Edição

Descriminalização do aborto: Entre a omissão do legislador e o ativismo judicial

10 de dezembro de 2018

Compartilhe:

Introdução

É de longa data a desigualdade entre homens e mulheres. Isso deu ensejo a movimentos sociais e políticos em busca da verdadeira igualdade material de gênero na atualidade.

Nesse contexto, surge a discussão sobre a legalização do aborto, tema polêmico e que ao mesmo tempo demanda hodiernamente uma resposta efetiva por parte do Legislativo e do Poder Judiciário. Partindo dessa base, deve-se analisar o tema sob a perspectiva da autonomia da mulher, do direito à integridade física e psíquica, da igualdade de gênero, da discriminação social e do impacto desproporcional sobre as mulheres pobres de um lado e do outro a violação dos direitos inerentes ao nascituro à luz do princípio da dignidade da pessoa humana (CRFB/88, art. 1o, III).

Além da previsão legal, jurisprudencialmente, foi criada a possibilidade da interrupção da gravidez de feto anencéfalo (Plenário. ADPF 54/DF, rel. min. Marco Aurélio, j.12/02/2014).

Contudo, recentemente, houve a criação de uma quarta exceção, sendo este o ponto de partida para a presente análise.

Na decisão da 1a Turma do Supremo Tribunal Federal, no julgamento do HC 124306/RJ, mencionou-se a possibilidade de que a interrupção da gravidez no primeiro trimestre da gestação também não seria crime quando provocado pela própria gestante (CP, art. 124) ou com o seu consentimento (CP, art. 126).

O presente trabalho se propõe a investigar a possibilidade de delimitação das expressões ativismo e autocontenção judicial enquanto construções teóricas relacionadas ao exercício da revisão judicial pelos tribunais encarregados do controle de constitucionalidade.

Em outros termos, há os que defendem a autonomia da mulher para dispor do próprio corpo, como se viu no multicitado habeas corpus, e aqueles que defendem o direito a uma existência digna a partir da fecundação do óvulo, independentemente da nidação (fixação no útero materno).

Nesse diapasão, analisaremos a referida decisão apontando os respectivos fundamentos para após identificar a postura ativista da 1a Turma do Supremo Tribunal Federal.

1.2. Interrupção da gravidez no primeiro trimestre da gestação:

Segundo o ministro Luís Roberto Barroso, para que determinada tipificação penal seja compatível com a Constituição, exigem-se como requisitos:

I) O tipo penal deverá proteger bem jurídico relevante;

II) A conduta incriminada não deve constituir exercício de direito fundamental reconhecido;

III) Deve haver proporcionalidade entre a reação punitiva estatal e a conduta incriminada.

Isso equivale a dizer que, faltando quaisquer dos requisitos, o tipo penal deverá ser declarado inconstitucional. Nesse contexto, a conduta de praticar aborto com o consentimento da gestante no primeiro trimestre da gravidez não pode ser punida como crime porque não preenchidos o segundo e o terceiro itens acima mencionados.

Com base no referido decisum, a criminalização da interrupção voluntária da gestação ofende direitos fundamentais da mulher.

1.2.1. Violação à autonomia da mulher

Na referida decisão, a criminalização viola a autonomia da mulher, vale dizer, seu poder de dispor do próprio corpo e de fazer as escolhas a ele relacionadas, estando aí incluído o direito de cessar uma gravidez.

Exemplo na legislação comparada é a Lei italiana no 194, de 22/05/1978, que evidencia, como centro da discussão sobre o aborto, o direito à autonomia procriativa, devendo o Estado italiano garantir o direito à procriação responsável.

Apesar de o aborto estar relacionado ao livre planejamento familiar, não há como negar que, tradicionalmente, o debate mundial sobre o tema sempre esteve alinhado, em grande medida, à luta feminista e aos direitos das mulheres.

Em razão de fortes embates com a Igreja Católica, a descriminalização do aborto tomou força na medida em que estes movimentos feministas passaram a definir como estratégia a sua defesa como um direito enfeixado em torno da tutela integral à saúde da mulher.

Fato é que discutir o aborto nos força a romper com o dogma da “maternidade obrigatória”, analisando a temática sobre o viés da saúde pública, já que mulheres pobres não podem se utilizar do sistema de saúde público e, na clandestinidade, colocam em risco tanto a integridade física do nascituro quanto a própria.

1.2.2. Violação à igualdade de gênero

Parte do pressuposto de que a sexualidade feminina ainda é fonte de tabus e para que seja conferida a isonomia no que se refere ao homem, há que se dar possibilidade de decidir acerca da manutenção da gestação.

Se os homens engravidassem, não tenho dúvida em dizer que seguramente o aborto seria descriminalizado de ponta a ponta (Min. Ayres Britto, na ADPF 54-MC, j. 20/10/2004).

Concordamos com o ministro Luís Roberto Barroso de que o aborto no primeiro trimestre da gestação não deva ser tipificado como crime, contudo não cremos na seara judicial como adequada do ponto de vista democrático, pois assim ocorrendo haverá verdadeira violação ao princípio da separação do poderes em perigoso ativismo judicial.

Assim, faz-se necessário indicar os pressupostos teóricos que norteiam a presente dissertação:

a) A superação da divisão entre os direitos humanos e os direitos das mulheres e a consideração de que estes últimos fazem parte dos primeiros;

b) Os Estados podem violar os direitos humanos das mulheres tanto por ação tanto por omissão e a sua posição de garantidores envolve a obrigação de transversalidade da perspectiva de gênero para extirpar da realidade brasileira condutas vitimizadoras do sexo feminino.

A decisão no multicitado habeas corpus, embora não expressamente, traz em seu bojo alteração recente na legislação uruguaia, que modificou sua legislação sobre aborto para descriminalizá-lo no primeiro trimestre da gestação, representando algo praticamente inédito no contexto da América Latina.

Assim, cidadãs uruguaias que queiram por fim à gravidez nesse período serão submetidas a um comitê formado por ginecologistas, psicólogos e assistentes sociais, que lhe informarão sobre riscos e alternativas ao aborto. Caso persistam no intento, poderão realizá-lo imediatamente em centros de saúde sob controle estatal.

A ideia central da decisão é a ponderação entre o bem jurídico “vida intrauterina” e “direitos fundamentais da mulher”. Contudo, para os críticos do precedente, a proporcionalidade não é um princípio, mas uma máxima utilizada quando ocorre colisão entre princípios. Assim, a aplicação do princípio da proporcionalidade, na visão deles, careceria de argumentação racional e adequada, reduzindo o discurso estabelecido no habeas corpus 124306/RJ a um “juízo ideológico-pessoal”.

Diante desse cenário é notório que a noção de separação de poderes e o sistema de freios e contrapesos precisa ser revisitado, não devendo o Judiciário fechar os canais de comunicação, intitulando-se “superego da sociedade”, na exata expressão de Igerborg Maus (2000).

Outra crítica que se faz é que a ponderação seria um método específico de aplicação de princípios, enquanto mandados de otimização e que os artigos 124 e 126 do Código Penal são regras, mandados de definição, sendo, por assim dizer, inaplicável, face à natureza destas normas.

2. Dados da ineficácia da tutela penal:

Dos dados extrai-se que o caráter de prevenção geral e especial da pena não vem sendo respeitado pelas mulheres, que a despeito da tipicidade penal, continuam procurando clínicas clandestinas para realizarem o procedimento abortivo.

Nesse momento, é oportuna a pergunta: Seria possível tutelar a autonomia reprodutiva daqueles que não desejam ter filhos e que, para tanto, precisariam ou desejariam se valer de um aborto?

O aborto eletivo, no primeiro trimestre de gestação, não viola a dignidade humana, já que neste período o feto não tem ainda desenvolvido seu sistema nervoso central, não havendo violação ao denominado direito fundamental de não sentir dor, privilegiando-se a paternidade responsável.

Assim, entende-se que não existem direitos absolutos, podendo haver a relativização até mesmo do direito à vida, contudo, o locus adequado é o Poder Legislativo, com o apoio da moral e da política, sob pena de restar configurado ativismo judicial ameaçador da separação de poderes.

Se existe ativismo judicial no HC 124.306/RJ, isso decorre da omissão do legislador no desafio de tratar adequadamente um problema de enorme relevância social e de saúde pública, como o aborto.

Nesse diapasão, passaremos a expor o tema sob a ótica da teoria da “última palavra”, assim denominada pelo professor da Universidade de São Paulo Conrado Hubner Mendes para conceituar as teorias constitucionais com maior inclinação, seja por cortes constitucionais e juízes, seja por parlamentos e legisladores no que se refere à última decisão sobre questões que apresentem grave dissenso político, como o aborto, por exemplo.

3. Teoria da Última Palavra

3.1. Supremacia judicial: procedimentalistas como garantidores do jogo democrático (John Hart Ely) e Substancialistas (Dworkin) – argumentos favoráveis

Existem fortes críticas quanto à falta de legitimidade do Poder Judiciário, órgão não democraticamente eleito cujas decisões produzem grande repercussão na vida de toda a comunidade política. Tal conflito acirrou-se principalmente após a crescente assunção de importância e atribuições das cortes constitucionais em países como o Brasil, que adotam o controle abstrato de constitucionalidade, pois neste é maior a probabilidade de ocorrerem tensões entre os poderes Legislativo e Judiciário

É no âmbito do controle de constitucionalidade abstrato de normas que Habermas (2001a, p. 313-316) percebe a intensificação do conflito entre as funções do tribunal constitucional e do legislador democraticamente legitimado.

Diante dessa tensão, existiria a supremacia das decisões judiciais sobre as decisões parlamentares majoritárias?

Argumentos favoráveis à decisão judicial afirmam inexistir afronta à democracia, pois os direitos permanecem independentemente da vontade da maioria.

Neste ponto apresentamos autores que recomendam diversos graus de aceitação da revisão judicial.

Neste trabalho serão examinadas as posições de Dworkin, de Ely e de Waldron.

Para Dworkin, o juiz pode transcender a letra da norma jurídica, desde que baseado em argumentos de princípio e na integridade do Direito. Utiliza a metáfora do “romance em cadeia” que se traduz na ideia de coerência com o passado, sem desconsiderar a possibilidade de mudanças.

Dworkin preconiza que a coletividade pode até ficar pior em relação ao bem-estar, mas o direito individual não deve ser mitigado em razão disso.

Dworkin propõe um modelo de juiz onisciente, denominado de “Hércules”, que seria capaz de solucionar casos difíceis e encontrar respostas corretas para todas as questões.

A tese da resposta correta vem sustentada pelo entendimento de que o conhecimento das normas, diretrizes e princípios se mostra suficiente para que se descubra uma resposta adequada, ao reconhecer os direitos que têm cada indivíduo.

Para quem defende o aborto, o primeiro argumento favorável seria o direito à autonomia reprodutiva.

O segundo argumento em favor do aborto seria justamente a liberdade religiosa. Cada um seria livre para agir de acordo com as próprias crenças.

Em suma, deve-se deixar que cada mulher assuma, como sua dignidade exige, a responsabilidade por suas próprias convicções éticas.

Para a teoria procedimentalista, no entanto, a função das cortes seria apenas garantir o processo democrático. Sustenta que a Constituição não pretendeu estabelecer qualquer ideologia governamental ou preservar qualquer conjunto específico de valores substanciais.

Visando a uma melhor análise da teoria, Ely (2002, p. 75-77) recomenda a leitura da decisão proferida no caso United States v. Carolene Products Co. (1938). Nela, ficara definido que o tribunal deveria intervir para proteger o bom funcionamento do sistema democrático, especialmente para manter abertos os canais de participação política das minorias, caso prejudicadas pelas maiorias opressoras, principalmente em situações de grande dissenso, como de leis relacionadas à religião e ao aborto.

3.2. Ativismo judicial: Origem. Conceito. Crítica.

Define-se o ativismo como o exercício inadequado da jurisdição, em desconformidade com o que denomino de “parâmetros aceitáveis de decisão judicial”, estabelecidos na norma ápice. Consiste na recusa em aderir aos limites da função judicial, numa espécie de superdimensionamento das suas competências, em prejuízo dos demais poderes.

A dicotomia entre ativismo e autocontenção judicial está presente na maioria dos países que adotam o controle de constitucionalidade das leis ou atos normativos. A prevalência de um ou de outro varia ao dissabor do grau de destaque do respectivo poder naquele dado momento.

Os críticos do ativismo judicial geralmente encampam a tese de que os membros do Judiciário não são eleitos pelo povo e, por isso, carecem de legitimidade democrática. Se não bastasse isso, é de salientar que há hodiernamente grande dificuldade em se encontrar limites à atividade judicial, vez que por diversas vezes os juízes e cortes constitucionais inovam o ordenamento jurídico em suas decisões, como defendemos ter acontecido na situação delineada no multicitado habeas corpus, no qual o aborto voluntário até o terceiro mês de gravidez não configuraria conduta punível penalmente.

A desconformidade da atuação dos juízes pode ocorrer, assim, quando se estabelece uma interpretação distinta da pretendida pelo legislador. A referida manifestação de ativismo é entendida como “legislação judicial”.

Nesse sentido, a grande preocupação do professor Lênio Streck, entre outros, é a utilização da jurisdição constitucional de modo a comprometer o ordenamento jurídico.

Assim, resta claro que a “última palavra” com o Poder Judiciário em situações de grande dissenso político não parece ser a melhor saída vez que não existirão limites objetivos à atividade judicial, o que fará com que as decisões venham repletas de discricionariedade. Ademais, a cláusula de supremacia judicial sobre a interpretação da Constituição distancia a corte de um diálogo institucional, de índole cooperativista.

3.3. Supremacia do parlamento – Jeremy Waldron e o parlamento como representante do povo – argumentos favoráveis

A questão do aborto é trazida como um exemplo por Waldron, haja vista que tanto os grupos em defesa da gestação quanto aqueles que priorizam o direito de escolha da mulher não são movidos por paixões ou interesses unicamente privados, mas estão convictos de que sua posição é a mais justa para a sociedade. Nessa situação, não se deve retirar o povo do debate político.

Para Waldron, questões controversas a respeito de direitos em desacordo devem então ser decididas pelo povo, ou por seus representantes. A retirada desses direitos do debate político, com o intuito de protegê-los, fere o ideal democrático e de autogoverno.

O referido autor prega revisão judicial em sentido fraco. Neste, o Judiciário pode avaliar a compatibilidade de uma norma com a Constituição, mas deve devolver a análise da invalidade ao Legislativo.

Fica claro que a referida teoria prega a “última palavra” do Legislativo e conclama o povo a participar ativamente do dissenso político, mas tem como principal ponto negativo a inexistência de critérios que indiquem a forma pela qual o controle seria feito pelo parlamento. Isso demonstra a inaplicabilidade à realidade brasileira que traz a possibilidade do controle de constitucionalidade na forma abstrata ou concreta pelo Judiciário.

Essa decisão, no célebre caso Roe x Wade, representou verdadeira derrota política e vitória jurídica, já que interrompeu um longo processo de construção política na própria sociedade, a qual demorou a conferir efetividade à decisão judicial.

Com efeito, a referida decisão da Suprema Corte norte-americana, após mais de 20 anos, ainda sofre de grande rejeição social. Tal exposição está a demonstrar como o ativismo judicial pode causar efeitos negativos duradouros no seio da sociedade.

Conclusões

Fez-se uma análise, numa perspectiva ampla das teorias constitucionais, sobre a descriminalização do ato de aborto e quais seriam as possíveis saídas para as cortes e juízes decidirem os denominados hard cases, ou seja, situações de grave dissenso político.

Quanto à questão do ativismo, sabe-se que é notório o protagonismo judicial frente aos demais poderes, mas o ato de decidir não pode ser discricionário. Não é possível que o Judiciário com base em critérios subjetivos avoque para si a função atribuída ao legislador.

Diante desta situação, trouxemos a “Teoria da Última Palavra”, apontando o caráter contramajoritário das decisões judiciais, na medida em que não permitem a participação do povo, dos órgãos de representação da sociedade em situações de grave dissenso político.

Assim, diante das teorias constitucionais apresentadas e da análise da multicitada decisão da primeira turma do STF no habeas corpus 124306/RJ, cremos que diante de situações de “desacordos morais razoáveis” a melhor saída será promover o diálogo institucional e para isso os atores envolvidos precisam criar mecanismos efetivos.

Nessa dinâmica dialógica e interativa não deverá haver o que Conrado Hubner Mendes chamou de guardião entrincheirado ou um legislador acanhado e deferente, mas dois poderes engajados no exercício da persuasão e construção da decisão, ainda que provisória.