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Direitos Humanos – Reforma do Judiciario – O Voto Vencido

5 de junho de 2001

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O ministro Celso de Mello falando em nome dos demais membros de nossa alta corte de Justiça durante a posse do ministro Marco Aurelio, destacou tres pontos:

A luta pelos direitos humanos, a reforma do Poder Judiciario que hoje tramita no Senado e os votos vencidos que segundo o orador, tornava-se imperioso relembrar a alta significação politica e juridica de que esses votos se revestiram no processo de edificação da Republica, de construção de Federação e de consolidação da pratica dos direitos fundamentais, proferidos em memoraveis julgamentos por juizes da Corte Suprema.

Direitos Humanos.

Cabe reconhecer o significado extremamente positivo da existencia, em nosso Pais, do Plano Nacional de Direitos Humanos e da legislação que define e pune o crime de tortura, o que revela a alta sensibilidade da Presidencia da Republica e do Congresso Nacional, no tratamento de questoes tao importantes para a nossa consciencia de pessoas comprometidas com a causa dos direitos humanos.

Os juizes brasileiros, no entanto, nao podem permanecer alheios a denuncias – como as divulgadas, na data de ontem, pela Anistia Internacional, cujo relatorio (Informe 2001), sobre a situação dos direitos humanos no Brasil, mostra que, lamentavelmente, em nosso Pais, ainda ocorrem, com preocupante frequencia, torturas, mortes de pessoas sob custodia policial, tratamento cruel e degradante dispensado a adolescentes presos, execuções sumarias e pratica de violencia arbitraria por agentes do Estado.

Ao Magistrado incumbe o desempenho incondicional de um dever que lhe e inerente: o de velar pela integridade dos direitos fundamentais de todas as pessoas, o de repelir condutas governamentais abusivas, o de conferir prevalencia à essencial dignidade da pessoa humana, o de fazer cumprir os pactos internacionais que protegem os grupos vulneraveis expostos a praticas discriminatorias e o de neutralizar qualquer ensaio de opressao estatal.

O fato irrecusavel e um so. Com a restauração da ordem democratica, o Poder Judiciario – especialmente apos a Constituição de 1988 – tornou-se um dos atores politicos mais relevantes no ambito do processo institucional em curso no Brasil.

A crescente demanda de jurisdição passou a representar um dos sinais mais positivos da posse consciente e militante da cidadania, estimulando o exercicio pleno dos direitos e garantias fundamentais, notadamente naquelas situações de antagonismo entre os indivíduos e os grupos sociais, de um lado, e o Poder Publico, de outro.

A possibilidade de solução jurisdicional dos conflitos sociais representa indice revelador do grau de desenvolvimento cultural dos povos e significa, por isso mesmo, a diferença fundamental entre civilização e barbárie, pois, onde inexiste a possibilidade do amparo judicial, ha, sempre, a realidade opressiva, sombria e intoleravel do arbitrio do Estado.

Reforma do Poder Judiciario

Na realidade, a reforma judiciaria, para legitimar-se plenamente, devera instituir um sistema de administração da justiça que se revele processualmente celere, tecnicamente eficiente, politicamente independente e socialmente eficaz.

A questão do Poder Judiciario revela­se impregnada de forte componente politico­institucional. Por isso mesmo, a reforma judiciaria é demasiadamente importante para ser apenas discutida pelos operadores do Direito. E por tal razão que se impõe a ativa participação de todos os cidadãos nesse debate, pois a possibilidade de ampla reflexao social em torno da questao judiciária – que hoje constitui dado revelador da propria crise do Estado -, alem de dar significado real a formula democratica, tera a virtude de atribuir plena e essencial legitimação ao processo decisório instaurado perante o Congresso Nacional.

Sabemos todos que nao pode haver ordem e nem democracia, onde as desigualdades imperam, onde a justiça falha e onde a opressão sufoca os anseios de liberdade.

Nesse contexto, em que as reformas se tornam imperiosas e em que o processo de modernização do Estado se faz necessario, cabe ter presente a gravissima responsabilidade que se impoe ao Poder Judiciario, e que Vossa Excelência, quando de sua eleição para a Presidência deste Tribunal, sintetizou em formula lapidar: fazer prevalecer, sempre, “sejam quais forem os ventos com que nos defrontarmos”, a autoridade suprema da Lei Fundamental da Republica.

Esse compromisso é tambem o compromisso do Supremo Tribunal Federal, pois, no Estado Democratico de Direito, nao ha – e nem pode haver – margem de tolerancia para com interpretações jurídicas, que, longe de se ajustarem a ordem constitucional, culminem, paradoxalmente, por deformar o significado da própria Constituição da Republica.

O Supremo Tribunal Federal- que é o guardião da Constituição, por expressa delegação do Poder Constituinte – nao pode renunciar ao exercício desse encargo, pois, se a Suprema Corte falhar no desempenho da gravíssima atribuição que lhe foi outorgada, a integridade do sistema político, a proteção das liberdades publicas, a estabilidade do ordenamento normativo do Estado, a segurança das relações juridicas e a legitimidade das instituições da Republica restarão profundamente comprometidas.

Nada compensa a ruptura da ordem constitucional. Nada recompõe os gravíssimos efeitos que derivam do gesto de infidelidade ao texto da Lei Fundamental.

Nenhum dos Poderes da Republica, Senhor Presidente, pode submeter a Constituição a seus próprios desígnios e a avaliações discricionárias fundadas em razões de conveniência política ou de pragmatismo institucional, eis que a relação de qualquer dos três Poderes, com a Constituição, ha de ser, necessariamente, uma relação de respeito incondicional, sob pena de juízes, legisladores e administradores converterem o alto significado do Estado Democratico de Direito em uma palavra vã e em um sonho frustrado pela prática autoritaria do poder.

Sob tal perspectiva cumpre observar o itinerario historico do Supremo Tribunal Federal, cujas decisoes – muitas vezes proferidas em momentos críticos de declínio agudo das liberdades civis e politicas em nosso Pais – devem representar valioso paradigma de reflexao no esforço de construção da cidadania e da ordem democratica no Brasil.

O voto vencido

Aquele que vota vencido nao pode ser visto como um espirito isolado nem como uma alma rebelde, pois, muitas vezes, e ele quem possui o sentido mais elevado da ordem e da justiça, exprimindo, na solidão de seu pronunciamento, uma percepção mais aguda da realidade social que pulsa na coletividade, antecipando-se, aos seus contemporaneos, na revelação dos sonhos que animarão as gerações futuras na busca da felicidade, na construção de uma sociedade mais justa e solidaria e na edificação de um Estado fundado em bases genuinamente democraticas.

Aquele que vota vencido, por isso mesmo deve merecer o respeito de seus contemporâneos, pois a historia tem registrado que, nos votos vencidos, reside, muitas vezes, a semente das grandes transformações.

Poderia mencionar, neste passo, o nome do Juiz Oliver Wendell Holmes Jr., que se notabilizou, na Suprema Corte dos Estados Unidos da America, nos longos anos que ali permaneceu (1902-1932), por suas dissenting opinions, por seus votos vencidos, que, mais tarde, viriam a converter-se em expressao da jurisprudencia predominante naquele alto Tribunal.

Revela-se mais importante, no entanto, relembrar, a proposito dos votos vencidos, a propria experiencia historica do Supremo Tribunal Federal brasileiro.

Para tanto, e sem prejuizo de outros casos de grande relevancia, basta-me recordar o memoravel julgamento do Habeas Corpus n° 300, impetrado, perante este Supremo Tribunal Federal, por Rui Barbosa, patrono dos Advogados Brasileiros, em favor de oficiais generais, de senadores da Republica, de deputados federais, de jornalistas, como Jose do Patrocínio, e de poetas, como Olavo Bilac, atingidos em seus direitos e em suas liberdades, por atos prepotentes e arbitrários do Marechal Floriano Peixoto, entao no exercício da Presidencia da Republica.

No historico julgamento desse habeas corpus, denegado pelo Supremo Tribunal Federal, em julgamento ocorrido em 23 de abril de 1892, destaca-se, ate hoje, o luminoso voto vencido proferido pelo Ministro Pisa e Almeida, que não hesitou em sustentar a tese – que, embora solitaria, viria a transformar-se, alguns anos depois, no nucleo da jurisprudencia dominante nesta Suprema Corte, chegando, ate mesmo, a ser consagrada em textos constitucionais posteriores – na qual acentuava que os abusos, mesmo quando praticados na vigencia do estado de sitio, pela Presidencia da Republica, estao sob a jurisdição imediata do Supremo Tribunal Federal, cuja competencia, em tal materia, pode e deve ser exercida, ainda que o proprio Congresso Nacional nao se tenha pronunciado sobre a adoção dessa medida extraordinaria de defesa do Estado, eis que os poderes de crise, atribuidos ao Chefe do Executivo, nao sao ilimitados e nem se revelam superiores a autoridade da Constituição.

Afirmou-se, ainda, nesse historico voto vencido, que a cessação do estado de sitio importava em restabelecimento imediato das garantias constitucionais, pois a prisao e o desterro, por ordem meramente administrativa, nao poderiam prolongar-se indefinidamente, sem processo e sem possibilidade de controle jurisdicional.

Essa tese tao cara a preservação das liberdades individuais, apenas veio a prevalecer alguns anos depois, por efeito da irresistivel força fecundante de que pode revestir-se um simples voto vencido.

Tem inteira razão, pois, Raymundo Faoro, quando enfatiza que o voto vencido, muitas vezes, “representa a honra de um corpo politico, alicerce da opiniao vencedora num passo subsequente. E o voto da coragem, de quem nao teme ficar so … ” (apud Flavio Flores da Cunha Bierrenbach, “Quem tem medo da Constituinte”, prefacio, 1986, Paz e Terra).