Desafios e soluções para o conflito agrário na conquista de terras: Região Oeste da Bahia

22 de janeiro de 2019

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1. Exórdio

Este artigo não tem a pretensão de esgotar o assunto, tampouco conferir-lhe contornos doutrinários. Busca apenas oferecer modesta contribuição no sentido de oportunizar aos operadores do Direito conhecimento mais estratificado sobre a mesorregião Oeste do Estado da Bahia, por meio de breve relato histórico e enfoques jurídicos pontuais.

Este desiderato tem por escopo retirar da obliquidade assunto que exsurge daquela região como interesse local para refletir-se no campo do interesse nacional, na medida em que o Oeste da Bahia desponta como uma das mais prósperas e produtivas regiões agrícolas do país.

Tal situação acaba por atrair não só os benefícios do desenvolvimento, mas também os seus perigos, que se materializam, principalmente, na figura dos grileiros de terras, que se utilizam de métodos inescrupulosos para alcançarem sua pretensão, causando instabilidade social e enorme insegurança jurídica.

Destarte, na certeza de que a informação e o conhecimento corretos ainda são os caminhos seguros para alcançar o equilíbrio social, a justiça e a verdadeira democracia, lançamos nossa pequena contribuição na esperança de fortalecer a voz no coro dos bons.

2. Início da colonização brasileira

O território brasileiro como hoje o conhecemos passou por uma série de transformações desde o período colonial até o momento hodierno. Sua estrutura inicial baseou-se nas Capitanias Hereditárias e Sesmarias, responsáveis por alicerçar todo o arcabouço territorial nacional. Entendamos.

2.1 Capitanias Hereditárias

As Capitanias Hereditárias se traduzem como o sistema administrativo implementado na década de 1530 pelos portugueses em sua colônia na América, com o intuito de organizar a ocupação territorial e consequente colonização, com base na experiência anteriormente realizada na Ilha da Madeira, em Cabo Verde e no Arquipélago dos Açores. Essencialmente, eram constituídas por faixas de terra que se estendiam da costa marítima para o interior até o limite da linha divisória instituída pelo Tratado de Tordesilhas, cuja posse era transmitida de forma hereditária.

Escolhido dentre os integrantes da baixa nobreza, o donatário, nome conferido aos beneficiários das Capitanias Hereditárias, tinha a obrigação de administrar, povoar, desenvolver e dar proteção ao seu território, sem qualquer tipo de auxílio financeiro proveniente da Coroa Portuguesa.

Os donatários detinham a autoridade máxima da Capitania, cujo controle estruturava-se juridicamente em dois títulos: Carta Foral e Carta de Doação, que, dentre outras coisas, conferiam-lhe a posse da terra, o direito de cobrar tributos e também o direito de doar glebas de terras virgens, as chamadas Sesmarias.

2.2 Sesmarias

Do ponto de vista jurídico, a Lei das Sesmarias estabeleceu o marco legal da criação deste sistema, cujo objetivo primordial era incentivar o desenvolvimento agrícola. Aquela norma estatuída previa que o dono de terra que dela não se utilizasse fazendo-a produtiva
teria sua gleba repassada a outro proprietário que tivesse o real interesse em desenvolver o seu cultivo.

Interessante enfatizar que, naquela época, o direito de propriedade sobre as Sesmarias era materializado por meio de registros públicos junto às paróquias locais. Isto se dava em face de terem elas um caráter oficial adstrito ao Estado, sendo responsáveis não só pela lavratura dos registros de terras, mas também das certidões de nascimento, casamento, dentre outras.

Entretanto, assim como no caso dos donatários, os sesmeiros também tinham a obrigação de tornar suas terras produtivas. Ocorre que, em face da impossibilidade de cumprir esta imposição legal, vários deles passaram a entregar, sob locação, parte de suas terras a outros agricultores, prática ilícita no sistema de Sesmarias e que fomentou o nascimento da figura do posseiro.

Observe-se que o sistema jurídico brasileiro albergava a figura da Enfiteuse, que no campo do direito real se traduzia na possibilidade do proprietário fracionar o seu domínio em dois, o eminente e o útil, sendo este último cedido ao chamado enfiteuta sob a égide de condições específicas. No entanto, com a revogação do Códex pelo novel Código Civil, a Enfiteuse ficou proibida de constituir-se, nos termos do art. 2.038 do diploma legal mencionado.

Registre-se que a diferença pontual entre a Sesmaria e a Enfiteuse estava no fato de que a primeira reclamava o cultivo da terra por período específico, enquanto a segunda reclamava o pagamento de um determinado valor chamado foro.

À vista disso, em face das incontáveis ilegalidades perpetradas, em 1822 as concessões de Sesmarias foram suspensas. Por conseguinte, beneficiaram-se os posseiros, que passaram a ser os únicos proprietários que possuíam escritura de propriedade registrada em cartório.

3. Formação do Oeste da Bahia

O atual Estado da Bahia teve suas terras albergadas pelas Capitanias Hereditárias de Pernambuco, Bahia de Todos os Santos e Ilhéus. A atual região Oeste da Bahia – também conhecida como Além São Francisco – pertenceu inicialmente à Capitania de Pernambuco. Por ação do donatário Duarte Coelho Pereira, iniciaram-se as incursões pelo Rio São Francisco com o intuito de colonizar a Região, fazendo-se seguir por outros colonizadores detentores de Sesmarias, como o sesmeiro Garcia D’Ávila, que fundou a cidade de Barra, primeiro núcleo populacional localizado à margem esquerda do Rio São Francisco. Contudo, como esta margem estava mais próxima à Capitania da Bahia de Todos os Santos, foram os baianos que a colonizaram. Posteriormente, a chamada Comarca do Rio São Francisco foi anexada a Minas Gerais, vindo a ser novamente incorporada à Bahia somente no ano de 1827, a qual corresponde, hoje, à Região Oeste do Estado da Bahia.

Esta região contava, já naquela época, com diversos núcleos habitados que foram aos poucos se transformando em povoados e, mais tarde, em municípios, a exemplo de Angical, Barreiras, Barra, dentre outros. Municípios cujo desenvolvimento teve início com o cultivo e venda de produtos de subsistência, que eram transportados por meio da navegação nos rios da bacia hidrográfica do São Francisco, bem como em lombos de burros, por trilhas abertas em diversos pontos da região, que deram origem, muitos anos depois, às atuais estradas.      

O desenvolvimento da região, porém, só se alicerçou verdadeiramente na década de 1930, tendo como marco a construção, na região de Barreiras, de uma usina hidrelétrica, serrarias, matadouros, beneficiadoras de cereais, etc. Já as estradas da região, como as conhecemos hoje, só tiveram início no fim da década de 1960, sendo atualmente a Região Oeste da Bahia cortada por três rodovias, a BR 020, a BR 242 e a BR 135, que exercem papel fundamental na interligação do Centro-Sul ao Nordeste do país.

4. Início da ocupação das terras e da produção regional

A partir do final da década de 1970 e início da década de 1980, impulsionado pelas rodovias recém construídas, o desenvolvimento da região começou a se concretizar mais fortemente, em especial pela migração de novos agricultores, que vislumbraram no oeste baiano um enorme potencial agrícola.

Destarte, inúmeras famílias, a maioria delas proveniente da Região Sul, encontraram no Oeste da Bahia a oportunidade de investir e produzir em grandes áreas de terras, já que para muitos isto lhes era impossível em suas terras de origem em razão dos altos preços.

Embalados pelo desejo de adquirir grandes propriedades na Região, onde nos primeiros anos da década de 1980 as terras ainda eram relativamente
baratas, os novos migrantes sulistas alicerçaram moradia e trabalho, conquistaram fronteiras e, aos poucos, deram forma ao que hoje conhecemos como um dos maiores pólos agrícolas do país, com destaque para a produção de milho, algodão e soja.

Além do cultivo agrícola em grande escala, há também a presença da agricultura familiar, assim como agropecuária, indústria, comércio e serviços de toda ordem, tudo alavancado pela produção agrícola. Vale lembrar que, em razão de sua vasta extensão, a região ainda detém grandes áreas de cerrado nativo inexplorado, juntamente com as reservas legais, as quais foram devidamente preservadas.

5. Da continuidade das ocupações

Com supedâneo nos registros históricos, tem-se que a vultosa ocupação agrícola das terras do Oeste da Bahia se deu no início da década de 1980, em sua maioria, como já se disse, por agricultores oriundos do Sul do país, cujo trabalho e perseverança, aliados à tecnologia e à aplicação de conhecimentos específicos, proporcionaram o alavancamento da região, valorizando as terras e abrindo portas ao crescimento e desenvolvimento de toda a população.

Todavia, esta luz de prosperidade não atraiu somente pessoas trabalhadoras e bem-intencionadas. Como sói ocorrer em qualquer lugar, muitos aventureiros inescrupulosos, inclusive do próprio Sul, se instalaram também na região com o intuito único de auferir vantagens a qualquer custo, dando início, assim, a uma saga infindável de golpes e falcatruas de toda ordem.

Neste grupo de índole reprovável, encontravam-se os chamados “corretores de terras”. Em que pese a corretagem ser uma atividade lícita e respeitável, ela foi utilizada para desvirtuar o que de fato representa, na medida em que se promoveu uma série de compras e vendas de imóveis inexistentes, ou de origem ilícita.

Mesmo com a presença de corretores honestos, proliferou na região uma chusma de falsários e aproveitadores, que desencadearam uma série de negociações ilegais de terras em proporções alarmantes, cuja especialidade era a venda de terras que só existiam no papel, praxe esta habitualmente conhecida como “grilagem”, fato este que se projetou no tempo, desde o início da ocupação ao momento hodierno.

Os “grileiros” ampliaram cada vez mais estas atividades ilícitas, cujo patamar de alcance foi tão grande que já se tornara impossível distinguir quais eram as verdadeiras origens de grande parte das propriedades. Tais mazelas deram origem a um outro grave problema, qual seja, a invasão de terras.

O volume dos pedidos de socorro jurisdicional chamou a atenção, fazendo com que as autoridades policiais, do Ministério Público (MP) e do próprio Judiciário, passassem a agir conjuntamente no sentido de coibir a prática destes crimes.

6. Exemplo de modus operandi para obtenção de registros fraudulentos

Em face das proporções alcançadas pela disputa de terras entre particulares, o Tribunal de Justiça do Estado da Bahia (TJBA) houve por bem intervir, promovendo diversas ações de combate às falsificações e invasões de terras, bem como implementando celeridade nas análises e conclusões de processos administrativos e judiciais que se encontravam sob sua égide.

A utilização de matrículas imobiliárias fraudulentas de terras no Oeste da Bahia tornou-se o maior obstáculo para as autoridades, não só pelo volume, mas também pela dificuldade de se encontrar o início do imbróglio. Os prejuízos alcançados eram tantos que já extrapolavam as pessoas físicas envolvidas e passavam a atingir também órgãos públicos e instituições financeiras, as quais, muitas vezes, receberam como garantia terras fictícias, cujos documentos foram obtidos mediante fraudes.

A guisa de exemplificação, vamos registrar o modus operandi em um caso cuja utilização de falsa certidão de óbito deu origem a um inventário fraudulento, possibilitando, com isso, a execução de uma das maiores grilagens de terras, não só do Oeste da Bahia, mas quiçá de todo o país.

Este fato foi tão alarmante que envolveu dois estados da Federação, Bahia e Piauí, com a atuação do Poder Judiciário de ambos, além dos seus respectivos MPs, e cuja solução só seu de maneira efetiva após mais de 30 anos, em face da atuação do Conselho da Magistratura do TJBA e do Conselho Nacional de Justiça (CNJ).

Entendamos o caso. Em 18/02/1890, com o passamento de Suzano Ribeiro de Souza, no Estado do Piauí, deu-se abertura ao seu inventário, cujos herdeiros foram a viúva supérstite e seus cinco filhos. O bem inventariado foi uma gleba de terras, com registro datado de 20/06/1887, o qual foi devidamente partilhado entre todos os herdeiros mediante sentença homologatória do juízo da Comarca de Corrente (PI) em 2/09/1890.

Em 18/01/1908 a viúva também veio a óbito, tendo sua meação devidamente partilhada entre os mesmos cinco filhos, que resolveram por bem manter a gleba de terra comum entre eles. Entretanto, 87 anos depois, dois grileiros de terras, munidos de uma certidão de óbito falsa do Sr. Souza, lavrada em 15/09/1977, cuja data de falecimento constava falsamente como 14/03/1894, e ainda, fazendo nela constar que a única herdeira era uma filha, quando na verdade era ela e os outros quatro filhos, promoveram a abertura de novo inventário, na data de 19/01/1978, desta vez na Comarca de Santa Rita de Cássia (BA), na qualidade de cessionários da pseudo “única herdeira” que alegavam existir.

Desta criminosa manobra e em razão da homologação do inventário fraudulento, os grileiros promoveram a abertura de matrículas totalmente eivadas de nulidades absolutas. Contudo, o pior ainda estava por vir. Ao gerarem as retro-epigrafadas matrículas aqueles grileiros não só usurparam os direitos dos verdadeiros sucessores, mas também os de terceiros, na medida em que cuidaram de exorbitar exageradamente seus limites em mais de 300 mil hectares, vindo com isso a sobrepor diversas outras áreas.

Deste modo, de posse das matrículas fraudulentas, os fraudadores, em conluio com outras pessoas da mesma estirpe, passaram a adquirir verbas das mais diversas instituições financeiras, inclusive do exterior e do Governo Federal, o que os fortaleceu, no sentido de viabilizar a utilização do poder econômico e da força bruta contra aqueles que com eles decidissem empreender um embate.

Em continuidade, os grileiros passaram a fracionar e a vender as terras que supostamente pertenciam às matrículas fruto de ato criminoso, fazendo gerar centenas de outras matrículas, todas eivadas de vício, tal como as que lhes deram origem, fato este que gerou a maior instabilidade agrícola já conhecida no Oeste da Bahia.   

Após inúmeras batalhas jurídicas, que perduram por quase 40 anos, o direito sobre as terras foi finalmente conferido ao seu legítimo proprietário, com a segurança jurídica que lhe era devida, fazendo com que inúmeras outras matrículas pudessem finalmente ser regularizadas e permitir que as tão sonhadas segurança e estabilidade pudessem finalmente retornar à Região.

Nunca é demais ressaltar que o Poder Judiciário também tem sido vítima destes inescrupulosos grileiros, que se utilizam de subterfúgios jurídico-processuais para postergar ao máximo os processos em que se tornam réus, doutro norte, quando se fazem de vítimas e provocam a abertura de processos na qualidade de autores, buscam de pronto a concessão de liminares, cuidando para que o julgamento definitivo do feito demore o maior tempo possível, tendo em vista que quanto maior o lapso temporal entre a prática do crime e a efetiva prestação jurisdicional, mais difícil e complexo é o retorno ao status quo ante.

7. A mediação como forma de solução de conflitos

Apesar de todos os casos de grilagem de terras e falsificações de documentos, há que se reconhecer que as autoridades estão atentas – tanto as do Judiciário quanto as de outros órgãos – têm analisado caso a caso e agido de forma enérgica, coibindo, assim, os atos de fraude em toda a Região. As operações conjuntas entre Poder Judiciário, CNJ, MP, Polícia Federal e polícias civis têm obtido vários resultados positivos.

Outra ferramenta para combater as fraudes e invasões de terras é a inovadora figura da mediação, introduzida recentemente no sistema processual nacional. A finalidade da mediação é a de facilitar o entendimento entre as partes interessadas, objetivando não apenas solucionar amigavelmente os litígios existentes, mas também evitar o surgimento de outros novos, por meio de acordos. Neste sentido, os mediadores exercem o papel de verdadeiros pacificadores, facilitando a comunicação e os entendimentos entre as partes envolvidas nos conflito, muitas das quais são terceiros prejudicados, que não tiveram qualquer tipo de participação nas fraudes em que foram envolvidos.

Em obediência aos ditames e princípios constitucionais, as autoridades judiciais e extrajudiciais baianas têm buscado resolver os processos existentes com a maior celeridade e segurança jurídica, evitando, assim, a intensificação dos conflitos. Neste ínterim, a mediação, é recorrentemente utilizada como instrumento de pacificação pessoal e social, fomentando o diálogo entre as partes nas diversas lides existentes, por intermédio do profissional mediador, cuja postura imparcial é determinante para a solução das demandas de forma segura e célere para todas as partes. 

8. Conclusão

A ocupação territorial é cercada de muitos desafios, seja ela a de grandes proporções como a do Brasil Colônia, ou em menor proporção, como a do oeste baiano. Estes desafios tornam-se ainda maiores quando parte daqueles que deveriam lutar por um objetivo comum decidem enveredar por caminhos escusos, com a perpetração de crimes como a falsificação de documentos e a grilagem de terras.

O modus operandi desta malta se diversifica constantemente, obrigando as autoridades a agir cada vez mais de maneira conjunta e articulada. Os resultados têm sido positivos, mas sabe-se que ainda há muito a fazer.

O Poder Judiciário baiano tem adotado inúmeras medidas tanto para coibir, quanto para solucionar os conflitos agrários existente no estado. As medidas vão desde atos coordenados com o CNJ e os juízos locais, até a utilização do sistema de mediação com base nos acordos, tendo este último apresentado excelentes resultados na Região.

O tema é deveras complexo, mas acreditamos que a união de esforços no sentido de fortalecer a busca da paz social é o caminho mais correto a seguir.

 

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