhorar?
Og Fernandes – Já defendi esse ponto de vista em alguns votos que dei na turma de Direito Público. Agradeço ao querido colega, Luis Felipe Salomão, que está na faina diária do seu trabalho. Mande um abraço muito forte a ele, porque sei que ele tem outros compromissos importantes no TSE hoje quando sair do STJ.

Acabei de falar desse modelo de migração que estamos a verificar. Esse é um lado interessante, mas há um lado extremamente perverso. O concurso hoje no País está sendo realizado em alguma medida para formação de profissionais capazes de ser professores de qualquer universidade e com a capacidade de decorar, com a memória digna de um computador, mas não está lançando um olhar mais atento a uma característica fundamental para a magistratura, que é o lado mais humanista da profissão. Os concursos são uma corrida. Há pesquisas feitas tanto pela Associação de Magistrados, quanto por outras entidades, que chegam a detalhar que se alguém desejar fazer um concurso para a magistratura, somente após três anos e dois meses – veja o detalhe – de estudo diário e intenso conseguirá passar. É preciso estudar sempre, mas não é importante, ao meu ver, e nem vai formar bons magistrados, a maneira como hoje se observa o processo seletivo.

Há outro efeito perverso. Hoje temos no Brasil duas ou três entidades organizadoras desses concursos. Já se criou no País uma cultura e o reconhecimento pelos candidatos dos critérios como essas empresas fazem esses concursos. Então, se estuda para fazer concurso de juiz no estado tal que está sendo organizado pela empresa ou entidade tal, que tem uma maneira de provocar nas suas perguntas o candidato de tal maneira. Não estou a dizer que essas empresas não são idôneas, mas que o modo de colher magistrados, de atrair recursos humanos para a magistratura, esse modelo está equivocado.

Estamos a colher cérebros privilegiados que, inclusive, quando conseguem atingir esse patamar de exigência que é solicitado por determinada empresa, começam a passar em três ou quatro concursos. É claro que eles têm direito, mas passam a passear pelos estados de um modo tal que não se consegue prover as vagas no estado A, B ou C, porque eles estão migrando para estados mais próximos de seu estado natal. (…)

Estamos aqui e ali vendo casos de pessoas tecnicamente muito preparadas, mas às vezes com um viés emocional ou uma visão da magistratura que não me parece adequada. É só você pinçar, por exemplo, junto aos órgãos administrativos, como o CNJ e os conselhos de magistratura dos estados, para identificar isso que estou dizendo. O que me preocupa, porque queremos juízes com categorias outras que não um conhecimento enciclopédico sobre o direito tal ou qual. (…) Penso que se poderia investir um pouco mais no homem juiz do que apenas no cérebro intelectual que vai fazer um concurso, porque decorou ou porque passou quatro ou cinco anos estudando, mas que, no final das contas, termina não tendo vocação para aquela atividade.

Tiago Salles – O Ministro Salomão mandou outra pergunta, para finalizar. Logo após o concurso, para vitaliciar, o juiz tem que fazer sua formação. Como o senhor enxerga a formação no Brasil, principalmente em comparação com outros países?
Og Fernandes – Lembro que em um desses cursos de formação de formadores da Escola, que foi feito em parceria com o Tribunal Regional Federal da 5ª Região, um dos professores comentou a forma como se fazia exatamente isso o que o querido colega Salomão está a perguntar, como se fazia a preparação dos novos juízes federais. Ele falou de uma imersão que se fazia, com visitas dos juízes à caatinga, à realidade carcerária daquela região. Penso que esse caminho é mais adequado, o caminho do conhecimento da realidade. 

É aquilo que falei antes, podemos ter cérebros privilegiados, mas ingênuos e pouco amadurecidos em relação à realidade com a qual vão lidar. É claro que na maioria dos casos aplica-se a lei federal para todo o País, mas a sensibilidade com o seu dia a dia, com a sua realidade, entra também no cesto de qualidades necessárias desse viajante da magistratura. (…) O juiz jovem que ingressa na magistratura, seja qual for a jurisdição, Federal, Trabalhista, enfim, qualquer uma dessas instituições, deve conhecer sua realidade. Que vá conhecer a realidade de outros países em outros momentos, para ter uma visão crítica de dois instantes e de duas magistraturas de nacionalidades distintas, para então rebuscar aquela pérola que é a experiência haurida no dia a dia da sua profissão. Francamente, para mim, o primeiro lugar da imersão de um juiz em curso de formação (…) deve ser na realidade com a qual ele vai operar. 

Uma última história sobre o que é esse país, ainda lembrando minha passagem pela Escola de Magistratura do Amazonas. Terminei a palestra e um desembargador me procurou para conversar. Ele me disse, “ministro, nós temos aqui várias comarcas em que o juiz passa no concurso, faz o curso de formação e vai assumir, mas somente chega à comarca, aqui no Amazonas, ou de barco, o que vai demorar vários dias, ou vai de avião, que é mais rápido. Há comarcas que não têm pista de pouso. Quando assumi a magistratura aqui no Amazonas, fui designado para uma comarca dessas, e tinham um pequeno avião que pousava na estradinha de uma fazenda. Quando o avião chegava na cidade, para dar sinal de que iria pousar, no sobrevoo ele fazia um movimento com as asas para que as pessoas pudessem facilitar o acesso ao local de pouso”. Isso aconteceu com ele. No dia seguinte à posse dele, o avião que fazia, digamos assim, essa linha aérea, voltou à cidade e quando fez o movimento, nós sabemos como é a riqueza do Amazonas, bateu uma das asas em uma árvore, caiu e morreu todo mundo. Ele disse: “Sou desembargador hoje porque cheguei na cidade um dia antes”. Essa é a realidade do Brasil. Por isso acho importante conhecer primeiro essas realidades, para depois ter uma visão de mundo que o transforme em uma pessoa culturalmente mais capaz.

Tiago Salles – Lembrei de outra história, de uma amiga que é juíza e que, com 25 anos, foi uma das primeiras colocadas no concurso da magistratura. Os primeiros colocados podem sempre escolher melhor, e como ela queria ficar mais perto de casa, a vaga mais próxima era em uma vara de família. Hoje ela fala que para a vara de família só pode ir a pessoa que ou é pai de família há muito tempo ou que já se separou. Pois como uma menina de 25 anos pode conseguir entender o que é um processo de divórcio, uma separação ou uma alienação parental? Ela não sabia nada do que era aquilo, ficou menos de seis meses até ir embora.
Og Fernandes – Conheço um caso muito assemelhado, em que a moça desistiu da magistratura. Era servidora de cartório, ingressou na magistratura, mas simplesmente pediu as contas. E posso contar uma história minha. Essa conversa está virando um papo muito agradável, estou aqui fazendo uma catarse com você sobre o que é ser juiz nesse País. Fui juiz em uma cidade muito pobre, uma cidade meio engraçada, porque era na área de uma usina já decadente e aí a cidade empobreceu. Lembro que em uma segunda-feira, eu tinha passado o final de semana no Recife, e sou juiz desde um tempo anterior ao Estatuto da Criança e do Adolescente, que é de 1990, mas quando cheguei na casa em que morava nessa cidade havia um investigador de menores com duas crianças. Ele disse: “Doutor, estou com um problema. São essas duas crianças. A mãe é prostituta, vive bêbada na zona, não tem lugar para morar. Esses meninos não têm pai, não têm lugar para morar. O que é que faço com elas?” Foi uma das circunstâncias mais dramáticas com que eu lidei, mas houve outras.

Em outra cidade maior, em que já havia a Febem (a antiga Fundação Estadual do Bem Estar do Menor), dei a chance a um garoto para trabalhar no gabinete. Ele foi pego por vender maconha, vivia em uma sub-região de palafitas nessa cidade em que fui juiz. A prefeitura tinha um programa de reinserção desses garotos, e ele tinha uma conduta muito boa. Era um rapaz, para o meio em que vivia, diferenciado, muito calmo e tranquilo, o problema foi a questão das más companhias. Dei uma chance a esse garoto de trabalhar, ele estava recolhido à Febem e veio trabalhar comigo, e todo mundo passou a adorar esse garoto. Ele recebia um salário mínimo no programa que essa Prefeitura desenvolvia, que envolvia o Judiciário, o Legislativo e o Executivo, e esse garoto ganhou a afeição de todos que trabalhavam lá, porque era delicado e educado. Dei a ele a chance, porque isso fazia parte do programa, de visitar a mãe lá naquela palafita em que ele vivia. Ele tinha débitos, porque pediu maconha para vender, mas não pagou ao fornecedor. Esse rapaz foi fuzilado no final de semana. Quando eu cheguei na segunda-feira vieram dizer “Doutor, tenho uma má notícia para o senhor, fulano foi morto na palafita em que ele morava. E eu juiz tinha dado a licença para ele ir para casa. Quando eu conto essa história, até hoje me arrepio. E, olha, são 39 anos que estou nessa brincadeira. 

Para a magistratura é preciso manter a chama de se sensibilizar com a realidade brasileira, não deixar de reconhecer a sociedade em que você vive e tentar soluções. Você não vai acertar sempre, mas se não acertar, lembre-se da música do Noite Ilustrada: levanta, sacode a poeira e dá a volta por cima.

O único mal que não podemos admitir na magistratura é a decisão de má fé. Para a má fé não tem saída. Fora da má fé, qualquer outro erro é uma contingência humana que pode ser superada, que as escolas ajudam, que a idade ajuda. Essa jovem de 25 anos, desse caso que você me falou, se tiver hoje 26 anos, estará um ano melhor pela experiência. Há passagens que você não pode esquecer, servem de lição e nem todos os livros contam. Só o exercício permite a você ir garimpando essas soluções, ir trabalhando, tentando ser melhor como juiz.

Tiago Salles – Alguma mensagem final aos magistrados brasileiros?
Og Fernandes – Cumpra com seu papel com o fundo da sua inteligência, com o fundo da sua sensibilidade e com o fundo da sua alma. Procure fazer as coisas com correção, porque você será visto no futuro pelas suas ações enquanto estava na magistratura e, às vezes, dependendo da visada da história a seu respeito, você não estará sequer aqui para se defender. Procure construir a sua história como um profissional, de forma a que você não precise amanhã dar muitas explicações a respeito dela, porque haverá um tempo da história em que você não poderá sequer justificar o que fez. É a mensagem que deixo aos juízes mais jovens.